segunda-feira, 28 de junho de 2021

A casa

 


As cores daquela casa no caminho são aquelas de vestir a alma, protegem-na e revelam-na. As cores dessa casa têm palavras escritas e falam da demanda infinita da procura da casa com cores de vestir almas que demandam por casas. Há algo de surreal nela, pois achando-a, dissolve-se no ar e passa a viver dentro de nós. As suas cores mostram que o poente, à hora do nascente sol, tem as cores do nascimento do sol. Tanto é que não há diferença, olhando para poente ou para nascente. Tem as portas abertas, como quem convida a entrar. Tem as janelas abertas como quem demonstra a esperança. Estava ali no caminho a casa, dissimulada na vegetação. As divisões nuas. Os olhos de alguém que espreitava embora não se soubesse quem. A casa tinha todas as respostas, nas palavras e nas cores e embora as palavras fossem visíveis, eram palavras secretas. Se se estendessem os braços para entender a posição do sol, ele nasceria nas duas palmas da mão em simultâneo. Era a casa que esperava por nós. Anos se fosse preciso. E foi o que ela fez. Durante anos, calada no silêncio das ervas daninhas, das roseiras que se tinham tornado selvagens e iam além dos muros. Evaporou-se no ar, deixando a sua impressão funda na alma, como uma tatuagem, mas muito melhor do que isso pois os anos não passavam por ela. E tornamo-nos nós mesmos em mistério. Antes disso, tínhamos sido apenas palavras sem segredos. Hoje até a nossa respiração se repercute no ar e leva as impressões da alma pela ponte dos nómadas, assim chamados por atravessarem as fronteiras do céu como se não existissem. E para eles não existem. Essas impressões desaparecem no fim da ponte, do outro lado, numa espécie de nevoeiro e delas nada mais sabemos. A nossa nova composição é toda feita de segredos, dispersando-se como vapores. E cada passo dentro da casa vivente dentro de nós, é um som pelo espaço, e cada gesto uma concentração de forças onde o tempo se anula e nos aparece com outro aspecto e outra essência,  como vontade. E não vale a pena retirar o quer que seja deste texto se não se tem essa casa a viver em nós, se assim for, se não se deu com ela no caminho, apenas uma casca partida como valor poderá ser retirada deste texto. Até que se comunique com o coração, toda a demanda é a longa pena das penas. 

Mas se se der com ela, serão a face do mistério e darão o rosto ao sol com todo o esplendor que uma águia possui. 

sábado, 26 de junho de 2021

Sei-a de cor



A beleza de musica Celta, sei-a de cor. São arvoredos que passam por nós enquanto passamos por eles a cavalo. E não há diferença entre nós e eles. Vi que passavas na imensidão do espaço a voar, trazendo na mão a vara de Hermes e, nos pés, as asas de Mercúrio. E sorriu-te a deusa. Já ouviste falar no gesto mais humilde capaz de erguer as montanhas do mar? Já ouviste falar daquela que traz o eixo e o leva para onde quer que vá e que, por onde passa, deixa a alma imensa guardada no coração daqueles que outrora dormiam entristecidos pelas trevas?  E daqueles que, se a abandonam, mais tristes ficam do que já eram? Já soubeste alguma vez, do segredo da natureza? Que ele está na linguagem que se esconde no espírito, escondido, por sua vez, no corpo? Já te sentiste nómada no teu próprio corpo? Infinitamente, ninguém a pára. Olha que ela traz Deus com ela, a sussurrar-lhe ao ouvido a Sua glória e a retirar-lhe os véus sucessivos que a cobrem. Já reparaste que a donzela dorme e morre com um olho aberto e outro fechado e segurando na mão, Argos, o grande pássaro-universo que faz o mesmo? Já ouviste os seus passos enquanto dança?  Já pressentiste a alegria do seu coração? Já lhe disseste bom dia? Já ela desceu sobre ti com o seu beijo de morte, com o seu corpo de vida? Vê como dança quando fecha os olhos. Vê como se eleva e sobe acima do telhado. E mais do que voa, absorve as estrelas e mais corpos celestes existentes. Já a ouviste rir? Já viste o azul no fundo dos seus olhos? Já deslizaste com ela pelos espaços ocultos que não queres desvendar? Vem, e vê como segura a vida numa só mão enquanto cavalga pelo arvoredo e o arvoredo por ela. Porque és homem, tens os olhos baços quando entristecem demais. Quando isso acontece ficas, tão depressa, tão perto de seres um morto vivo. Mas ela não. Ela não, porque não necessita nem de ideias, nem de guerras. Vê, como balança de um lado para o outro, na balança, e brinca aos corações e às penas. E nos pés tem sandálias de flores e já não pisa o inferno há muito. E diverte-se. E diverte-se. E dança. Pulsa coração, pulsa coração e invade o mundo com o teu coração de alegria. É conquista dela. É a sorte dela. Cavalga pela floresta e a floresta está nos seus cabelos e a brisa é o seu vestido e o piar dos pássaros instalou-se na vertigem da sua dança. Procuras como um cego. Ela não procura. A música Celta, sei-a de cor. Dança-a ela de cor. Bom dia, diz a criança a meio da tarde. E só ela ouve o sol a nascer a meio da tarde. O coração pulsa com o sol. Faz nascer o sol a meio da tarde. Anda a correr dizem. Só se ouvem os cascos, tão depressa vai ela a passar. Ela é a pura dança. O sim e o não e o júbilo infinito. Não há poeta que a descreva nem homem que aguente o seu amor sem morrer. A floresta fria tornada quente, quando ela passa e as flores se abrem. Porque ela é o sol. E faz de todas as horas do dia uma aurora. A música Celta, sei-a de coração. 


