quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O moinho e a nau




Encontrei as mãos e as vozes
num moinho que nem procurei
e no brilho das espadas a sorte
que em toda a arte neguei

 
Ergui a flor do mato
como a princesa das flores
e o profeta de corpo estranho
estava na minha passagem...
 
Nesta nau de meia lua
cabe tudo o o que é
remos fundos que são raízes
que de tão fixas vão mais além
 
A meio gentes sobem e descem
a meio pesam ou não
a meio dormem a ver as estrelas
a meio gritam com o trovão
 
A meio choram com a chuva
a meio a rirem se faz sol
a meio são vento que meio é
E se a meio há terra, não há solidão
 
E lá por cima velas brancas
como sonhos a preencher
e mais acima ainda
um mastro d'ouro que tudo vê
 
Encontrei as mãos e as vozes
num moinho que rodava
e no brilho do mar toda a sorte
que por ser arte já não negava
 
E a História ficou nos livros
e no sangue da memória....
e lá no alto, no mastro d'ouro
outro sol só viu quem o viu bem
troca o passo a quem o nega
e não existe se por certo alguém o tem
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Essa esplanada tem vista para o mar? Todas têm...


 
Todas as palavras são o silencio do que vi. Vejo essas cadeiras espalhadas e nós sentados nelas, bebendo um tónico ou não, de perna cruzada, essa esplanada de gente que vem e se senta, que vem e que trás mais alguém que se levanta e sai, que se estende pela tarde na esperança de uma companhia morna. Vejo esse sentido de estar a olhar como se nele se procurasse a verdade no rosto deste e daquele. Vejo a alma calada que a todos vê, metida por dentro do silêncio que não retive.
Procuram saber todos os rostos que se cruzam, nesse passeio de fim de tarde tendo o mar como plenitude e os outros sempre por ansiedade. De se saber quem é, de se saber o que pensa, o que diz ou tem a dizer. Vejo multidões de gentes que tudo querem saber. Do outro, nesses passeios diversos da cidade, da praia, do campo que já pouco campo se sente assim com tanta gente que por ele passa.
E em mim, rostos param também, atentos aos meus olhos perguntando-me sem perguntar: quem é? O quê?
Todos se envolvem nessa explanada, nessa conversa de nada mas que tudo diz das crenças e dos dias onde tudo se passa onde tudo se comenta e se fala deste e daquele e da curiosidade que neles há. Nas perguntas dos pormenores dos trabalhos, onde estão, onde ficaram, para onde vão o que têm ou o que não têm, nos comentários sobre o estado do tempo que é sempre toda a gente embutida nele.
 
E olhamo-nos da mesma maneira que nos perguntamos porquê, mas se fizéssemos a pergunta “porquê” estremeceríamos de medo e então camuflamos o “porquê” nos outros e eles são todos os “porquês” que não ousamos perguntar porque a filosofia custa sempre uma lágrima qualquer e os outros talvez nos deem a possibilidade de um sorriso.
 
Dói perguntar porque a dúvida suspende-nos no ar quando é verdadeira. Porque é um primeiro voo de um pássaro…
 
Ah! Tantas caras e tantos olhos e tantas bocas e tantas perguntas sobre elas que são sempre as mesmas. As mesmas que trazemos do berço à cova, as mesmas esplanadas no Verão, as mesmas mesas de café no Inverno, os mesmos comentários, as mesmas horas sem uma rosa que nos trespasse.
 
E juntam-se alguns ao meu redor esperando um outro “porquê”, que seja diferente e que os tire dessas horas arrastadas das mesmas perguntas. E nada sei dizer porque só sei ver e de tanto ver apenas escrever. E tudo o que é sério só encontra lugar no papel porque as palavras ditas em voz alta fazem barulho demais no sossego que a alma tem se só lê. Porque todas as palavras ditas em voz alta soam a teatro e a cenário e a voz é como se nunca fosse tão perfeita como aquela que lê para dentro da nossa alma. É como se a manifestação da voz soasse a inconsistência pela vibração cheia de atrito no ar, e que a voz de dentro, imanente à presença atordoante, soasse de cristal, puro som,  no nosso cosmos interno.
 
Há nessa voz de dentro que nem se ouve quase a ausência de palavra. Como se essa fosse o traje do sentido. E assim, todos os sentidos explodem por dentro, nessa voz sem palavras que tudo assimila e ecoa na simultaneidade da nossa presença.
 
