Somos contra mas porquê?
Porque não sendo a língua portuguesa uma língua sagrada
(como o Hebreu ou o Árabe), é uma língua que visa a Poesia. Os versos, os
poemas saem com uma facilidade estonteante de portugueses de qualquer
"classe" social. Houve um período, pós-25 de Abril em que
essa veia poética lusitana pareceu um pouco adormecida. Mas se olharmos bem, as canções de
intervenção eram feitas de poesia. Poemas nos fados, nas canções pop-rock, poemas escritos por alguém
da família, quadras populares ininterruptas, manjericos enfeitados com rimas,
poemas de amor de adolescentes, de adultos apaixonados, poemas secretos
guardados na gaveta com medo de serem mostrados, poemas esquecidos, canções
populares cujas cifras são incalculavelmente complexas e esotéricas, poemas de
natal, poemas lidos e relidos, poetas aclamados, poetas-tesouros da humanidade,
e um poema no fundo do baú de alguém que esteve na I Guerra Mundial. O porquê
disto talvez esteja na maneira como lidamos com a língua. A língua é
matéria-prima da alma. Daí que Fernando Pessoa tenha escrito: "A minha
pátria é a língua portuguesa".
Não sendo uma língua sagrada está, por isso sujeita à
mudança, como aliás se tem observado: a lágryma deixou de cair no Y, a dansa,
deixou de dançar no S... a mudança está lá... naturalmente, na maioria das vezes.
Foi pela língua que foi alimentado aquilo que pode ter
vários nomes: "Projecto Áureo", "V Império", "Idade do
Espírito Santo", foi pela palavra-asa da imaginação que esta ideia, que
tem tanto de messiânica (crença numa intervenção sobrenatural), como de
esperança no verdadeiro valor das pessoas (crença na acção humana), foi
adormecendo e ressuscitando pela nossa História indiferente aos séculos, perene
e teimosa. Quer queiramos, quer não, esta ideia-projecto ainda existe. Os
Impérios necessitam de uma língua. Mesmo os Impérios sonhados necessitam dela.
E os que nascem dela mais ainda.
Há uma espécie de incómodo generalizado relativamente ao
Acordo Ortográfico. Esse incómodo existe em qualquer país lusófono envolvido. O
incómodo só é profundo quando analisado à luz da profundidade que merece. Se
for um incómodo meramente embirrento, reivindicativo, uma teimosia superficial,
então, nem merece análise. Mas se não for, e for profundo, como parece ser,
então retomemos o fio condutor.
Qualquer Império, por mais vasto que seja emerge a partir de
um centro. Se o centro é uma pátria e essa pátria for uma língua que se permite
ser matéria-prima da poética da alma, então, o centro é Portugal. Qualquer
mudança da matriz de uma língua falada no centro irradiador é feita a partir de
dentro. Quando não é, o centro fica sujeito à periferia. Neste caso, O
Brasil, que embora vasto, é periférico na perspectiva da irradiação da sua
língua e perdendo o centro fica mais sujeito a adormecer face à sua própria língua e
mais sujeito a um outro qualquer Império que use a língua como ferramenta.
Quando a mudança (que é sempre lenta e gradual) de uma língua é feita
naturalmente ela é, naturalmente, legítima, "pula e avança como uma bola
colorida nas mãos de uma criança", quando a mudança é feita à força com
meras justificações de mercados livreiros ela não é bem aceite. Gera polémica.
Há neste momento polémica. Por um lado muitos pensam que não nos devemos
sujeitar aos caprichos lucrativos do mundo editorial, por outro, pensam que o Acordo Ortográfico é uma espécie de "aceleração" na elaboração desse Projecto, omitindo o facto, por falta de percepção, diria, quase geométrica, do que é o nascimento de um Império e por último, outros pensam que passar um
atestado de estupidez aos países lusófonos que não Portugal, também não é
agradável. Porque esse atestado serve tanto para os brasileiros (por exemplo)
como para os portugueses. Dizer a um brasileiro que ele é incapaz de perceber o
português de Portugal escrito é o mesmo que dizermos a nós próprios que não
conseguimos ler uma obra portuguesa publicada em 1900, quando o português se
escrevia de maneira diferente. Até porque é mentira.
A raiz do mau estar provocado pelo
Acordo-Forçado-Ortográfico é metafísica. Porque os povos lidam com a língua
todos os dias, e a nossa teve a ousadia de criar um Império, tanto num passado
como num futuro.
A ideia de Império após o século XX das torturas pode parecer assustadora. Mas para quem não sabe, e não conhece, de que Império se fala aqui, o melhor, será pegar nos livros, escritos em português. Se se arrepiarem, um dia, com a ideia, estão na Ideia.
(Cynthia Guimarães Taveira)