domingo, 30 de junho de 2019
Os mamarrachos e as pessoas
Esta história do prédio Coutinho fez-me lembrar "a parte e o todo". Dizem os "espiritualistas" que cada um é parte do todo. Isto é uma verdade quase ao nível de La Palice. O Estado autorizou a construção do mamarracho. O mamarracho foi construído e as pessoas foram para lá. O Estado desautorizou a existência do mamarracho e as pessoas são obrigadas a sair de lá. O que os resistentes estão a tentar dizer por gestos foi aquilo que Fernando Pessoa disse por palavras: "nós não somos o Estado". O Estado põe e dispõe porque tem a tutela do "contexto". As pessoas estão inseridas no "contexto". As pessoas não gostam disso. A aplicação do princípio "espiritual" feita indiscriminadamente sem atender às diferenças dos "participantes" no "todo", gera situações destas, bizarras. Os espanhóis quando entenderam ser o "contexto" também invadiram Portugal e fizeram o cerco a Lisboa. Esta história faz-me, aliás, lembrar uma outra, muito "espiritual" que por detrás tinha apenas interesses. Há muitas histórias destas, entre mamarrachos, instituições e pessoas.
A Mensagem do Unicórnio
Hoje ofereci a "Mensagem" de Fernando Pessoa a uma menina que fazia 11 anos, e um outro livro para a idade dela. Disse-lhe que podia começar já a ler o de Fernando Pessoa que não lhe fazia mal e que mais tarde o iria compreender todo. Como ela gosta de ler sinto que lancei uma espécie de berço de verga à sorte no Nilo ou que lancei uma arca cheia de escritos para os "futuros leitores" de quem Pessoa dizia ter saudades. Há gestos primordiais que se podem reproduzir numa escala mais pequena. Dar a "Mensagem" a uma criança que gosta de ler, é um deles.
Recebi, também hoje, uma chamada telefónica de uma amiga que já não vejo há uns bons três anos. Sabendo ela do meu percurso mais-do-que-acidentado pelo mundo das artes plásticas, dos escritos no Facebook e das palestras e sabendo do facto de isso ter acabado muito mal, com o meu afastamento, metade instigado por invejosos e/ou inconscientes e a outra metade por iniciativa própria, perguntou-me ela só para confirmar: "Não te interessa nada o protagonismo, pois não?" Respondi-lhe que não e de mim para mim respondi: "prefiro ter amigos". Em certos meios ou se escolhe uma coisa ou se escolhe outra sobretudo quando se é rebelde e se sofre de insuficiência crónica de contexto de liberdade.
Este foi o meu dia a par com um churrasco de entremeada, salsichas frescas e de um bolo de aniversário altíssimo todo coberto de massapão branca como a neve e um unicórnio no topo porque esse animal está na moda entre as meninas dessa idade. Mal sabem elas das tapeçarias iniciáticas onde aparece esse animal mitológico.
Sim, diria que foi um dia puro, sem grandes voos e sem grandes complicações. Mentira. A "Mensagem" de Pessoa é tão complicada que ainda hoje se presta a diversas interpretações e as tapeçarias idem. Foi um dia puro e complicado, como tudo o vale a pena quando a alma mergulha num qualquer mitema (mitema é uma palavra inventada a partir da palavra "mito", muito utilizada por Gilbert Durand, autor francês que estudou alguns mitemas portugueses). Entre queixas, desgostos, lágrimas, o churrasco, a alegria, a celebração e símbolos que ninguém conhece porque ninguém os explicou a quem não os sabe - e quem não os sabe também não mostra interesse em saber, situação recíproca e recorrente - lá se passou o dia, com o carro meio entupido devido ao gasóleo mais barato e de má qualidade que estraga o escape. A vida é feita de alguns pormenores um pouco idiotas e de outros que, seguindo um determinado percurso, só mais tarde fazem sentido.