E juntam-se a meu redor, vêm em busca da “conversa interessante”, que não sei ter, em busca da distracção das miudezas do mundo, em busca de uma grandeza inesperada, e só lhes sei dizer que tudo o que escrevi foi esse silencio que retive. E que passei pelo mundo invisível, e que assim eles também, invisíveis uns aos outros, por não saberem que o amor, quando encontrado é só sentido absoluto das coisas, sem palavras que o valham ou leituras que o compensem.

(Cynthia Guimarães Taveira)

 

Do ver as estrelas até ao “até ver estrelas”

 
 
 
O sistema económico em que estamos absortos, para não dizer, submersos, prende-se com uma série de defeitos, muitos deles ligados à má relação que se tem com o tempo.

René Guénon sexualizou a questão do espaço e do tempo, concedendo o primeiro ao masculino, porque os homens caçavam no espaço e construíam no espaço e o segundo ao feminino porque as mulheres geravam no tempo. A questão da sexualização quando ultrapassa a fronteira do símbolo pode ter como consequência exactamente o mesmo erro que pode ocorrer quando se lê um texto considerado sagrado: a leitura literal do texto sem que ocorra profundidade qualquer nesse acto de ler e mesmo de pluralidade de interpretações. A palavra, entre as suas múltiplas facetas é também simbólica. Exactamente como qualquer símbolo, quando reduzida a um só significado perde a sua mobilidade e, ao perdê-la, perde a sua capacidade de ser coisa viva.

Temos vindo a ver ressurgir um certo gosto no paganismo, produto, em grande parte, de um crescente desejo de se regressar “à terra”, “às origens”.  Perfeitamente compreensível num mundo que construímos cada vez mais artificial. Tais movimentos são vistos como um “ai Jesus” pelas religiões monoteístas que assim assistem perplexos  (e às vezes em pânico) áquilo que consideram, por um lado uma “involução”, na base da total crença que a conquista de um só Deus é uma conquista benigna para a humanidade e, por outro, porque tais movimentos seriam a entrada no inconsciente ou subconsciente das religiões coisa que as mesmas optaram, na maioria das vezes, por não falar delas (quantas vezes apelidados de demoníacas) ou por outro ficando tais áreas reservadas a uma elite, secreta mas convertida a uma instituição (veja-se o caso de Dante e do Catolicismo).

A perpétua queda do homem no materialismo foi acompanhada pela completa inaptidão para simbolizar.

A má relação com o tempo, em termos simbólicos terá, para uma cabeça simbólica, relação com a má relação com a mulher/planeta terra/mãe natureza.

Antigamente, homens e mulheres (porque não creio que vendassem as mulheres) observavam as estrelas. O passar delas e o seu percurso pelo céu. Construíam, em seguida, autênticos observatórios astronómicos que tentavam estar em sintonia com o movimento temporal dos astros e corpos celestes. A noção e o conhecimento do tempo pareciam tão fundamentais que se construía em redor de tal coordenada terreste.

Hoje o homem, tal como afirmou Mircea Eliade, foge para a frente. Tem medo do tempo. O tempo é o grande devorador dos homens. O problema é que, nessa fuga, os gestos dos homens provocam a própria aceleração do tempo e consequentemente a contração do espaço. O tempo passa mais depressa quando o espaço é contraído.

Dizem que houve um dilúvio e que a espécie humana esteve em perigo. Se isso é verdade, e se a mulher é aquela que transporta e gera a espécie humana dentro do seu próprio ventre, então ela veio a adquirir, em termos simbólicos um excesso de zelo traduzido nos inúmeros tabus sociais de que foi alvo ao longo da história e ao longo dos monoteísmos. Ainda não ultrapassamos o trauma do dilúvio. Aliás, toda a nossa cultura tem como base esse acontecimento. A reprodução em massa da espécie humana é um sintoma de um trauma colectivo que se disseminou por formas religiosas traumáticas elas mesma. A figura feminina tem sido alvo de excesso de zelo. Sob as mais diversas formas, positivas e negativas, mas em excesso. Essa relação foi tendo importância no modo como se percecionava o próprio tempo. E hoje não entendemos o tempo da mesma maneira que Freud dizia não entender as mulheres…

A economia não pode ser sustentável enquanto no nosso mais profundo fundo traumático não esquecermos, de vez, o dilúvio. Enquanto no nosso fundo mais arcaico reinar a ideia de que ter um filho é um dever, um dever social, uma prova de amor, uma exigência da família e dos vizinhos, um desejo animal de um qualquer relógio biológico que se impõe à mulher como se esta fosse um animal com períodos de cio e não um acto simplesmente natural, enquanto não se entender que são os próprios gestos humanos que geram o tempo e a percepção que temos dele iremos sempre entrar em guerras dualistas pelo controlo do planeta.

