terça-feira, 15 de maio de 2018

Três pinturas

(fotografia de Maria do Céu da Costa)
Très Pinturas de Cynthia Guimarães Taveira
 
A propósito do encontro promovido pela Ordem de Ourique (subordinado a temáticas debruçadas sobre o Futuro, a Tecnologia e a Ciência) que aconteceu no dia 12 de Maio de 2018, no Mosteiro de Santa Maria na Ajuda em Lisboa, foi-me sugerido que levasse três obras pictóricas, à minha escolha e de minha autoria e que, de alguma forma, as apresentasse ou discorresse sobre elas. Em simultâneo, nesse mês, de entre as disponíveis, outras treze obras tiveram de ser escolhidas para uma exposição patente num restaurante em Arruda dos Vinhos. Dei por mim a selecionar com cuidado aquelas que iriam para um local e as que iriam para outro. Posto isto, direcionei “As Tulipas”, “O Anjo” e “O Cisne” para a Ordem de Ourique pois entendi serem elas amostras de um percurso pessoal indissociável do pensamento e da filosofia, a par com uma “mística”, o que em rigor anda, igualmente, a par e passo com a mesma Ordem e com os propósitos pelos quais foi criada de origem: pensar e agir «portugalidade».
 
Embora não constem nas obras símbolos tipicamente portugueses, como a Cruz de Cristo ou a Esfera Armilar, ou bandeiras, ou Cordas Manuelinas, ou Caravelas, ou Barcas ou Corvos, ou ondas do mar, o que é certo é que o percurso artístico, místico e espiritual da autora não teria sido o mesmo se, desde muito cedo, por volta dos 13 anos, não tivesse havido um encontro com a Temática da Portugalidade através do poeta Fernando Pessoa, e poucos anos depois, dois ou três,  o encontro com a obra de Dalila Pereira da Costa. O que é certo é que mesmo não estando visível pelos seus símbolos comuns, essa Portugalidade está por detrás de cada obra elaborada. E quando dizemos de cada obra pictórica, dizemos todas, sem excepção. A razão disto prende-se com a paralela e, ao mesmo tempo, una, relação que existe entre a descoberta do País e a auto-descoberta pessoal. Nestes tempos “modernos” e de globalização”, Portugal torna-se caso raro nessa possibilidade dupla e harmoniosa, mantendo sempre em aberto (e contra todas as probabilidades e expectativas) a possibilidade de ser este um país verdadeiramente iniciático, com mortes e renascimentos, para quem se predisponha, com a mesma abertura que o país releva e revela a todos aqueles que escolhe (sendo o país iniciático, ele é que escolhe quem o procura…).
 
Assim, e começando pela obra “O Anjo”, duas figuras esguias, procurando por essa forma fazer a ponte entre o céu e a terra (base da identidade da espécie humana, muito mais do que um simples acrescento genético ao chimpanzé), uma humana, outra angelical (com asas visíveis), tocam-se em baixo, gerando, deste modo, o fogo. A razão pela qual esse toque aparece em baixo, e não em cima, prende-se com a Descoberta da Presença Celeste na Terra. Só assim, e não de uma forma meramente utópica ou idealista, se pode dizer que essa Descoberta existiu ou, dito de outro modo, é no coração carnal, aquele mesmo que bombeando o sangue consegue em simultâneo pensar e sentir que essa Descoberta do Transcendente se faz. Sem ele, em profunda abertura para o mundo e para o supra-mundo, nenhuma Revelação é acessível ou possível, sequer. É, aliás, a presença do corpo que nos distingue dos anjos… quando se dá essa Descoberta que, segundo as “linhagens espirituais”, pode ser tanto um encontro com o “totalmente outro”, usando os termos de Otto Rahn, como um “desdobramento do próprio ser” que assim entra em contacto com o seu lado angelical (ou centelha divina, que todos trazem consigo) ou ainda, ambos os casos ocorrendo no mesmo ser.
 