 

Filosofia e pedagogia


 O problema é que a filosofia parte do desassossego sucessivo da alma e não da lógica formal, fria e geométrica da soma a atingir  dos vários pontos de vista possíveis e ninguém, no seu juízo perfeito quer desassossegados à sua frente numa sala de aula. É por isso que a filosofia pode nascer apenas de uma relação única entre mestre e discípulo e não pode nascer da relação desoquilibrada entre uma massa de alunos e um professor. O pedagogo não é um mestre, é um introdutor no mundo. Um mestre, faz o contrário, retira o discípulo do mundo. A filosofia não é questionar. É encontrar. A questão fica para os pedagogos. Como fica para os matemáticos ou para os físicos. A sabedoria é uma melodia, completa onde a questão está submersa, podendo emergir ou não. O problema das questões foi demonstrado pelo sofismo; elas já contém a resposta. É sob este prisma que as questões introduzem as pessoas no mundo, a sabedoria, por seu lado, é inquestionável. Até Platão se limitava a demonstrar e Agostinho da Silva tentava fazer o mesmo. Para eles, as questões eram uma brincadeira porque sabiam que vinham grávidas com a resposta, verdadeira ou falsa. A filosofia, ao retirar o filósofo do mundo prova o desfasamento que existe entre o filósofo e o mundo e isso só acontece quando há inquietação. A curiosidade é uma coisa, a inquietação é outra. A primeira é cerebral, a segunda arrasta a alma toda com ela. Os Descobrimentos são produto de uma enorme inquietação, só mais tarde se transformaram em curiosidade. O povo português é inquieto e por isso é eufórico e disfórico, tende a sair do mundo, por excesso de mundo e por excesso de ele próprio e é assim que é ingovernável. Não há tutor, nem governante que o ature. A filosofia não se ensina, vive-se. O que se ensina são perguntas e nelas se morre, se obedece passivamente às respostas. Uma alma passiva não é filosófica. A passividade nada tem a ver com a paz profunda, mestrado da filosofia... O topo da inquietação. 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