Antigamente procurava-se andar de acordo com os ritmos cósmicos. Onde é que isso já lá vai. Começa logo pelo horário de trabalho e por relógios que não se adaptam à estrela do nosso sistema solar. De Inverno levantamo-nos de noite e recolhemo-nos quase de madrugada. O desfasamento com o tempo do próprio universo produz um desfasamento do homem consigo próprio. As consequências estão à vista. Pior que o dilúvio foi o trauma dele.

As populações ligadas à agricultura ou à recoleção tinham ainda alguma relação com o tempo. Nós perdemo-la por completo. E como a perdemos a única maneira de a recuperar será por via intelectual uma vez que já ninguém tem uma relação com o tempo natural.

Intelectualmente talvez consigamos lá chegar e, se formos capazes, isso implica a alteração total da relação que se tem tanto da sexualidade como com aquela que se tem com o tempo. Xiva, o grande dançarino cósmico na sua dança erótica sabe que a música se desenrola no tempo. O seu gesto no espaço é uma consequência do modo como percepciona o tempo. O seu gesto provoca o tempo e o espaço em gesto.

A economia tem a ver com isto. A economia é um termo que quer dizer “governo da casa”.  Neste momento até vimos estrelas com os embates. O que é muito diferente do que ficar a ver as estrelas.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

A verdade e a doutrina

Dalila Pereira Da Costa é uma mistica portuguesa que escreveu livros. Como todas as figuras de verdadeiro destaque nacional (e não aquelas que aparecem recorrentemente na TV ou nos jornais "culturais" ou nas secções culturais "anichadas" dos jornais gerais e que de "nichos" culturais nada têm, antes pelo contrário, falando sempre da mesma "espécie" de cultura que alterna entre os nomes sabidos de cor e com um prestígio de décadas e com figuras da "moda" porque a cultura está hoje entrelaçada com a moda de tal forma que quase não se distingue, às vezes... Dalila Pereira da Costa, dizia, é uma figura de destaque nacional e, como todas elas, desconhecida. Esta verdade é inevitável para quem leu a sua obra, e que são muitíssimo poucos. Mística, poetisa, visionária, ensaísta que coloca Eduardo Lourenço num cantinho no qual pouca ou nenhuma luz brilha, foi, como é usual neste país, abarbatata por leituras tendenciosas querendo colocá-la, por vezes, num altar da Igreja Católica com umas flores por baixo. O esforço foi quase inútil pois na sua obra vigoram bastantes detalhes, para não dizer imensos, de experiências e observações que contrariam as doutrinas da referida instituição.
Possuindo um mundo interior vasto e rico a sua capacidade de análise feita a partir de vivências pessoais (intransmissíveis por serem isso mesmo, pessoais), paira acima, com grande frequência, de qualquer ideia pré-estabelecida em e com  vigor numa qualquer carta fundamental de princípios.
Um dos pontos em que isso se revela está no seu relato de vidas passadas feito em consciência. Sem margem para dúvida, Dalila relata-nos, por exemplo, o Porto de outras épocas, com outra paisagem e outro sentido de tempo. Os actos imaginários, são fantasiosos para qualquer mente positiva e formatada da época. Os actos imaginários, para outras sensibilidades, contêm em si, toda a promessa de experiência e seu encontro com a verdade. A fantasia confunde-se com a imaginação para os primeiros e é mero infantilismo para os segundos.
Nesses relatos de outras vidas nos quais o véu do tempo é levantado, há um "distanciamento" tal como a autora escreve, face ao próprio tempo como se essa fosse uma condição necessária para que um outro tempo fosse visitado. É na distância de nós mesmos que tudo nos é dado ou apresentado.
A re-encarnação, aceite no oriente, torna-se motivo de reflexão.
Deve tornar-se motivo de reflexão. Não pelo motivo enganador da chamada "evolução espiritual" tão em vigor agora como se se tratasse de uma carta de condução com pontos, mas motivo de reflexão absolutamente materialista, com consequências materiais. Se voltarmos a esta terra voltamos à própria matéria que aqui deixámos. Tão simples quanto isto. Se deixarmos uma casa em ruínas é à casa em ruínas que voltamos. É o chamado "consciente colectivo" de que ninguém fala tão distraídos que andamos com o inconsciente e por isso mesmo com a inconsciência ou pura fantasia.
Há uma casa de "férias prolongadas" possíveis a que vulgarmente se chama céu. E há aquela de uso frequente que é esta. Se é um jogo de espelhos isso fica para as teologias que são sempre matérias vagas em vagas navegando nas vagas do vento.
A visão materialista das religiões e das políticas diz-nos "aí de nós, que planeta vamos dar à nossa descendência!" e no fundo não se rala. Mas e se a descendência, mais tarde ou mais cedo formos nós? Nós.
E se nós por mero capricho do destino voltássemos com a consciência exacta de que somos nós? Talvez já se perceba que o dilúvio tenha sido um mar de lágrimas e que o próximo seja um mar de fogo. O fogo é a consciência. Com tudo o que ela pode trazer. A memória, inclusive. É esta a questão fundamental que Dalila Pereira da Costa levanta quando fala de outras vidas. E até trememos.