Essa descoberta ou Revelação ou ambas, geram energia ou fogo que visa sempre a transmutação. Os adjectivos desse fogo são inúmeros e dependem também de linhagem para linhagem. Falamos em linhagem pois não consideramos que a espiritualidade se prenda única e exclusivamente com “escolas”, indo muito além do pensamento teórico e filosófico devido a inúmeros factores (genético, memórias genéticas, memórias de vidas passadas – o caso de Dalila Pereira de Costa, por exemplo, história pessoal, escolhas divinas, nascimentos com missões bem estipuladas, etc…) poderem estar presentes no seu desenvolvimento e também não falamos de evolução por ser este um termo Darwinista, não permitindo a deslocação qualitativa no espaço-tempo, sendo o termo desenvolvimento mais integrador, tanto de movimentos cíclicos como escatológicos.
 
O fogo que surge é, em altura e em figura (esguia) semelhante aos dois seres que estendem a mão para o tocar e para se tocarem, quase como se fosse um terceiro ser ou coluna/sustentáculo desse mesmo desenvolvimento. Todo o diálogo se inicia deste modo, toda a transformação é possível a partir desta evidência. Cada um dos seres tem uma espécie de pregador em forma de flor, embora com cores diferentes. Cada um possui uma forma de Sabedoria específica, pétalas falantes, revelações próprias em abertura e diálogo. Vemos então que todo este misticismo se baseia em movimento e em dinâmica, qualidade da palavra Vida, sendo a Morte, como paragem ou inércia, apenas uma face da Vida.
 
De seguida temos a obra “Tulipas”. Nela uma espécie de deusa consegue o prodígio do equilibro na mais profunda assimetrias das tulipas que dela surgem. A tulipa, mesmo depois de colhida, cresce, em água, cerca de um centímetro por dia, o que, para quem faz arranjos de flores que duram vários dias, se torna candidato à pré-visão  (imaginar qual o tamanho que a tulipa terá daí a dois dias, por exemplo, e fazer um arranjo que conte com essa característica da tulipa, não estragando a harmonia do total do arranjo), torna-se, muito facilmente, para quem com flores trabalha, num símbolo ligado à capacidade visionária. É também uma flor extremamente sensível à temperatura. Abre-se muito rapidamente se retirada do frigorífico e volta a fechar-se se voltar para ele. É, portanto, uma flor com grande sensibilidade para o calor/fogo, mudando rapidamente o que também, para quem trabalha com flores, remete para o futuro local onde a flor será instalada, se ao ar livre, se não, se num local com baixa temperatura, se não o que invariavelmente compromete o efeito que a flor virá a ter quando se faz um arranjo com ela. Assim, entre o extremamente volátil no tamanho e na forma, torna-se uma flor que requer precisão e sabedoria, uma segurança adquirida com os anos. Tal como o equilíbrio dentro da assimetria, sem comprometer a harmonia, para além de ser este um espírito Barroco, requer o conhecimento endógeno de uma certa geometria sagrada e uma segurança total. Essa segurança remete naturalmente para a existência, no ser humano, de um eixo fixo, permanente, exacto que está presente na pintura, a azul: um vidro sólido que atravessa todo o ser. Só assim, é possível o que, à primeira vista, parece ser impossível, a harmonia dentro da aparente desarmonia com que as tulipas surgem. E surgem em movimento (embora estáticas em pintura – a pintura não é cinema), ou seja, a ideia com que se fica é que estas sete túlipas se movem, se transformam em torno de um eixo, o motor Imóvel da Tradição, sendo em número de sete, “o ciclo completo, a perfeição dinâmica” (em movimento), tal como está na entrada para a palavra “Sete” no Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. O ouro que rodeia a figura, é, por si mesmo, um símbolo de realeza… a rosa central prende-se com a Sabedoria, naturalmente. Ou seja, no centro do centro, está a Sabedoria.
 
