sexta-feira, 28 de junho de 2019

A Passagem


A linha que vai do clássico ao moderno, por ser continua e não descontínua, é de difícil execução. No bailado moderno são frequentemente visíveis gestos desconexos, angulosos e despropositados como se os bailarinos fossem comandados por um mecanismo que se avariou. É dificílima essa passagem na arte do gesto que foi a primeira forma de arte. A continuação da elegância e do equilíbrio numa forma de expressão inovadora obriga a uma passagem subtil, sem cortes demasiado visíveis mas onde se vislumbra todo o perfume do passado invadindo o futuro. São raros os artistas que conseguem fazer essa passagem. Vi poucos. Na literatura, os vanguardistas que descobriram a Tradição foram obrigados a verificar que essa passagem é possível. Uma espécie de Yin e Yang com as pintinhas a cores complementares que significam a geração num movimento pendular. Penso e volto a pensar nessa passagem da Idade do Ferro para a Idade do Ouro e para o facto de ela se dar subitamente e ainda no esquema visual da espiral colocada a duas dimensões no qual o centro da circunferência é a tangente do círculo seguinte. Só tocando no âmago do centro se alcança o ciclo que se segue. Procurar o centro é, portanto, procurar o perímetro da Idade do Ouro numa perspectiva bidimensional que é aquela que mais se aproxima do rito porque é a síntese terrestre das quatro dimensões. Os desenhos das crianças sem perspectiva (a terceira dimensão), originam a proximidade imediata do figurado com o observador. A figura não está projectada no espaço porque toda ela é um ponto sem a terceira dimensão, a profundidade e, sendo um ponto, eclode como coisa que É, ou seja, como força central. Daí a força de alguns ícones. Essa noção de centro nos ícones é de tal modo importante que a última coisa a ser pintada são os olhos. Se os olhos falham, falha toda a pintura. E os olhos, no ícone, são o centro. Essas figuras bidimensionais são a síntese das quatro dimensões porque o centro que evocam não só é profundo, como um olhar pode ser, como evocam a quarta dimensão, a invisível como sugestão acrescida da do centro ou como seu desenvolvimento natural. Tal e qual um ritual se for bem elaborado. Na Última Ceia de Leonardo as figuras surgem quase plasmadas numa encenação a quase duas dimensões ficando a terceira, a perspectiva dos painéis atrás num plano secundário. Se retirarmos todo o fundo dessa pintura e ficarmos só com as personagens em nada se perde a sua força. Não é, portanto, a noção de perspectiva que dá força e ritmo às personagens. São elas mesmas, como que constituídas de pontos centrais que são o próprio centro, muito na esteira da arte egípcia.
A linha que vai do clássico ao moderno é assim tão subtil como essas duas dimensões que sugerem outras duas, a passagem é subtil, o resultado é radical.

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