(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 12 de julho de 2016

A desordem inaparente da escrita

 
Há um provérbio judaico que diz que Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias. Como se toda a criação do mesmo não lhe chegasse. Há na Criação, independentemente de esta ser queda ou não, uma ordem que se confunde com a matemática. Conhecendo a exactidão da matemática conhecer-se-ia a exactidão de Deus. O sustentáculo do mundo seria o número e o “jogo de dados”, (que Einstein não diz quantos são, nem os jogos, nem os dados) seria, para quem busca o conhecimento, o conforto da probabilidade e o leve esvoaçar do número como símbolo. As histórias seriam a desordem aparente de um mundo inteligente, mas fechado. Qualquer história de vida ou historieta principal seria arquétipal, ora inserida no grande enredo ora inserida no pequeno enredo que atravessa o drama teatral. De uma maneira ou de outra, viveríamos confortavelmente incrustados no drama da nossa presença. A comédia estraga tudo porque se ri do drama. A poesia invade como ondas a cidade fazendo-lhe tremer os alicerces. A profecia encarna o demónio da sabedoria e a graça o eterno problema do imprevisível e sobretudo da liberdade. O drama da nossa presença permite que haja comédia, poesia e graça.

A conversa com os deuses permite-nos perceber o nosso engano. O engano de não os sermos e o engano de os sermos. Os deuses são demasiados humanos… porque o poder é o antónimo de ser-se humano, pois este possuindo todos não possui nenhum.

A improbabilidade do sonho mais incongruente acontecer coloca em causa o jogo das probabilidades. Porque qualquer pessoa entende que não há sonhos improváveis e que a sua probabilidade de acontecer no real que se nos apresente é uma probabilidade. O acto criativo é por isso aquela probabilidade mais alta porque permite o improvável. Fora do acto criativo há o aprisionamento incondicional na matemática das histórias arquétipais, ou entendidas como tal. O “dispor” das formas que se nos apresentam e a sua permanente reorganização é apenas o lado externo do processo criativo, porque os deuses andam à solta para dentro e para fora de nós. A eternidade não é um cristal, até porque frio, só e  na escuridão do cosmos não serve para mais nada a não ser para existir. E o existencialismo é tão cansativo como a mais pura animalidade. Resume-se a uma entropia que mais tarde ou mais cedo expira.