Por fim, temos a obra “O Cisne”, que nos aparece por entre flores, quase como uma parede, obrigando-nos a fazer com o olhar a separação entre dois planos: aquele que está mais perto de nós, e esse outro, o do cisne dominado, digamos assim, por uma figura humana. Mas se olharmos melhor, e podemos começar a análise por aí, o sol e a lua estão presentes. Aliás, dois sois e uma lua estão presentes como verdadeiro pano de fundo. Um dos sóis é claro, outro escuro e a lua é azulada… o mundo crepuscular, onde céu e terra se fundem, visão difusa por entre as ramagens com flores (rosas). O cisne como o que consegue não sentir nem frio nem calor, uma certa pureza inocente nas suas alvas penas, cuja curvatura do pescoço é suave e o seu deslizar pelas águas turbulentas do mundo mais suave e sereno ainda… o local, por excelência, onde se descobre que o sol é negro e que o verdadeiro sol é interior ou anterior à criação deste mundo turbulento a partir da volatilidade das águas, turbulentas e instáveis, às quais se sobrepõe o cisne deslizante, quase imperturbável na sua forma externa… um paraíso acessível. Talvez até demasiado acessível… Se assim o é, porque é que a figura o “domina” de alguma forma? Por vontade dupla de se fundir com ele e de o transcender, de estar para além dele (mundo crepuscular, lembro, onde os opostos convivem em fusão – o Regime Nocturno ou Místico lembrado por Gilbert Durand na sua obra “Estruturas Antropológicas do Imaginário”, dando este “Regime” o nome a um capítulo inteiro subdividido em vários. Um Regime, ou um estado apelativo, com intenções de permanência eterna, mas, ainda assim, demasiado acessível. Lembro a Confraria a que pertenceu Hieronymus Bosch, esse grande pintor e também visionário, cujo animal escolhido para a assinalar era um cisne que, estranhamente, acabava num prato, uma vez por ano, e comido pelos confrades numa celebração… estranho rito este, associado a este sereno animal, capaz de deslizar em ritmo permanente nas águas, símbolo de impermanência. A ambiguidade ritual é extrema, integrando o animal no corpo ao ser comido e, em simultâneo, uma espécie de “corte” com o símbolo, muito semelhante, aliás, ao “partir da cruz” de que foram acusados os Templários… talvez porque, até o próprio símbolo seja algo a transcender, tal como aquilo que o símbolo simboliza. Uma procura de liberdade total, indo para além da noite e do dia ou do crepúsculo, como símbolo apenas da verdadeira união entre sol e lua e não a união em si. Ou, dito doutro modo, a procura do Sinal (algo com apenas um sentido) mas actuante no mundo, por já ter percorrido a esfera da diversidade simbólica. Actividade só possível depois dessa viagem pelos e nos símbolos. É, então, uma obra que enuncia a complexidade iniciática e, ao mesmo tempo, anuncia uma saída do labirinto tão presente nas ramagens cobertas de múltiplas rosas ou sabedorias (e não só uma). Uma procura, portanto, da Unidade.
Certo é que a autora vê o que faz de um modo e que os observadores a verão de outros modos. Isso é certo e rico. No entanto, o acrescento de um texto é sempre bom numa época de “Imagens” praticamente mudas e sem grande significado: estamos rodeados de imagens, de manhã à noite, sem a sua dimensão da palavra (verdadeiro motor da imagem), porque provinda da Consciência. A Palavra tende para a Consciência e pode contrariar inconsciência ou subconsciência da Imagem.
Num encontro cuja proposta era a de se conversar sobre o Futuro e sobre a Tecnologia Moderna, o contraponto será sempre a Mão Humana, capaz de criar directamente a partir de uma matéria-prima e de falar sobre o Futuro, mas de uma outra maneira. De uma maneira mais artística, digamos assim.
 
