Olá meu amor. Vejo que continuas a olhar cá para baixo com olhos de poeta e coração de cavaleiro. Por aqui, continuamos numa roda-morta. Não se vê no horizonte nada que se pareça com D. Sebastião, embora a esta hora precisa em que te escrevo, do mar, venha aquela névoa espessa e inflamada pela luz do sol que se encontra mais a oriente, por ainda não ser meio-dia. Os homens, por aqui andam trágicos. A pior tragédia de todas que é aquela que acontece quando, no meio da tragédia, todos se julgam numa comédia. Lembras-te do teu futurismo, cheio de sons, de burburinho, de agitação e de um contágio aflitivo de palavras ininterruptas? Tudo isso se espalhou por todo o planeta. Não há canto dele, onde existam homens, onde não esteja presente a febril existência frenética das acções dos homens. Em compensação, os pensamentos são sempre os mesmos e contam-se pelos dedos das mãos. Na tua época, tudo era cinzento, ensombrado pela Primeira Guerra e pela vinda da Segunda, hoje, se aqui viesses, verias que está tudo colorido e que estranhamente, essas cores, parecem tristes. Isto passa-se porque são de néon. Aquele néon que brilha na noite e que nos torna ainda mais sós. As cores que se passeiam não correspondem ao que vai dentro dos seres que estão a preto e branco e andam mais perdidos do que nunca. É por isso que não te escutam, nem te sabem ouvir nas entrelinhas do quotidiano. Passo pelo mundo como se este fosse já uma lembrança. É a única forma de manter um pedaço de vida. Viver num futuro diferente do Futurismo. Também não é bem Alberto Caeeiro, esse futuro, porque tem um toque de céu cheio de requinte que se cola aos gestos, às vestes, aos pensamentos. É uma mistura da simplicidade da natureza de Caeiro com a elegância de Ricardo Reis e a espontaneidade de Álvaro de Campos. Esse futuro é todo o meu sonho, composto por anarcas simples, requintados e puros. E o teu, que anteviste, ainda em fragmentos. Mas está tão distante no tempo como próximo é o sonho. Enquanto se espera, porque pouco ou nada há mais a fazer a não ser esperar, (vivemos num tempo de espera que se julga actuar), ainda, serenamente, passamos pela multidão, numa invisibilidade, mais do que nunca desejada e imaginamo-la um mar de gotas juntas, compondo uma massa colorida, como um mar estranho, subitamente invadido por anémonas à superfície, perdendo os azuis... e bem sabes o que significa o azul, no céu e nas flores... Continuo a morrer de saudades tuas. De te ver ao virar da esquina, ensimesmado e surpreendido por me encontrares. Aquela figura feminina que te amava em segredo e fingia com um sorriso tímido estar só a passar ali por acaso, estar só a passar pelas tuas palavras, como quem não as quer e as encontra como flores no campo colhidas à sorte. Como se em ti houvesse acaso, e em nós não houvesse por ti, o amor mais conseguido que houve e haverá em qualquer história de amor. Amo-te, como bem sabes, acima das aves, e das nuvens, até do sol, mais acima do que todo o cosmos, onde fica o início e o fim e se revezam numa dança perpétua. E por não haver um amor mais inconcebível do que este, ele não é humano. É todo o azul da alma e que a alma capta. Quem me dera vertê-lo sobre o mundo. Faz-lhe tanta falta, como tu nos fazes a nós. Um beijo eterno com sabor a céu.
Cynthia Guimarães Taveira
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