O pressentimento da melodia, dirá Damásio, intuitivamente, resume a herança de luz que nos salvaguarda, não pelo acto imediato de identificação mas pelo acto de fusão;  identificação tem o seu quê de racional e de intencional, a fusão é irracional e sem intenção. A animalidade superior trata desta questão. O homem caminha para ser irracional e sem intenção, só assim se funde na consciência que falta aos animais. Só assim conhece. O leitor é o criativo por excelência:

“O leitor sabe que está consciente e sente que está em pleno acto de conhecer, porque o subtil relato imagético, que está agora a fluir na corrente dos seus pensamentos, manifesta o conhecimento de que o seu proto-si foi modificado por um objecto que agora mesmo se torna saliente na sua mente. O leitor sabe que existe porque, nesta narrativa, o leitor é o protagonista no acto de conhecer. O leitor eleva-se, transitória mas incessantemente, acima da água do conhecimento, sob a forma de organismo sentido, imparavelmente renovado a cada novo instante, graças a toda e qualquer coisa que afecta a sua máquina sensorial, vinda do exterior ou recordada na memória. O leitor sabe que existe e que está a ver esta página, porque a história da consciência narra um personagem, - o leitor – no acto de ver […] T.S. Elliot pode ter pensado em qualquer coisa de semelhante quando escreveu nos Quatro Quartetos, sobre uma música ouvida “tão profundamente que nem sequer é ouvida” e quando disse “tu és a música enquanto a música dura”. Pelo menos deve ter pensado no momento fugidio em que um conhecimento profundo emerge – uma união ou encarnação, tal como Eliot lhe chamou.” . (Teresa Martins Marques - Clave de sol - Chave de sombra - Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira, Editora Âncora, Lisboa, 2016. pag. 733)
As histórias que externamente contamos foram já escritas no jogo de escondidas, achadas e de novo perdidas no Jardim das Delícias. As histórias que internamente contamos estão todas por contar, situam-se na desordem inaparente da escrita. A mesma desordem que há no movimento fluente da luz. Impossível de agarrar e, no entanto, jorra.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 14 de junho de 2016

"Querida, encollhi a língua" por Jorge Colaço


Com a devida permissão do autor, transcrevo esta excelente reflexão sobre a relação dos portugueses com a sua língua:

«Querida, encolhi a língua».
 
Reflexões sobre empobrecimento da língua 
 
    1.
    Tornou-se lugar-comum repetir que a língua nos é uma pátria. Não se terá ela tornado, porém, uma pátria longínqua, minguada, apenas uma língua de terra?
 
    Aprendemos todos que a língua portuguesa é muito rica. Acontece que todas o são a seu modo. O que faz então a riqueza da nossa? 
 
    Em primeiro lugar, a solidez da sua formação, ancorada na velha ordem latina, depois na energia vernacular resultante da sua territorialidade própria, na sua história de unidade e dispersão, na sua capacidade de dar e receber, na diversidade e ductilidade das suas capacidades expressivas.  
 
     Só uma língua forte seria capaz de dar novas vozes ao mundo, conservando uma unidade essencial. É nesse sentido que se pode falar, e se fala, de lusofonia: uma galáxia de particularismos lexicais, morfológicos, sintácticos, semânticos e prosódicos, mantidos em relação por acção da força gravitacional constante assegurada por uma gramática e um léxico comuns. 
 
    No âmbito do universo lusófono, esses particularismos, ou variantes, não têm hoje um centro geográfico. Essa centralidade é ocupada por um corpo histórico imarcescível: o tecido de peripécias e transformações que a própria língua foi produzindo ao longo do seu trânsito através da História.  
 
    Esse trânsito tem contudo um ponto de partida, um lugar matricial, um rol de circunstâncias e condicionalismos internos que veio a resultar no que se chama a variante europeia do português, ou o «português de Portugal».
 
    É este «português de Portugal» que nos preocupa e aqui nos ocupa. Preocupam-nos os fenómenos de redução, estreitamento, afunilamento, todos eles eufemismos de um empobrecimento, que muito transcendem a questão ortográfica, aquela que mais emoções desperta e que a seu tempo também terá reflexos, embora ainda não totalmente discerníveis, neste processo de empobrecimento, termo que muitos não aceitam, invocando alguma espécie de saldo de uma contabilidade de ganhos e perdas que em todas as épocas se repete.
 
    2.
    Também aprendemos todos que a língua se transforma e que o uso é o grande agente dessa transformação, à qual nos habituámos — de uma forma um pouco simplista — a chamar evolução, presos ainda à euforia e às metáforas organicistas da ciência oitocentista. Tornámo-nos assim condescendentes, ansiosos por corroborar, por participar nessa espécie de progresso que a evolução passou a representar. Até nos dispusemos — e dispomos — a antecipar e «facilitar» essa evolução, cujo desenrolar julgamos vislumbrar, a abrir caminho à sua inevitabilidade histórica, que vemos inscrita na sua própria natureza. 
 