Cynthia Guimarães Taveira

sábado, 29 de outubro de 2016

Sobre a leitura de António Telmo




António Telmo, um místico intuitivo e dedutivo pode se facilmente incompreendido e dificilmente compreendido. Isso advém do Espírito de quem o lê. Se há como que um Espírito Científico a presidir à sua leitura e maturação ele será facilmente incompreendido. Se há um Espírito mais Místico e Intuitivo a presidir à sua leitura e maturação acompanhada de entrega, então, será dificilmente compreendido. Em todos os casos não é um filósofo fácil porque obriga a um constante salto entre o raciocínio e a intuição. Ora sendo a intuição algo de pessoal, é necessário que duas almas se encontrem nessa intuição única. É daí que vem a dificuldade pois a sintonia entre o autor e o leitor exige, de algum modo, uma iniciação (que é tanto pessoal como universal). Para um Espírito Científico é relativamente fácil fantasiar, pois ao não ser admitida a imaginação como algo que se passa num mundo imaginal (tal como lhe chamou Corbin) e que esse mundo é todo ele floresta a atravessar como forma de conhecimento da "composição da alma", ao não ser admitida a imaginação, dizia, como coisa real, toda e qualquer tentativa de imitação da imaginação cai vertiginosamente (sem nunca ter ascendido, note-se), no reino da fantasia (parte animalesca da imaginação) e isto porque, no seu âmago, tal Espírito Científico, visa a anulação de toda e qualquer forma de ilusão, como mal, como acidente, como queda. Nesse tipo de Espírito há como que uma necessidade de uma luz transcendente sem que, no fundo, se acredite nela pois até ela vive no reino da ilusão. Estes Espíritos Científicos, são, normalmente dotados de "higiene mental" e, quando são Pessoanos (se é que há Pessoanos...), fixam-se na determinação com a qual o poeta fez a divisão entre "um Espírito ou temperamento Racional e um Espírito ou temperamento Místico", dizendo o poeta optar pelo primeiro. Não deixa de ser evidente, porém, que ainda esteja por explicar racionalmente como é que o próprio poeta parece ter caído, logo à nascença, dentro do caldeirão da imaginação, tornando-se um Obélix grandioso na criatividade e no pensamento, ao ponto de, no mundo, não existir pessoa que se equipara a Pessoa. Creio que para que tal explicação seja possível seja necessário primeiro acreditar em caldeirões, o que já de si denota um Espírito Místico pois as fórmulas de Merlin têm segredos e dão poderes sobrenaturais o que, à partida, é negado pelo Espírito Científico. O privilégio dado à higiene, e citando de cor uma autor que desconheço, é dado por aquele que a prefere à bondade... Um Espírito Científico não joga aos dados como Pessoa jogou quando jogou a obra toda num baú e a lançou nas correntes do destino. Isso denota uma crença absoluta na sorte, ou seja, no transcendente. E é graças a essa crença de Pessoa que ele é hoje lido por Espíritos diversos. Creio, por isso, que a obra de António Telmo é de extrema importância para quem se interessa pela alma portuguesa, porque até Cristo, andou 30 anos a aprender, e é a alma que aprende... O Espírito Português é a recompensa do trabalho penoso da alma. Inverter o processo é cair na mais básica ditadura e na mais básica urdidura do destino (que nunca é fácil, sorridente e saltitante) que é da de crermos que não há trabalho nenhum pela frente a não ser o ritual. Quando assim é, entra-se na mais frustrante das viagens que é aquela em que até a "saída" ou "escape" do ritual é um ritual ele mesmo, ou seja, a negação da criatividade. A negação do Jardim e nele, toda a ciência não é um fim em si mesma, mas sim, um pretexto para criar. Quando é um fim em si mesma ainda o jardim não existe, é mero esquema no papel. 

(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O moinho e a nau




Encontrei as mãos e as vozes
num moinho que nem procurei
e no brilho das espadas a sorte
que em toda a arte neguei

 
Ergui a flor do mato
como a princesa das flores
e o profeta de corpo estranho
estava na minha passagem...
 
Nesta nau de meia lua
cabe tudo o o que é
remos fundos que são raízes
que de tão fixas vão mais além
 
A meio gentes sobem e descem
a meio pesam ou não
a meio dormem a ver as estrelas
a meio gritam com o trovão
 
A meio choram com a chuva
a meio a rirem se faz sol
a meio são vento que meio é
E se a meio há terra, não há solidão
 
E lá por cima velas brancas
como sonhos a preencher
e mais acima ainda
um mastro d'ouro que tudo vê
 
Encontrei as mãos e as vozes
num moinho que rodava
e no brilho do mar toda a sorte
que por ser arte já não negava
 
E a História ficou nos livros
e no sangue da memória....
e lá no alto, no mastro d'ouro
outro sol só viu quem o viu bem
troca o passo a quem o nega
e não existe se por certo alguém o tem
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Essa esplanada tem vista para o mar? Todas têm...


