sábado, 29 de junho de 2019
A secura
Enchem o mundo de caveiras e de secura. Nem se zangam com o mal. Parece que o mostram de propósito. "Olhem, as caveiras e a secura". Noto-lhes um certo prazer nisso. "Um certo" é aquilo que se nota mas provavelmente têm muito prazer nisso. Os realistas são fotogénicos. Aparecem em auto-retratos tirados com uma câmara nítida. Gostam de ângulos e de sombras. Não me chegam a assustar, causam-me repulsa. É uma coisa de pele. Como a voz grave das mulheres vividas e muito sérias, pesadas, que vêem o realismo por toda a parte. As causas por todo o lado. As injustiças mais graves como alicerces da sua voz. É o mesmo timbre, numas e noutros. Um realismo negro, lamacento, trágico, ossificado, exposto. Exposto com gosto. Exposto como um desgosto que se alimenta todos os dias de tal modo que as palavras se toldam, e outras nunca aparecem no que dizem. A luz, a cor, a alegria, a vida, o amor, a exaltação, a curiosidade, a vibração, a serenidade, palavras assim nunca aparecem. Nunca são ditas. São as palavras proibidas da sua alma escura. Realista. Neo-realista e realista de novo. Tantas vezes quantas vezes quantas tiverem de ser. Numa insistência mórbida de que a realidade é assim. Mas é assim de uma forma absoluta. Dramática. Para sempre injusta, e nunca redimida porque isso seria o fim das causas e da sua própria existência. Na minha terra não é assim. O sofrimento existe mas os gestos levantam-se, a luz aparece, a serenidade é a realidade. A serenidade propaga-se. É uma vibração momentânea que faz sucumbir todas as injustiças, todas amarguras. Há uma alegria qualquer que se adivinha no centro e que traz paz. Os extremo-realistas, como lhes chamo, chegam a ser crúeis. Não penso que sejam lúcidos porque neles não há luz. Só causas. Os lúcidos descontraem-se. Os extremo-realistas pensam-se justos. Tem essa imagem de si como se fossem os sustentáculos do mundo. O escárnio, o desprezo, a violência, a falta de escrúpulos com que expõem aquilo que é injusto tornam-nos a sombra da própria justiça. São uma sombra da justiça, a sombra da asa de uma águia. São assustadores. Geram à sua volta o sentimento de dever, nunca de liberdade. Sacrificam tudo à sua volta. Esquecem-se de devolver a alma aos seus discípulos quando já não precisam dela. São realistas demais para acreditar nela sequer. Só acreditam nos golpes. Nas revoluções, nas mutações rápidas. Atiram-se todos os dias para a via breve sem perceber que secam tudo. E não o fazem virtualmente. Fazem-no na vida real. São tristes e amargos. Não conhecem a alegria. Nunca a conheceram ou se a conheceram, esqueceram-na como uma fraude da alma que é sempre fraudulenta. Cheiram e soam a amargo. Dão gargalhadas sonoras mas vazias. Nada vive dentro deles porque a justiça que julgam ser os aniquilou por dentro. Talvez, de algum modo, tivessem reclamado esse realismo para si mesmos e tivessem sucumbido por dentro. Porque o seu realismo não é a realidade. É uma parte dela apenas, que os invade, os desmonta, peça por peça, até renascerem como bonecos articulados, soldados justiceiros que julgam escrever eles mesmos o destino. Nascem como se fossem Deus, e como se soubessem exactamente o que é Deus. Mas esse realismo é suspeito. Faz arrepiar a pele para quem tem uma alma viva por debaixo dela. Sente-se essa gruta negra. Sem luz. E, no entanto, parecem as pessoas mais justas do mundo. Mais indignadas do mundo. Mas há nelas, um certo prazer na exposição das injustiças. Um certo sadismo. Uma certa sede de poder. Há qualquer coisa de profundamente errado nos extremo-realistas. Talvez não criem, não sonhem. Talvez não sonhem. Não sonham porque o sonho é da alma. Nunca se recompõem. Renascem simplesmente como aliens depositados dentro de humanos. Calam-se por instantes e aparecem subitamente. Com a mesma força. Com a mesma indignação. Com o mesmo ataque. O que está profundamente errado nos extremo-realistas é a repetição. É anti-natura. Não são naturais.
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