    Rimo-nos gostosa e desdenhosamente dos esforços inglórios — sobretudo por terem sido inglórios — dos gramáticos antigos para preservarem a língua contra o uso espúrio, opondo a língua culta à língua popular, opondo a língua escrita à língua falada. Desarmados pela evidência histórica e munidos do preceito pragmático que é «se não os consegues vencer, junta-te a eles», eis que nos pusemos a agir em nome e a favor de um certo futuro, ou melhor, de uma certa ideia de futuro.
 
    [Quer isto dizer que, para dar um exemplo por enquanto caricatural, dadas as suas actuais misérias, as vogais átonas pré-tónicas — que no português do Brasil vivem na abundância — poderiam um dia vir a ser suprimidas por via administrativa em nome da antecipação do seu destino histórico.] Em desfavor deste futuro, inevitável e irreversível, só poderiam estar os velhos do Restelo, agrupando puristas, saudosistas, conservadores, e todo um exército de contumazes oponentes da mudança e a ela resistentes, que muitas vezes o são, dizem-nos os adeptos do progresso, por mero desconhecimento ou incompreensão (como se conhecer e compreender fosse igual a aceitar). Creio que muitos reconhecerão esta panóplia discursiva de outros contextos, embora se trate certamente de uma coincidência… 
 
    Quisemos, então, examinar os usos em termos quantitativos e determinar que língua falava o cidadão comum, de que mínimo necessitávamos para nos entendermos. Encolhemos a língua na medida das necessidades e fizemos dicionários e gramáticas à medida dessas necessidades.
 
    O descritivismo triunfou sobre a normatividade. Significou isso, na linha do que acabámos de dizer, que a descrição linguística operou sobre um corpus em parte determinado, ou pelo menos sancionado, pelo uso. A norma gramatical tornou-se permeável, por exemplo, à suposição de uma «intenção» do falante ou mesmo às suas «preferências». [Vejam-se por exemplo as hesitações na concordância com expressões partitivas, ou de quantificação, e respectivas justificações.] Além disso, o antigo sistema de regras e excepções gramaticais, considerado insuficiente para abarcar todas as possibilidades da língua usada, foi tomando a forma de um vasto e complexo estendal terminológico.
 
    Esbateram-se as antigas distinções entre culto e popular, entre escrito e falado. Quem alguma vez deu aulas de português a estrangeiros conhece as dificuldades de explicar a «utilidade» da aprendizagem do mais-que-perfeito do indicativo, do futuro do indicativo, ou do condicional, que a língua oral substitui sistematicamente, substituição que ninguém parece particularmente interessado em corrigir: ninguém quer ficar do «lado errado da história». Porque é assim que os falantes dizem, é claro. «É a evolução da língua, estúpido!», dirão alguns mais acerbamente. Algum dia alguém exigirá que se amputem essas excrescências inúteis.
 
    Entrámos assim no reino da superstição democrática (a expressão é de Jorge Luís Borges). A lógica é, grosseiramente enunciada, esta: «se se diz (ou se se diz assim) é porque existe; se existe tem de ser descrito». Certíssimo! O pior é que esta proposição gera outra, igualmente verdadeira: «se não se diz, é porque não existe; se não existe não tem de ser descrito». 
 
    A «pátria antiga», arcaica e empoeirada, e a «pátria pequena», no sentido em que por exemplo João Araújo Correia ou Tomaz de Figueiredo a evocaram, foram assim convidadas a retirarem-se da mesa e irem para a cama de castigo, uma por ser velha e desconforme, a outra por ser aldeã e rural.
 
    Temos reduzido, então, a língua, por desbaste, a uma língua essencial e urbana, ufana da sua contemporaneidade, desconfiada de vernaculismos obscuros e de construções inabituais, aberta sobretudo ao momento, atenta a rumores e tendências, sempre um pouco avessa à nacionalização de terminologias em voga com que nos damos ares de cosmopolitismo e sofisticação. Sobretudo, a «pátria» estreitou-se, resignada a uma certa ideia de simplificação, que é, no nosso modesto entendimento, um argumento inaceitável em linguística.
 