 
Todas as palavras são o silencio do que vi. Vejo essas cadeiras espalhadas e nós sentados nelas, bebendo um tónico ou não, de perna cruzada, essa esplanada de gente que vem e se senta, que vem e que trás mais alguém que se levanta e sai, que se estende pela tarde na esperança de uma companhia morna. Vejo esse sentido de estar a olhar como se nele se procurasse a verdade no rosto deste e daquele. Vejo a alma calada que a todos vê, metida por dentro do silêncio que não retive.
Procuram saber todos os rostos que se cruzam, nesse passeio de fim de tarde tendo o mar como plenitude e os outros sempre por ansiedade. De se saber quem é, de se saber o que pensa, o que diz ou tem a dizer. Vejo multidões de gentes que tudo querem saber. Do outro, nesses passeios diversos da cidade, da praia, do campo que já pouco campo se sente assim com tanta gente que por ele passa.
E em mim, rostos param também, atentos aos meus olhos perguntando-me sem perguntar: quem é? O quê?
Todos se envolvem nessa explanada, nessa conversa de nada mas que tudo diz das crenças e dos dias onde tudo se passa onde tudo se comenta e se fala deste e daquele e da curiosidade que neles há. Nas perguntas dos pormenores dos trabalhos, onde estão, onde ficaram, para onde vão o que têm ou o que não têm, nos comentários sobre o estado do tempo que é sempre toda a gente embutida nele.
 
E olhamo-nos da mesma maneira que nos perguntamos porquê, mas se fizéssemos a pergunta “porquê” estremeceríamos de medo e então camuflamos o “porquê” nos outros e eles são todos os “porquês” que não ousamos perguntar porque a filosofia custa sempre uma lágrima qualquer e os outros talvez nos deem a possibilidade de um sorriso.
 
Dói perguntar porque a dúvida suspende-nos no ar quando é verdadeira. Porque é um primeiro voo de um pássaro…
 
Ah! Tantas caras e tantos olhos e tantas bocas e tantas perguntas sobre elas que são sempre as mesmas. As mesmas que trazemos do berço à cova, as mesmas esplanadas no Verão, as mesmas mesas de café no Inverno, os mesmos comentários, as mesmas horas sem uma rosa que nos trespasse.
 
E juntam-se alguns ao meu redor esperando um outro “porquê”, que seja diferente e que os tire dessas horas arrastadas das mesmas perguntas. E nada sei dizer porque só sei ver e de tanto ver apenas escrever. E tudo o que é sério só encontra lugar no papel porque as palavras ditas em voz alta fazem barulho demais no sossego que a alma tem se só lê. Porque todas as palavras ditas em voz alta soam a teatro e a cenário e a voz é como se nunca fosse tão perfeita como aquela que lê para dentro da nossa alma. É como se a manifestação da voz soasse a inconsistência pela vibração cheia de atrito no ar, e que a voz de dentro, imanente à presença atordoante, soasse de cristal, puro som,  no nosso cosmos interno.
 
Há nessa voz de dentro que nem se ouve quase a ausência de palavra. Como se essa fosse o traje do sentido. E assim, todos os sentidos explodem por dentro, nessa voz sem palavras que tudo assimila e ecoa na simultaneidade da nossa presença.
 
E juntam-se a meu redor, vêm em busca da “conversa interessante”, que não sei ter, em busca da distracção das miudezas do mundo, em busca de uma grandeza inesperada, e só lhes sei dizer que tudo o que escrevi foi esse silencio que retive. E que passei pelo mundo invisível, e que assim eles também, invisíveis uns aos outros, por não saberem que o amor, quando encontrado é só sentido absoluto das coisas, sem palavras que o valham ou leituras que o compensem.

(Cynthia Guimarães Taveira)

 

Do ver as estrelas até ao “até ver estrelas”

 
 
 
O sistema económico em que estamos absortos, para não dizer, submersos, prende-se com uma série de defeitos, muitos deles ligados à má relação que se tem com o tempo.

René Guénon sexualizou a questão do espaço e do tempo, concedendo o primeiro ao masculino, porque os homens caçavam no espaço e construíam no espaço e o segundo ao feminino porque as mulheres geravam no tempo. A questão da sexualização quando ultrapassa a fronteira do símbolo pode ter como consequência exactamente o mesmo erro que pode ocorrer quando se lê um texto considerado sagrado: a leitura literal do texto sem que ocorra profundidade qualquer nesse acto de ler e mesmo de pluralidade de interpretações. A palavra, entre as suas múltiplas facetas é também simbólica. Exactamente como qualquer símbolo, quando reduzida a um só significado perde a sua mobilidade e, ao perdê-la, perde a sua capacidade de ser coisa viva.