A escola digital



 Soube hoje que a União Europeia quer que os miúdos façam testes por via digital e que as escolas se têm de preparar para isso. O valor das mãos humanas está cada vez mais reduzido a nada e vai estar cada vez mais e a ignorância, só não dá cabo da espécie humana porque lá em cima não querem. Por este andar, qualquer dia, na escola primária, não vão desenhar letras, vão carregar em botões. Se os ignorantes soubessem o que é o corpo e a forma como o espírito se manifesta nele, nas veias, no sangue, no coração, nos ossos, nos músculos, dariam muito mais valor à capacidade que o espírito tem de sair do corpo e de se manifestar no gesto, mas os ignorantes são isso mesmo, ignorantes e não sabem da dimensão sagrada do Homem, quantas vezes só tornada visível pelas obras que se fazem com as mãos e não com as máquinas? Quando tomam conta do ensino, os ignorantes, geram mais ignorantes, aliás, é esse o seu único propósito porque não conhecem outro a não ser a reprodução animalesca deles mesmos e, para isso, formatam o ensino como se este fosse coisa inerte e morta e não coisa viva e em constante movimento. Iremos ter uma geração de gente formatada, com bom comportamento porque nunca pegou o touro pelos cornos nem a pena pelas suas penas... Irão ser todos filósofos com perguntas pré-estabelecidas pelas aulas de "filosofia para crianças" que sabem papaguear e não pela alma e às quais nunca darão respostas porque se esqueceram do corpo. É vê-los agarrados à tecnologia como se fosse o seio da mãe, mamando bites e jigas com impulsos elétricos, o máximo da emoção que conseguem. Os mais velhos dos jovens já andam por aí com ar de indiferença, mas muito a favor dos "valores humanos" se lhes perguntam. E o máximo que conseguirão alcançar, estará ao nível da paróquia e da catequese, pensado que, desse modo, estarão a salvar o mundo com ",hortas biológicas". Enquanto isso, os Gates  (portões), riem-se e zombam e rebolam a rir porque o lucro é todo deles para poderem ser, no fim da vida, os "salvadores dos escravos" que geraram durante a maior parte da sua vida. Mas agora não, são filantropos famosos, já velhotes, que tentam mostrar obra caridosa e em grande, para ser bem vista por todos e copiada pelos tais escravos, que não vão além do nível da paróquia e da catequese, o máximo que conseguem alcançar. A palhaçada em que o mundo se está a tornar é coisa séria e não é com emojis lacrimejantes que saímos do circo. Infelizmente, é pela resistência calada, como quem tem um segredo, como quem "tem um filho mesmo pelo coração" e que nasce com o grito de Atena, sempre que, pela noite, no seio do silêncio, alguém se lembra do que é o ser humano e se faz ouvir no lugar mais secreto onde reside o Espírito. Só através dessa resistência, se sai do circo das quimeras. 

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Dizer coisas



 


Uma pessoa minha conhecida lá do norte disse que sim, que seria bom um almoço aqui para o sul até porque, desse modo, também poderia "dizer coisas", isto depois de eu lhe escrever a recordar  os bons velhos tempos. Não fosse uma certa característica que me assola desde a nascença teria entendido mal este "dizer coisas" e teria provavelmente sentido uma ligeira ofensa ou uma breve mágoa. Mas, fora do contexto, este "dizer coisas" como resposta não é nada daquilo que parece. Isto é linguagem de guerreiros. Imediatamente uma gargalhada foi solta à leitura da resposta. É que há quem "diga coisas" e há quem saiba que  "dizer coisas" não é nada perante certas coisas. "Dizer coisas" é para os faladores. "Viver e morrer coisas", é outra coisa. 

segunda-feira, 14 de junho de 2021

A ciência

 


