quarta-feira, 31 de maio de 2023

Os homens da pré -História

 


Pessoalmente, uma das frustrações com a qual vou morrer é com aquela que diz respeito à “ascensão espiritual”, tão difícil de alcançar. Não vou morrer frustrada com o facto de não ter comprado o último modelo de telemóvel, ou de computador, com mais ou menos inteligência artificial, até porque não os levaria comigo para a cova e, se os levasse, de pouco me serviriam. Isto não se trata de uma questão de prioridades, as prioridades servem para as estratégias, os objectivos e para resolver problemas. Trata-se da natureza humana que está cada vez mais pobre e longe de si. Tenho andado concentrada na chamada pré-história e, afinal, quase tudo o que me ensinaram na escola ou mesmo tudo (tendo em conta de que as questões fundamentais são aquelas que sofreram mais alterações com os novos estudos) não estava correcto. A pré-História linear, tipo Darwin, já não funciona há alguns anos e o ser humano, modificou-se (não digo evoluiu porque é um disparate), em movimentos paralelos, desviantes ou divergentes o que confere ao desenho de desenvolvimento, a forma de uma árvore. A árvore da vida. Ao que parece, esses homens e mulheres, comunicavam uns com os outros através algumas figuras que iam desenhando às quais se já dá o nome de pré-escrita (não é em vão que temos um centro de escrita incrustado no cérebro), conheciam a agricultura praticando-a se estivessem para aí virados, faziam pão (uma espécie de biscoito que era transportável e podia ser comido durante uma viagem, o que mostra, mais do que o domínio do fogo, o domínio da temperatura. As pedras que erguiam (e ninguém percebe muito bem como o faziam), estavam orientadas com as estrelas e remetiam-se uma para as outras porque do seu alto, outras eram visíveis, podendo também, por isso, ser pontos de referência, isto para além da tese de servirem, nalguns casos, o dos menires, por exemplo, para uma espécie de acupuntura da terra visto se encontrarem frequentemente junto a cursos de água, a mesma sendo altamente condutora de energia. Faziam também flautas para emitir sons. Se seria música ou apenas seriam sons para comunicarem à distância, não o sabemos, no entanto, se para o pássaro a música é natural, o homem, dotado de ouvidos, não lhe seria indiferente. A Harmonia está presente desde o princípio do mundo, e até mesmo dos planetas cujas rotas, por exemplo, estão ligadas a números primos, vá-se lá saber porquê.  Segundo estudos recentes, no seu cardápio não constava o consumo de cavalos, porém, são estes animais os mais representados na sua arte, daí que a exclusividade do tema da caça como tema artístico tenha de ser colocada de lado. Algo que me intriga, e como pinto sei do que falo, é a forma como os animais são tão bem representados ao passo que os seres humanos, são toscos, quase infantis nessas representações. Sei bem o quão difícil é desenhar um animal, muito mais do que um rosto, com olhos, pestanas, cabelos, sobrancelhas, nariz com respetivos orifícios, bocas ou queixos. Desenhar um animal, garanto que é mais difícil porque o animal vive das proporções, das linhas curvas que têm mesmo de se curvar no lugar certo, com a intensidade correta do traço. Mas, mais espantoso ainda, é o facto de esses desenhos não serem um produto do “desenho à vista”, feitos com o homem da pré-história prostrado em frente a uma tela, observando o bisonte enquanto bebe água. Eles são feitos depois de serem observados o que demonstra uma memória visual extraordinária, ou então, como alguns teóricos avançam, apareceriam sob a forma de visões depois da ingestão, que também era frequente, de substâncias alucinógenas. De qualquer forma, é notável a perícia, o bom gosto e o requinte. Na arte contemporânea, nada me atrai porque é cerebral, altamente pensada e mergulhada em conceitos artificiais. Não me transmite nada, nenhuma emoção, nenhum espanto, quando muito, repulsa, por vezes. Na arte da pré-história tudo é incrivelmente espontâneo, feito ali, no momento. As cores surgem como flores que desabrocham para o sol, os traços acompanham o ritmo da natureza e o fogo ou o sol que os ilumina (se se tratar de gravuras), permitem as sombras de um outro mundo que nos supera e nos escapa como água por entre as mãos. O artista é a sua obra e a obra é o artista, unidos pelo fogo transcendente que os cria a ambos. Como se pode constatar, é natural que não morra infeliz por não ter o último modelo tecnológico de qualquer coisa. Aquilo que mais me intriga não é o desenvolvimento tecnológico. É o processo artístico como cosmogonia. De que forma o nosso corpo pode entrar em sintonia com as esferas invisíveis, com os mundos paralelos que podem ser superiores ou inferiores numa hierarquia, por vezes, tremenda e radical, outras vezes, subtil como uma aguarela? O mistério do ser humano não passa pela sua capacidade de fazer mais ou menos objetos tecnológicos, passa pela sua dimensão espiritual e essa é, cada vez, mais desconhecida, quase como se fosse uma consequência do caminho que a humanidade tomou ao delegar e sua inteligência em aparelhos, ao negar os seus próprios sentidos que são muito mais do que apenas cinco. Mesmo que a espécie humana desapareça, e pode desaparecer, o fenómeno que é a sua alma, não desaparece e pode surgir encarnada noutras situações, noutros planetas, noutras dimensões, isto quando tem de surgir, no grande movimento que têm os olhos de Argos, que ora dormem, ora despertam. Crê-se ser esta a civilização do desperdício e, se sobrevivermos a ela, como espécie, penso que deveria ser apelidada disso mesmo, não só pelo lixo quase irreversível que produzimos, mas, sobretudo, por desperdiçarmos a oportunidade de nos conhecermos e, dentro de nós, de conhecermos todas as nossas dimensões e possibilidades, algo que renegamos e que remetemos para tecnologia à qual falta e faltará sempre a alma, como anima transcendente. A inteligência artificial irá à procura de uma alma qualquer que nela queira encarnar, mas será sempre uma alma artificial, em segunda mão, algo que não acontece com os seres humanos, mesmo quando são “visitados” por outras. Porque cada uma delas é a primeira e a última em si, não por uma questão de probabilidades de combinações, mas pelo facto de, na sua essência, existir uma unidade transcendente. Absolutamente transcendente. Algo que não conseguiremos nunca reproduzir por não necessitarmos. Já somos assim. A maior parte das frustrações humanas actuais prendem-se com uma sociedade construída no artificialismo e, qual pescada de rabo na boca, essas frustrações tendem a ser “curadas” por mais tecnologia, piorando o diagnóstico. É por isso que me sinto mais próxima dos homens da pré-história do que dos homens contemporâneos. Eles estão mais próximos da essência do que somos e a minha frustração não é de não ser uma deusa, é a de não ser mais humana, cada vez mais humana, porque, ao sê-lo, estaremos mais próximos dos deuses e de Deus, sem foguetões, mas com naves espirituais. 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXXIV

 


A FUGA DOS HOMENS

 

A robustez das palavras surge da robustez do nosso olhar. Não há cerca maior do que o muro da nossa vivência, ergue-se até às estrelas e acaba por ganhar raízes até ao fundo da terra captando o sol que aí impera. Uma vez erguida, uma cerca, é inderrubável. Uns intuem-na, outros chegam mesmo a vê-la e fazem um silêncio recolhido. Ou fogem. Dentro desses muros não há personagens, há almas que se agitam e vozes postuladas na sua própria vibração. Quem foge por ter espreitado, vai fugindo com o aparente desencanto de um jardim deserto de personagens e regressa rapidamente ao mundo que faz parte da sua vida e, nessa corrida, vai dizendo, vai gritando: “Não é verdade! Não existe!” e não sabe que vai dizendo e gritando que a poesia não é verdade e que não existe e vai correndo em direcção ao mundo, entre o lamento e o alerta, pedindo para que se mantenham afastados do seu próprio centro, de onde tudo emerge e flui em cascata. E as almas do centro do mundo, espreitam essas corridas em fuga e comentam que os fugitivos parecem pássaros a quem tiraram as asas e que, por isso, só sabem correr como se fugissem do fogo das palavras que fazem arder todos os pedaços da vida, restituindo-lhes a cor emergente das cinzas, as jóias dos momentos de enlace com o céu e que não ardem e não arderão nunca. E não sabem que correm para as cinzas do mundo, em direcção ao pó de onde vieram, à poeira das estrelas, de onde vieram, dispersa e ainda não reunida na forma robusta de um deus voador que acompanha, com os olhos, essa fuga que atinge todo o mundo, envolvido pela viagem da Via Láctea pelo universo. A lágrima de um deus cai, para não se rir, cai sobre essa fuga. Submerge essa fuga e torna as almas fugidias em peixes fugindo pelo mar, esquivos às mãos dos pescadores, esquivos aos homens do mar, aos homens das naus que cantam e dançam no convés e enfeitam os mastros com as flores do jardim que vão revelando ao mundo…