    Creio que temos de ser capazes de olhar este processo com lucidez, quer reconhecendo os erros e excessos, quer sublinhando as qualidade e virtudes. O que não podemos é olhar o fenómeno, prazenteiramente, como um infeliz embora divertido acidente, que, por meio de jigajoga, se haverá finalmente de recompor. Talvez não possamos mesmo limitarmo-nos a descrever o acidente e anunciar: «Querida, encolhi a língua». Afinal, o empobrecimento nunca é um filme cómico. 
 
    3.
    Mas não é tudo.
    A língua literária foi sempre considerada o repositório dos tesouros da língua, guardiã da sua história, a sua linhagem nobre, espaço de fixação lexical e sintáctica, e, na mesma medida, o lugar da sua reinvenção.
 
    Tal era possível porque o escritor — «semelhante a uma luz que, invisível em si, aquece e torna visível o mundo», como escreveu Jünger — era uma reconhecida autoridade no domínio da língua, fonte de abonação e de legitimidade. Exemplar, mesmo que disruptor, pois só sabe desfazer bem quem também sabe fazer bem. A principal razão disso residia no facto de terem os escritores, em geral, um forte domínio da língua e uma consciência aguda das suas variações e possibilidades, bons conhecedores dos seus usos literários através dos tempos e, muitas vezes, defensores, com especial filáucia, das suas particularidades. Desses, já só se reconhecem uns poucos. Mário de Carvalho ou Fernando Echevarria representam bem os que aqui não menciono. 
 
    A abonação e a legitimidade é hoje vulgarmente procurada em jornais e blogues, onde todos podemos ser autores. O texto publicitário, a reportagem, a entrevista, a notícia, o requerimento ou a carta dividem entre si, em partes irmãs, com a literatura, o espaço curricular da língua, nas escolas. A literatura veiculada escolarmente barricou-se num universo «infanto-juvenil», e daí não sai.
 
    Mais do que para a literatura, os poderes públicos estão orientados para os problemas da literacia, que é, hoje, entre outras coisas, também um problema de saúde pública, o que só por si diz muito sobre o empobrecimento da língua. Não que esses problemas não sejam reais por esse mundo fora, mas porque a aprendizagem afastada da língua literária é objectivamente empobrecedora. É um trabalho de modista que desconhece a alta-costura. 
 
    Se escritor é todo aquele que escreve, ao contrário do que afirmaram Nemésio ou Mourão-Ferreira, confunde-se agora com o publicista, que não pode ir muito além da língua essencial que lhe permite ser lido: a língua literária também encolheu, talhada e tolhida pela necessidade. Passou a quase não se distinguir da língua comum, a procurar mesmo uma normalização, uma habitualidade reconhecível. Até porque a língua comum absorveu e banalizou certas fórmulas e recursos, como a inversão da ordem entre nome e adjectivo. O fenómeno, que não é exclusivamente português, tem uma clara dimensão económica e editorial.
 
    Folheemos romances ao acaso para vermos como as personagens reagem encolhendo significativamente os ombros a cada passo e a cada página; para vermos como, em diálogo, respondem sempre, mas rarissimamente replicam, retorquem, retrucam, redargúem, anuem, assentem, objectam, argumentam ou contrapõem; para vermos como as estruturas sintácticas e lexicais não ultrapassam um determinado grau de simplicidade ou de sensaboria. A simplicidade e a sensaboria de uma língua normalizada e abençoada pelos processadores de texto, que maldosamente insinuam a dúvida em quem não tem já muitas certezas. 
 
    Significa isto também que o leitor médio, e sobretudo o leitor jovem, tem vindo a perder a capacidade de ler os clássicos, antigos ou modernos, crescentemente feridos de ilegibilidade, quantas vezes impedidos de entrar, quando não expulsos do cânone escolar.
 
    Sabemos que a língua sofre transformações. Sabemos que cada época tem a sua língua essencial. Mas sabemos igualmente que a língua é cumulativa, o que não é usado num certo momento não deixa de existir por isso, é um remanescente, pronto a entrar em acção quando tal lhe for solicitado, ou, para ceder aos usos de agora, um importante activo.
 
    É preciso olhar este fenómeno de encolhimento, não de forma relativista, observando apenas — encolhendo os ombros — que sempre foi assim em todas as épocas, mas trabalhando para que os múltiplos afluentes da língua não sejam estancados. 
 