Há já muito tempo que a ciência, por mais livros muito interessantes que surjam a dizer o contrário, está apenas e unicamente ao serviço da tecnologia. Já parte, aliás, nas suas "descobertas" (que são sempre parciais porque não contemplam a intervenção de outras dimensões e, quando contemplam limita-se a observar os efeitos, quantas vezes com respostas apressadas a esses mesmos efeitos) do princípio que, mais tarde ou mais cedo, a "descoberta" (que na maioria das vezes é apenas o último culminar de um qualquer mecanismo - Descartes deve estar a esfregar as mãos de contente), irá ser útil, para isto ou para aquilo. Esse tipo de espirito científico está até presente nas "aplicações práticas" da suposta espiritualidade, quantas vezes confundida com simples medicina do corpo ou da mente. Bachelard afirmou, na sua epistemologia, que o conhecimento científico é feito pelo erro, pela correcção do erro e pelo vindouro erro que em seguida se irá corrigir. Falava ele em termos teóricos. A tecnologia apressada veio a fomentar a ciência apressada de maneira que é uma ciência, ainda cheia de erros que é aplicada imediatamente na tecnologia, por causa do lucro (e nada mais) que fica contagiada por esses erros. Há uns poucos dias, esse apetite pelo lucro conduziu a uma afirmação tão estúpida quanto um cientista pode ser: "queremos ver as universidades (que se dedicam à ciência) com pessoas com cabelos azuis". Isto porque querem inserir, nos cursos de ciências, cadeiras "criativas", "artísticas" de maneira a fomentar a criatividade dos jovens estudantes e (isso não disseram) a tornar a ciência e os seus resultados práticos, ainda mais competitivos e geradores de maior lucro. Só de facto um especialista, já acocorado numa qualquer especialidade na sala do saber, estará prestes a saltar (Caim estava acocorado quando deu um salto e matou Abel - ou seja, a animalidade é algo que está acocorado sempre prestes a ser despoletada) para tentar um último golpe, qual Da Vinci perdido em máquinas de guerra... para o tótó (que não tem outro nome) que disse tal frase, ser artista tem um sinal visível (na ciência tudo tem de ser observado, medido), e esse sinal é o cabelo azul... nem um adolescente cai nessa armadilha tão depressa, soterrados, que estão os jovens, em bandas desenhadas que viram na infância com visuais excêntricos. Diz-se que Leonardo levava sempre a Gioconda com ele e que, de vez em quando, lhe dava umas pinceladas. É a vantagem de um génio. Por dentro da Gioconda podem estar imensos estudo de cadáveres dissecados para melhor compreender a anatomia humana ou a forma como um ser humano sorri... no entanto, aquelas pinceladas, a técnica do esfuminho, estão já noutra dimensão. Uma dimensão que já nada tem a ver com a ciência, a dimensão onde o espírito e a matéria se cruzam, algo só acessível aos génios e artistas e não aos génios e cientistas. Nesse mundo espiritual, a intenção é o mais do que tudo - isto é desconhecido pela maior parte das pessoas - e partir do princípio de que os cientistas deverão desenvolver a criatividade artística para produzirem melhores resultados que depois serão imediatamente aplicados na tecnologia, é obra do diabo. Sim, do diabo que quer enganar Deus e não consegue nem vai conseguir nunca. Se estudassem um bocadinho deveriam saber que o efeito já está na causa e essa é a pedra de toque com a qual a ciência, tal como está e como anda, nunca descobrirá. Vivemos num mundo físico e químico balizado pelas estruturas espacio-temporais, no entanto, ele só assim se mantém, não por causa da termodinâmica (isso é um sub produto), mas sim porque o Espírito o mantém. É por isso que os efeitos da ciência, que se comporta como uma menina mimada dentro de um palete vazio e desalmado, tem sido o prolongamento da vida triste humana, do seu lado mais desolado, perdido, fragmentado, ausente, ignorante e por aí fora. Conseguem o prolongamento da máquina, mas não do espírito e daí que o seu sonho esteja com os robots ou uma mistura de humanos e máquinas, ou do reino vegetal (que contém o mineral) e animal, híbridos longe do espírito, facilmente manipuláveis a uma vontade que lhe é superior, humana (tal como o ser humano é entendido pela ciência e não com a carga espiritual que lhe é inerente) ou seja, exactamente o oposto do Espírito que se move num reino que se situa para além da física, da química, do espaço e do tempo e que, por isso, possui doses de liberdade extra (daí que sopre ou seja um sopro), totalmente incapazes de serem alcançadas por este pensamento científico tal como se encontra actualmente devido, exactamente, à tão menosprezada "intenção". Outro problema com o qual se depara esta "brilhante" ideia dos cabelos azuis nas universidade é aquele com que hoje nos deparamos: todos são artistas, criativos e projectam uma imagem de criatividade, de "conseguimentos", de variedade de formas e de cores... E nunca ouve tão pouca arte como nestes dias. É o paradoxo mais genial concebido pelo destino dos povos e a prova provada de que a Arte é, não apenas o resultado, como todo o processo, do berço até à glória. E não há maior prisão do que esse processo e não há maior liberdade do que essa glória. E conseguem coexistir. Fundir-se até. O paradoxo actual é o de se conseguir um resultado sem se passar pelo processo e daí que tudo nos pareça um milagre. Mas é de plástico. Como de plástico é uma geração que cresceu agarrada aos computadores e ao espírito cientifico e que pinta o cabelo de azul e que frequenta umas aulas de escrita criativa e cumpre com o que lhe dizem para ser e nunca, mas nunca, ouve o seu próprio coração, a sua voz interior, a única que está perto do Espírito... No oriente, os discípulos de qualquer arte, esperam dias, meses, anos a fio para serem recebidos em casa do mestre. Faz parte do processo artístico que é um processo cosmogónico. Reparem na diferença. Não é pequena. Logo, desde o início, o espírito tem de estar na matéria, senão não aguenta. Desiste de bater à porta do mestre e vai-se embora. Pensar que a criatividade é banal é pensar que a arte é banal. Ela só é gratuita porque é uma dádiva do Espírito. Sem isso não há nada. Ela não é gratuita porque se pode frequentar aulas de criatividade, ainda por cima com más intenções ou antes, com as intenções erradas... como vêem tudo começa no começo e não no fim, porque no processo artístico, os meios não justificam os fins e os fins não justificam os meios. Estão unidos desde sempre, por toda a eternidade, não se auto-justificam. São um só. Foi com uma gargalhada misturada com um esgar que li a história do cabelo azul. A ciência sabe mesmo ser estúpida quando quer e quando não quer. E erra muito. E não, não é Deus. Isso queria ela... e quer convencer todos. E muito já a olham como se o fosse. E obedecem, como escravos. A arte é outra loiça. São luvas de pele de tigre nas mãos de uma donzela. Sempre prontas a saltar. Acocoradas, e prestes a acariciar Deus. 

