terça-feira, 26 de maio de 2020

As razões das insónias






Tive um professor que não dormia. O máximo que dormia eram quatro horas por noite. Era historiador e não pregava olho. Perguntei-lhe porquê e ele, com a maior naturalidade, disse que era assim. E era assim.
Quando tenho uma insónia, e se o digo em voz alta, já sei que vem lá o comboio psico-espiritual apinhado de gente que, na mesma noite dormiu bem e, vá-se lá saber porquê, se sentem superiores por isso e capazes de darem as mais variadas razões e "lições" para a minha insónia.  Fico a vê-los passar como carneirinhos amestrados (daqueles que se contam para adormecer) e vão debitando as suas razões com uma profundidade estonteante. Uns dizem que não dormi por ter má consciência (deve ser a deles), outros que alguém está a pensar em mim (estes normalmente, fazem-me lembrar os enamorados obsessivos), outros dizem que, nessa noite, sofri de uma instabilidade profunda (se fôssemos relógios suíços o mundo era muito melhor? O relógio suíço é muitas vezes sinal de neutralidade... ). Na verdade, há imensas  razões para as minhas insónias. Em primeiro lugar, tenho ciclos de sono, ou seja,  meses se passam de sono profundo e que são subitamente alternados com uma ou mais semanas de insónia. Depois pode ser o calor e os lençóis inapropriados. Uma dor. Também já me aconteceu ter uma vontade de ler compulsiva, de pintar, ou de simplesmente ficar acordada a ouvir o lindíssimo som da noite. Ou de ir ver as estrelas. Ou de não fazer nada.
A minha mãe dizia que a noite era sagrada e, por isso, ninguém na casa onde cresci, acordava uma pessoa se não fosse mesmo necessário, fosse a que hora fosse. Mas sabia, que algumas insónias também eram sagradas, mágicas e criativas. Um dos problemas que encontro nos carneiros (para não dizer, cães de Pavlov que salivam de superioridade quando ouvem a palavra "insónia") está no facto de não perceberem nada da condição humana (mesmo que tenham lido a obra de Somerset Maugham de uma ponta à outra) e ficam com os dentes de fora, prontos a atacar, como cães treinados em escolas psico-esotéricas que mais parecem uma taberna mal afamada e de má frequência. O sono dos justos começa com uma grande insónia à qual de dá o nome pomposo de "vigília". Se disser que estive em vigília, isso, na cabeça dessa gente significa "esforço", "dedicação", "sacrifício". Ninguém quer estar vigilante porque é demasiado difícil e, por isso, quem está é superior. O pobre desgraçado que teve uma insónia é um infeliz que nunca alcançou os patamares do sono tranquilo, um ser inferior, perturbado e sem sono, o que não indica nada de "justo", nem nada de "nobre" como indica a vigília. A sua vigilância feita sem esforço não tem valor nenhum no mercado da bolsa espiritual. Não pregar olho está perto de ir pregar o prego para o caixão em vez de o fazer na cama. Porque o faz sem sacrifício e com a maior naturalidade e espontaneidade. A cultura do "vivemos para sofrer" é consorte da Cruz onde foi pregado Cristo. Todos querem ser como Ele. Cobiçam o Seu lugar numa espécie de papel central no palco do espectáculo da morte. As escolas psico-esotéricas são travestis frustradas da vida plena, clara e cristalina muitas vezes com a capa do sacrifício provocado com um alto valor de transação, tal qual como no paganismo. Ter uma insónia pode ser sinal de uma grande chatice, por dor, por calor, por consciência, por alegria ou pode ser sinal do que quer que seja, até do simples facto de se estar desperto. O dia não é muito diferente da noite, como as flores naturais não são muito diferentes das artificiais e, da mesma maneira que só quem conhece a linguagem das flores naturais a encontra também nas flores artificiais, só aquele que conhece o sol o pode encontrar na lua, sem confusões. Afinal, se a lua estivesse às escuras, só os cegos dariam por ela. Não troco as minhas insónias por escolas psico-esotéricas apinhadas de cegos.

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