Temos vindo a ver ressurgir um certo gosto no paganismo, produto, em grande parte, de um crescente desejo de se regressar “à terra”, “às origens”.  Perfeitamente compreensível num mundo que construímos cada vez mais artificial. Tais movimentos são vistos como um “ai Jesus” pelas religiões monoteístas que assim assistem perplexos  (e às vezes em pânico) áquilo que consideram, por um lado uma “involução”, na base da total crença que a conquista de um só Deus é uma conquista benigna para a humanidade e, por outro, porque tais movimentos seriam a entrada no inconsciente ou subconsciente das religiões coisa que as mesmas optaram, na maioria das vezes, por não falar delas (quantas vezes apelidados de demoníacas) ou por outro ficando tais áreas reservadas a uma elite, secreta mas convertida a uma instituição (veja-se o caso de Dante e do Catolicismo).

A perpétua queda do homem no materialismo foi acompanhada pela completa inaptidão para simbolizar.

A má relação com o tempo, em termos simbólicos terá, para uma cabeça simbólica, relação com a má relação com a mulher/planeta terra/mãe natureza.

Antigamente, homens e mulheres (porque não creio que vendassem as mulheres) observavam as estrelas. O passar delas e o seu percurso pelo céu. Construíam, em seguida, autênticos observatórios astronómicos que tentavam estar em sintonia com o movimento temporal dos astros e corpos celestes. A noção e o conhecimento do tempo pareciam tão fundamentais que se construía em redor de tal coordenada terreste.

Hoje o homem, tal como afirmou Mircea Eliade, foge para a frente. Tem medo do tempo. O tempo é o grande devorador dos homens. O problema é que, nessa fuga, os gestos dos homens provocam a própria aceleração do tempo e consequentemente a contração do espaço. O tempo passa mais depressa quando o espaço é contraído.

Dizem que houve um dilúvio e que a espécie humana esteve em perigo. Se isso é verdade, e se a mulher é aquela que transporta e gera a espécie humana dentro do seu próprio ventre, então ela veio a adquirir, em termos simbólicos um excesso de zelo traduzido nos inúmeros tabus sociais de que foi alvo ao longo da história e ao longo dos monoteísmos. Ainda não ultrapassamos o trauma do dilúvio. Aliás, toda a nossa cultura tem como base esse acontecimento. A reprodução em massa da espécie humana é um sintoma de um trauma colectivo que se disseminou por formas religiosas traumáticas elas mesma. A figura feminina tem sido alvo de excesso de zelo. Sob as mais diversas formas, positivas e negativas, mas em excesso. Essa relação foi tendo importância no modo como se percecionava o próprio tempo. E hoje não entendemos o tempo da mesma maneira que Freud dizia não entender as mulheres…

A economia não pode ser sustentável enquanto no nosso mais profundo fundo traumático não esquecermos, de vez, o dilúvio. Enquanto no nosso fundo mais arcaico reinar a ideia de que ter um filho é um dever, um dever social, uma prova de amor, uma exigência da família e dos vizinhos, um desejo animal de um qualquer relógio biológico que se impõe à mulher como se esta fosse um animal com períodos de cio e não um acto simplesmente natural, enquanto não se entender que são os próprios gestos humanos que geram o tempo e a percepção que temos dele iremos sempre entrar em guerras dualistas pelo controlo do planeta.

Antigamente procurava-se andar de acordo com os ritmos cósmicos. Onde é que isso já lá vai. Começa logo pelo horário de trabalho e por relógios que não se adaptam à estrela do nosso sistema solar. De Inverno levantamo-nos de noite e recolhemo-nos quase de madrugada. O desfasamento com o tempo do próprio universo produz um desfasamento do homem consigo próprio. As consequências estão à vista. Pior que o dilúvio foi o trauma dele.

As populações ligadas à agricultura ou à recoleção tinham ainda alguma relação com o tempo. Nós perdemo-la por completo. E como a perdemos a única maneira de a recuperar será por via intelectual uma vez que já ninguém tem uma relação com o tempo natural.

Intelectualmente talvez consigamos lá chegar e, se formos capazes, isso implica a alteração total da relação que se tem tanto da sexualidade como com aquela que se tem com o tempo. Xiva, o grande dançarino cósmico na sua dança erótica sabe que a música se desenrola no tempo. O seu gesto no espaço é uma consequência do modo como percepciona o tempo. O seu gesto provoca o tempo e o espaço em gesto.