domingo, 13 de junho de 2021

Parabéns, meu amor


 Olá meu amor. Vejo que continuas a olhar cá para baixo com olhos de poeta e coração de cavaleiro. Por aqui, continuamos numa roda-morta. Não se vê no horizonte nada que se pareça com D. Sebastião, embora a esta hora precisa em que te escrevo, do mar, venha aquela névoa espessa e inflamada pela luz do sol que se encontra mais a oriente, por ainda não ser meio-dia. Os homens, por aqui andam trágicos. A pior tragédia de todas que é aquela que acontece quando, no meio da tragédia, todos se julgam numa comédia. Lembras-te do teu futurismo, cheio de sons, de burburinho, de agitação e de um contágio aflitivo de palavras ininterruptas? Tudo isso se espalhou por todo o planeta. Não há canto dele, onde existam homens, onde não esteja presente a febril existência frenética das acções dos homens. Em compensação, os pensamentos são sempre os mesmos e contam-se pelos dedos das mãos. Na tua época, tudo era cinzento, ensombrado pela Primeira Guerra e pela vinda da Segunda, hoje, se aqui viesses, verias que está tudo colorido e que estranhamente, essas cores, parecem tristes. Isto passa-se porque são de néon. Aquele néon que brilha na noite e que nos torna ainda mais sós. As cores que se passeiam não correspondem ao que vai  dentro dos seres que estão a preto e branco e andam mais perdidos do que nunca. É por isso que não te escutam, nem te sabem ouvir nas entrelinhas do quotidiano. Passo pelo mundo como se este fosse já uma lembrança. É a única forma de manter um pedaço de vida. Viver num futuro diferente do Futurismo. Também não é bem Alberto Caeeiro, esse futuro, porque tem um toque de céu cheio de requinte que se cola aos gestos, às vestes, aos pensamentos. É uma mistura da simplicidade da natureza de Caeiro com a elegância de Ricardo Reis e a espontaneidade de Álvaro de Campos. Esse futuro é todo o meu sonho, composto por anarcas simples, requintados e puros. E o teu, que anteviste, ainda em fragmentos. Mas está tão distante no tempo como próximo é o sonho. Enquanto se espera, porque pouco ou nada há mais a fazer a não ser esperar, (vivemos num tempo de espera que se julga actuar), ainda, serenamente, passamos pela multidão, numa invisibilidade, mais do que nunca desejada e imaginamo-la um mar de gotas juntas, compondo uma massa colorida, como um mar estranho, subitamente invadido por anémonas à superfície, perdendo os azuis... e bem sabes o que significa o azul, no céu e nas flores... Continuo a morrer de saudades tuas. De te ver ao virar da esquina, ensimesmado e surpreendido por me encontrares. Aquela figura feminina que te amava em segredo e fingia com um sorriso tímido estar só a passar ali por acaso, estar só a passar pelas tuas palavras, como quem não as quer e as encontra como flores no campo colhidas à sorte. Como se em ti houvesse acaso, e em nós não houvesse por ti, o amor mais conseguido que houve e haverá em qualquer história de amor. Amo-te, como bem sabes, acima das aves, e das nuvens, até do sol, mais acima do que todo o cosmos, onde fica o início e o fim e se revezam numa dança perpétua. E por não haver um amor mais inconcebível do que este, ele não é humano. É todo o azul da alma e que a alma capta. Quem me dera vertê-lo sobre o mundo. Faz-lhe tanta falta, como tu nos fazes a nós. Um beijo eterno com sabor a céu.


Cynthia Guimarães Taveira