    4.
    A nossa língua – a comum e a literária, nos seus diversos registos – é muito rica em tesouros escondidos. Como desenterrar e recuperar essa riqueza?
   
    Lendo. Descobrindo, aprendendo. Lendo. Redescobrindo, reaprendendo. Observando as diferenças necessárias entre a língua falada e a língua escrita. Escutando. Corrigindo. Lendo. Redescobrindo e reaprendendo a língua na sua grandeza e na sua diversidade, diacrónica e sincronicamente considerada.
 
    Evidenciando, por exemplo, a importância de uma prática de escrita e de leitura confiável: 
 
    «No que toca à precisão e propriedade da linguagem, fontes indispensáveis da clareza, é preciso que desde logo aprendamos a distinguir o sentido próprio e figurado das palavras, a explicar, por meio de frases, diferentes acepções da mesma palavra, a indicar a ideia geral comum a várias ideias e a ideia particular expressa por cada uma delas.
 
    Aprenderemos a descortinar, por exemplo, que em “abater, demolir, arruinar, destruir” existe uma ideia comum qual é a de “fazer cair”, mas que cada um destes verbos tem um significado e emprego particulares. Compreenderemos que indicar sinónimos não é tanto apresentar palavras que exprimam as mesmas ideias (caso que geralmente só acontece com palavras de origem diversa ou chegadas até nós por via diferente, e ainda assim com diferente emprego), mas sobretudo ideias semelhantes. Aprenderemos a encontrar por nós próprios locuções e frases correspondentes de outras, por meio das quais possamos evitar as repetições de forma ou as desarmonias do estilo. Aprenderemos também até que ponto os provincianismos e os neologismos são admissíveis, e seremos levados a reconhecer que os barbarismos de construção são muito mais reprováveis que os de simples palavras, porque sujeitam o pensamento a moldes estrangeiros e brigam com o que há de fundamental no espírito de uma língua.» 
 
    Palavras colhidas no livro Problemas de Análise Literária, de F. Costa Marques, licenciado em Filologia Clássica, professor do Liceu de D. João III, em Coimbra, na sua já longínqua primeira edição da Livraria Gonçalves, de 1948. 
 
    Muitos serão os caminhos, como as moradas. Apenas me atrevo a enunciar um deles: voltar a uma orientação que faça regressar a semântica, e com ela a atitude e o procedimento filológicos, que faça regressar todo um programa de minúcias e subtilezas com que sejamos capazes de enfrentar a bruteza dos tempos. 
 
 
 
Jorge Colaço
 
Lisboa, Maio de 2016

sábado, 16 de abril de 2016

Sem título, nem honras, só grandeza.



Porque eram flores do campo
e eu só as escutava

Porque navegava num longe que era tão perto
Porque não sossegas com o meu silêncio?

E não o vês como a obra prima da tua alma
a face que nunca digo
porque se o dissesse
explodia o mundo...

porque eram flores do campo e corriam selvagens

porque nem interessa os "porquês"
que nos perseguem dia e noite...

O meu silêncio é a obra prima da tua alma
onde te re-escrevo
em tons que nem sonhas
embora saibas os meus sonhos

A verdade? Digo-ta de forma surpreendente:
O mundo ainda não está preparado para a grandeza
do que é ser-se humano.

Como falar então?

nem há pincéis, nem telas, nem arte sequer
que demonstrem, passo a passo,
como uma simples teoria
aquilo de que somos feitos

um imenso símbolo inexplicável
quase labiríntico no seu interior
feito de percursos de sentidos vários

sim, mais do que árvores, nós humanos
mais do que frutos, ou flores ou sementes
como se fossemos tudo ao mesmo tempo
e ainda o céu

esse céu
tão dentro de nós

o silêncio é uma pausa de criação
não é quando escrevemos, ou dançamos
que criamos

é nesse silêncio que não compreendes
nessa não manifestação aparente
mas que é toda por dentro

mas que é uma força de luz
mas que contém os germes
de toda a verdade que há-de ser

não estranhes o meu silêncio
aquele que mostra uma expressão séria
aquele que vibra em todo o coração
e o faz crescer até às estrelas

como se dá a mão à humanidade?
Eis o desejo secreto de alguns
o mais secreto e o maior

Não há templo, religião, crença ou filosofia que o valha...


(Cynthia Guimarães Taveira)