sábado, 29 de junho de 2019
A secura
Enchem o mundo de caveiras e de secura. Nem se zangam com o mal. Parece que o mostram de propósito. "Olhem, as caveiras e a secura". Noto-lhes um certo prazer nisso. "Um certo" é aquilo que se nota mas provavelmente têm muito prazer nisso. Os realistas são fotogénicos. Aparecem em auto-retratos tirados com uma câmara nítida. Gostam de ângulos e de sombras. Não me chegam a assustar, causam-me repulsa. É uma coisa de pele. Como a voz grave das mulheres vividas e muito sérias, pesadas, que vêem o realismo por toda a parte. As causas por todo o lado. As injustiças mais graves como alicerces da sua voz. É o mesmo timbre, numas e noutros. Um realismo negro, lamacento, trágico, ossificado, exposto. Exposto com gosto. Exposto como um desgosto que se alimenta todos os dias de tal modo que as palavras se toldam, e outras nunca aparecem no que dizem. A luz, a cor, a alegria, a vida, o amor, a exaltação, a curiosidade, a vibração, a serenidade, palavras assim nunca aparecem. Nunca são ditas. São as palavras proibidas da sua alma escura. Realista. Neo-realista e realista de novo. Tantas vezes quantas vezes quantas tiverem de ser. Numa insistência mórbida de que a realidade é assim. Mas é assim de uma forma absoluta. Dramática. Para sempre injusta, e nunca redimida porque isso seria o fim das causas e da sua própria existência. Na minha terra não é assim. O sofrimento existe mas os gestos levantam-se, a luz aparece, a serenidade é a realidade. A serenidade propaga-se. É uma vibração momentânea que faz sucumbir todas as injustiças, todas amarguras. Há uma alegria qualquer que se adivinha no centro e que traz paz. Os extremo-realistas, como lhes chamo, chegam a ser crúeis. Não penso que sejam lúcidos porque neles não há luz. Só causas. Os lúcidos descontraem-se. Os extremo-realistas pensam-se justos. Tem essa imagem de si como se fossem os sustentáculos do mundo. O escárnio, o desprezo, a violência, a falta de escrúpulos com que expõem aquilo que é injusto tornam-nos a sombra da própria justiça. São uma sombra da justiça, a sombra da asa de uma águia. São assustadores. Geram à sua volta o sentimento de dever, nunca de liberdade. Sacrificam tudo à sua volta. Esquecem-se de devolver a alma aos seus discípulos quando já não precisam dela. São realistas demais para acreditar nela sequer. Só acreditam nos golpes. Nas revoluções, nas mutações rápidas. Atiram-se todos os dias para a via breve sem perceber que secam tudo. E não o fazem virtualmente. Fazem-no na vida real. São tristes e amargos. Não conhecem a alegria. Nunca a conheceram ou se a conheceram, esqueceram-na como uma fraude da alma que é sempre fraudulenta. Cheiram e soam a amargo. Dão gargalhadas sonoras mas vazias. Nada vive dentro deles porque a justiça que julgam ser os aniquilou por dentro. Talvez, de algum modo, tivessem reclamado esse realismo para si mesmos e tivessem sucumbido por dentro. Porque o seu realismo não é a realidade. É uma parte dela apenas, que os invade, os desmonta, peça por peça, até renascerem como bonecos articulados, soldados justiceiros que julgam escrever eles mesmos o destino. Nascem como se fossem Deus, e como se soubessem exactamente o que é Deus. Mas esse realismo é suspeito. Faz arrepiar a pele para quem tem uma alma viva por debaixo dela. Sente-se essa gruta negra. Sem luz. E, no entanto, parecem as pessoas mais justas do mundo. Mais indignadas do mundo. Mas há nelas, um certo prazer na exposição das injustiças. Um certo sadismo. Uma certa sede de poder. Há qualquer coisa de profundamente errado nos extremo-realistas. Talvez não criem, não sonhem. Talvez não sonhem. Não sonham porque o sonho é da alma. Nunca se recompõem. Renascem simplesmente como aliens depositados dentro de humanos. Calam-se por instantes e aparecem subitamente. Com a mesma força. Com a mesma indignação. Com o mesmo ataque. O que está profundamente errado nos extremo-realistas é a repetição. É anti-natura. Não são naturais.
sexta-feira, 28 de junho de 2019
Já não...
Já não encontro personalidades com personalidade. O que encontro são personalidades com um caderno de encargos que estão sempre em dívida para com as ideias, deles mesmos ou de outros. As personalidades com personalidade nada deviam, em cada gesto ficava saldada a distância de si para si. A máscara escondia e revelava o ser. Hoje, a máscara esconde a ideia de se ser ou uma vaga ideia do ser.