A economia tem a ver com isto. A economia é um termo que quer dizer “governo da casa”.  Neste momento até vimos estrelas com os embates. O que é muito diferente do que ficar a ver as estrelas.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

A verdade e a doutrina

Dalila Pereira Da Costa é uma mistica portuguesa que escreveu livros. Como todas as figuras de verdadeiro destaque nacional (e não aquelas que aparecem recorrentemente na TV ou nos jornais "culturais" ou nas secções culturais "anichadas" dos jornais gerais e que de "nichos" culturais nada têm, antes pelo contrário, falando sempre da mesma "espécie" de cultura que alterna entre os nomes sabidos de cor e com um prestígio de décadas e com figuras da "moda" porque a cultura está hoje entrelaçada com a moda de tal forma que quase não se distingue, às vezes... Dalila Pereira da Costa, dizia, é uma figura de destaque nacional e, como todas elas, desconhecida. Esta verdade é inevitável para quem leu a sua obra, e que são muitíssimo poucos. Mística, poetisa, visionária, ensaísta que coloca Eduardo Lourenço num cantinho no qual pouca ou nenhuma luz brilha, foi, como é usual neste país, abarbatata por leituras tendenciosas querendo colocá-la, por vezes, num altar da Igreja Católica com umas flores por baixo. O esforço foi quase inútil pois na sua obra vigoram bastantes detalhes, para não dizer imensos, de experiências e observações que contrariam as doutrinas da referida instituição.
Possuindo um mundo interior vasto e rico a sua capacidade de análise feita a partir de vivências pessoais (intransmissíveis por serem isso mesmo, pessoais), paira acima, com grande frequência, de qualquer ideia pré-estabelecida em e com  vigor numa qualquer carta fundamental de princípios.
Um dos pontos em que isso se revela está no seu relato de vidas passadas feito em consciência. Sem margem para dúvida, Dalila relata-nos, por exemplo, o Porto de outras épocas, com outra paisagem e outro sentido de tempo. Os actos imaginários, são fantasiosos para qualquer mente positiva e formatada da época. Os actos imaginários, para outras sensibilidades, contêm em si, toda a promessa de experiência e seu encontro com a verdade. A fantasia confunde-se com a imaginação para os primeiros e é mero infantilismo para os segundos.
Nesses relatos de outras vidas nos quais o véu do tempo é levantado, há um "distanciamento" tal como a autora escreve, face ao próprio tempo como se essa fosse uma condição necessária para que um outro tempo fosse visitado. É na distância de nós mesmos que tudo nos é dado ou apresentado.
A re-encarnação, aceite no oriente, torna-se motivo de reflexão.
Deve tornar-se motivo de reflexão. Não pelo motivo enganador da chamada "evolução espiritual" tão em vigor agora como se se tratasse de uma carta de condução com pontos, mas motivo de reflexão absolutamente materialista, com consequências materiais. Se voltarmos a esta terra voltamos à própria matéria que aqui deixámos. Tão simples quanto isto. Se deixarmos uma casa em ruínas é à casa em ruínas que voltamos. É o chamado "consciente colectivo" de que ninguém fala tão distraídos que andamos com o inconsciente e por isso mesmo com a inconsciência ou pura fantasia.
Há uma casa de "férias prolongadas" possíveis a que vulgarmente se chama céu. E há aquela de uso frequente que é esta. Se é um jogo de espelhos isso fica para as teologias que são sempre matérias vagas em vagas navegando nas vagas do vento.
A visão materialista das religiões e das políticas diz-nos "aí de nós, que planeta vamos dar à nossa descendência!" e no fundo não se rala. Mas e se a descendência, mais tarde ou mais cedo formos nós? Nós.
E se nós por mero capricho do destino voltássemos com a consciência exacta de que somos nós? Talvez já se perceba que o dilúvio tenha sido um mar de lágrimas e que o próximo seja um mar de fogo. O fogo é a consciência. Com tudo o que ela pode trazer. A memória, inclusive. É esta a questão fundamental que Dalila Pereira da Costa levanta quando fala de outras vidas. E até trememos.


