quarta-feira, 27 de maio de 2020

Kali Yuga


Soube hoje que um "mui" católico defende o fim da televisão e do cinema. Não menciona a Internet até porque essa "defesa" apareceu na Internet. Nunca daria uma "mui católica". Nem "mui" nem pouco, longe de mim confundir Cristo com a Igreja. Esta última pode fazer muito mal às pessoas. O primeiro não faz mal a ninguém. A invenção dos monges, uma autêntica invenção com vista a institucionalizar as vocações místicas, levou à existência de uma sub-espécie denominada por mim de "não tenho coragem para ser monge mas quero que todos à minha volta o sejam" e vai disto, a televisão e o cinema são para acabar. Lá se ia boa parte da minha infância com muitas noites ao lado da minha mãe a ver os filmes a preto e branco que passavam a horas tardias com o caderno dos TPC aberto e com as contas de dividir por fazer. "Ai que bom ter um filme para ver e poder fazê-lo! As contas de dividir que esperem que tenho coisas muito interessantes para fazer!" grita a criança agora num qualquer canto da memória. O deserto é sempre uma boa solução para os fundamentalistas. Por mim, tirava de lá todos os bodes expiatórios e colocava estas mentes frias a aquecer um bocadinho ao sol. É nestas alturas que ainda entendo melhor Álvaro de Campos, e adoro o ruído da poeira cósmica que vem do televisor. Eu, logo eu, traidora das flores e que digo adorar o verde e a natureza pura. Puríssima! Tão pura que dispensa os filmes. Mesmo que os filmes contem histórias, tenham flores, música, poesia, palavras. Quando a religiosidade se propõem acabar com a Arte está mais-do-que-perdida, porque sem ela é uma fábrica de robot caridosos que dão coisa nenhuma. A contra-natura que existe no misticismo institucionalizado é tão ou mais perigosa que um filme de guerra, e estes quase-monges, na película, apareceriam como os mercenários ceifando vidas a troco de uma bolsa com moedas. Ainda não perceberam a vantagem que há no "rústico chique", capaz de esgravatar a terra com as mãos e de, em seguida, ir ver um bom filme ou uma boa série de televisão. Querem estes semi-monges um futuro "em linha recta", despojado, sem glamour ("O que é isso de glamour?" perguntarão os quase monges do futuro). Julgam por ventura que a Idade do Espírito Santo não tem bom gosto? Que não reconhece a poesia onde quer que ela esteja. Poesia e Espírito Santo são farinha do mesmo saco. As casas serão com rosas e outras flores pelos cantos, com livros e pinturas nas paredes, com filmes para ver e recordar. O que se passa convosco? Não sonham? Quando fecham os olhos para dormir não vêem um fluxo de imagens por vezes muito mais desconexas do que qualquer filme? Querem apagar isso? Pratiquem Yoga. E até mesmo aí vão ter muito trabalho. Nem monges, quanto mais Yoguis. São Bernardo quis templos despojados e, ainda assim, a natureza está por toda a parte nesses templos. As imagens estão lá e os templos são Bonitos. Querem abandonar as imagens do mundo para se entregarem às imagens dos "arquétipos" como se fossem as únicas valiosas... E a palavra? E a música? E os rostos do cinema? Não são belos? E calam a Internet? Não dizem nada sobre ela porque ela "espalha a vossa palavra" anti-televisão e anti-cinema? É um mal necessário? É assim que entendem a net? Os mecanismos puritanos são iguais em toda a parte. Dantes eram os bordéis o mal necessário para aguentar o casamento, hoje é a internet o mal necessário para espalharem a vossa palavra. Ainda não perceberam que não é assim? Que são geradores sempre da mesma coisa? Da hipocrisia dos ratos de sacristia. Burgueses! Sempre burgueses! Até estes neo-monges são burgueses! E lêem! Fará se não o fizerem! E muitos nem isso fazem! Limitam-se a reproduzir-se a si próprios ou a reproduzir a sua própria palavra. A inversão espelhada do Ser. Não são senão uns meninos Kali Yuga em volta da fogueira a tentar aprender o que é a liberdade.

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