O caminho deles
Almada Negreiros descobriu-se Pitagórico, Fernando Pessoa descobriu-se, com assombro, Templário. O processo criativo deles foi do mar à fonte. Pelo caminho foram deixando beleza, a beleza da beleza e beleza do pensamento.
Horizonte
Aparentemente são as crianças e os próximos que entendem os pólos. Os próximos porque conhecem o eixo, as crianças porque são livres. Entre estar nos eixos e estar fora deles estão os pólos. A falta de ambição seca os sorrisos porque confundem a ambição com a conquista interior. Os próximos e as crianças sorriem sempre. Os próximos porque embarcam na mesma aventura, as crianças porque se vestem de capitães e vão na proa do barco. Os ambiciosos nada percebem das conquistas porque nada percebem da liberdade. A maior conquista é um livro essencial cair no nosso colo. Não é procurá-lo, não é desejá-lo. É alguém ir a passar e colocar literalmente um livro essencial no nosso colo, sem que tenha sido pedido. Nessa altura o interior é igual ao exterior. A maior conquista é essa simultaneidade, onde todos os pólos se anulam e nasce a ordem sem o mínimo de ordem aparente e com toda a ordem interna presente. A maior conquista é conquistarmo-nos. A ambição é uma vendida, passiva, aparentemente activa. É tudo o que a conquista não é e é o inverso dela.
A Passagem
A linha que vai do clássico ao moderno, por ser continua e não descontínua, é de difícil execução. No bailado moderno são frequentemente visíveis gestos desconexos, angulosos e despropositados como se os bailarinos fossem comandados por um mecanismo que se avariou. É dificílima essa passagem na arte do gesto que foi a primeira forma de arte. A continuação da elegância e do equilíbrio numa forma de expressão inovadora obriga a uma passagem subtil, sem cortes demasiado visíveis mas onde se vislumbra todo o perfume do passado invadindo o futuro. São raros os artistas que conseguem fazer essa passagem. Vi poucos. Na literatura, os vanguardistas que descobriram a Tradição foram obrigados a verificar que essa passagem é possível. Uma espécie de Yin e Yang com as pintinhas a cores complementares que significam a geração num movimento pendular. Penso e volto a pensar nessa passagem da Idade do Ferro para a Idade do Ouro e para o facto de ela se dar subitamente e ainda no esquema visual da espiral colocada a duas dimensões no qual o centro da circunferência é a tangente do círculo seguinte. Só tocando no âmago do centro se alcança o ciclo que se segue. Procurar o centro é, portanto, procurar o perímetro da Idade do Ouro numa perspectiva bidimensional que é aquela que mais se aproxima do rito porque é a síntese terrestre das quatro dimensões. Os desenhos das crianças sem perspectiva (a terceira dimensão), originam a proximidade imediata do figurado com o observador. A figura não está projectada no espaço porque toda ela é um ponto sem a terceira dimensão, a profundidade e, sendo um ponto, eclode como coisa que É, ou seja, como força central. Daí a força de alguns ícones. Essa noção de centro nos ícones é de tal modo importante que a última coisa a ser pintada são os olhos. Se os olhos falham, falha toda a pintura. E os olhos, no ícone, são o centro. Essas figuras bidimensionais são a síntese das quatro dimensões porque o centro que evocam não só é profundo, como um olhar pode ser, como evocam a quarta dimensão, a invisível como sugestão acrescida da do centro ou como seu desenvolvimento natural. Tal e qual um ritual se for bem elaborado. Na Última Ceia de Leonardo as figuras surgem quase plasmadas numa encenação a quase duas dimensões ficando a terceira, a perspectiva dos painéis atrás num plano secundário. Se retirarmos todo o fundo dessa pintura e ficarmos só com as personagens em nada se perde a sua força. Não é, portanto, a noção de perspectiva que dá força e ritmo às personagens. São elas mesmas, como que constituídas de pontos centrais que são o próprio centro, muito na esteira da arte egípcia.
A linha que vai do clássico ao moderno é assim tão subtil como essas duas dimensões que sugerem outras duas, a passagem é subtil, o resultado é radical.
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