(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 12 de julho de 2016

A desordem inaparente da escrita

 
Há um provérbio judaico que diz que Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias. Como se toda a criação do mesmo não lhe chegasse. Há na Criação, independentemente de esta ser queda ou não, uma ordem que se confunde com a matemática. Conhecendo a exactidão da matemática conhecer-se-ia a exactidão de Deus. O sustentáculo do mundo seria o número e o “jogo de dados”, (que Einstein não diz quantos são, nem os jogos, nem os dados) seria, para quem busca o conhecimento, o conforto da probabilidade e o leve esvoaçar do número como símbolo. As histórias seriam a desordem aparente de um mundo inteligente, mas fechado. Qualquer história de vida ou historieta principal seria arquétipal, ora inserida no grande enredo ora inserida no pequeno enredo que atravessa o drama teatral. De uma maneira ou de outra, viveríamos confortavelmente incrustados no drama da nossa presença. A comédia estraga tudo porque se ri do drama. A poesia invade como ondas a cidade fazendo-lhe tremer os alicerces. A profecia encarna o demónio da sabedoria e a graça o eterno problema do imprevisível e sobretudo da liberdade. O drama da nossa presença permite que haja comédia, poesia e graça.

A conversa com os deuses permite-nos perceber o nosso engano. O engano de não os sermos e o engano de os sermos. Os deuses são demasiados humanos… porque o poder é o antónimo de ser-se humano, pois este possuindo todos não possui nenhum.

A improbabilidade do sonho mais incongruente acontecer coloca em causa o jogo das probabilidades. Porque qualquer pessoa entende que não há sonhos improváveis e que a sua probabilidade de acontecer no real que se nos apresente é uma probabilidade. O acto criativo é por isso aquela probabilidade mais alta porque permite o improvável. Fora do acto criativo há o aprisionamento incondicional na matemática das histórias arquétipais, ou entendidas como tal. O “dispor” das formas que se nos apresentam e a sua permanente reorganização é apenas o lado externo do processo criativo, porque os deuses andam à solta para dentro e para fora de nós. A eternidade não é um cristal, até porque frio, só e  na escuridão do cosmos não serve para mais nada a não ser para existir. E o existencialismo é tão cansativo como a mais pura animalidade. Resume-se a uma entropia que mais tarde ou mais cedo expira.

O pressentimento da melodia, dirá Damásio, intuitivamente, resume a herança de luz que nos salvaguarda, não pelo acto imediato de identificação mas pelo acto de fusão;  identificação tem o seu quê de racional e de intencional, a fusão é irracional e sem intenção. A animalidade superior trata desta questão. O homem caminha para ser irracional e sem intenção, só assim se funde na consciência que falta aos animais. Só assim conhece. O leitor é o criativo por excelência:

“O leitor sabe que está consciente e sente que está em pleno acto de conhecer, porque o subtil relato imagético, que está agora a fluir na corrente dos seus pensamentos, manifesta o conhecimento de que o seu proto-si foi modificado por um objecto que agora mesmo se torna saliente na sua mente. O leitor sabe que existe porque, nesta narrativa, o leitor é o protagonista no acto de conhecer. O leitor eleva-se, transitória mas incessantemente, acima da água do conhecimento, sob a forma de organismo sentido, imparavelmente renovado a cada novo instante, graças a toda e qualquer coisa que afecta a sua máquina sensorial, vinda do exterior ou recordada na memória. O leitor sabe que existe e que está a ver esta página, porque a história da consciência narra um personagem, - o leitor – no acto de ver […] T.S. Elliot pode ter pensado em qualquer coisa de semelhante quando escreveu nos Quatro Quartetos, sobre uma música ouvida “tão profundamente que nem sequer é ouvida” e quando disse “tu és a música enquanto a música dura”. Pelo menos deve ter pensado no momento fugidio em que um conhecimento profundo emerge – uma união ou encarnação, tal como Eliot lhe chamou.” . (Teresa Martins Marques - Clave de sol - Chave de sombra - Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira, Editora Âncora, Lisboa, 2016. pag. 733)
As histórias que externamente contamos foram já escritas no jogo de escondidas, achadas e de novo perdidas no Jardim das Delícias. As histórias que internamente contamos estão todas por contar, situam-se na desordem inaparente da escrita. A mesma desordem que há no movimento fluente da luz. Impossível de agarrar e, no entanto, jorra.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)