 

TU E EU, ESQUIVOS AO MUNDO

 

O nosso olhar são duas aves que se encontram.

 

 


segunda-feira, 22 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXXIII

 


MAR

 

O jardim tornava-se labiríntico se os nossos pensamentos o tornassem labiríntico. Nas subidas dos caminhos construídos nas montanhas pelos homens rudes, havia sempre patamares, nos abismos escarpados das montanhas, nunca os havia. Todos os patamares eram ascensões, mesmo que ficassem a meio das descidas… os patamares obrigam à contemplação, à espera, à recuperação, pequenos mares. Os deuses, quando caíam, voavam e quando voavam jamais poderiam cair. Souberam disso os homens e mulheres, descendo pelos caminhos em direcção ao mar, quando a ele regressaram e, por esse caminho que os levava ao grande oceano, foram plantando jardins onde as plantas fixavam as suas raízes e onde algumas se transformavam em aves que, serenamente, a certas horas do dia, se deixavam ficar a contemplar o mar  e que, noutras horas do dia , recolhiam os seus frutos marítimos que são sempre mares eles próprios, para outros frutos. Todos os peixes do oceano guardam em si o milagre da sua própria multiplicação. Todo o oceano é multiplicável, toda a terra é redutível sem o mar. Iniciaram as viagens da terra para o mar, do céu para a terra, numa nau que era um aparente labirinto movimentado de raízes, jardins e ondas; viagens de naus, terrestres e celestes, entrando pelo mar que esperava por elas, talhadas como ondas de madeira perpendiculares aos mastros que eram as árvores da terra. O oceano brilhava à luz do sol e da noite, um novo jardim com a sua oscilante linha do horizonte, em degraus que desapareciam para outros aparecerem quando se elevava a proa. Só se pode navegar quando esse brilho solar e lunar é captado, sentido, recolhido e desenvolvido. Disso os deuses sabiam e isso esperavam dos homens e das mulheres nascidos das sementes: que regressassem à praia de onde tinham vindo. Esperavam pelas suas naus, pelas suas cordas, pelas suas velas, velando pelo mar e, sobretudo, pelos jardins que levavam com eles para que os plantassem longe como o horizonte, em terras diferentes. Os deuses sempre estiveram em todo o lado. No espaço e o tempo, na imagem que deles fazemos, na origem das palavras que cantamos na solidão das catedrais de pedra, e na imensidão do mar, sem que haja diferença entre a catedral e o mar. Ambos ecoam o que vamos dizendo. A Descoberta é uma oração, a oração uma Descoberta. 

 


segunda-feira, 15 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXXII


A BELEZA DA REBELDIA

 

Musculados, de pernas fortalecidas pelos pesos, levavam vasos e sacos de terra, subindo e descendo o jardim. Ainda não tinham o passo dos deuses, mas fortaleciam os músculos, sem que o soubessem, para que um dia pudessem dar esses passos únicos, ligeiros e firmes, indissociáveis do espírito. Tinham nascido das sementes e, como todas as plantas rebeldes saídas da imaginação de um demiurgo que um dia tinha sonhado acordado, possuíam ainda a sensação de conseguirem domesticar a rebeldia do mundo vegetal. Colhiam, podavam, lançavam sementes, cortavam, regavam, endireitavam, encaminhavam a direcção das árvores jovens, até à exaustão. E voltavam a fazer o mesmo, endurecendo os músculos, tornando-os pedra contraposta às plantas, desafiando-as na mesma medida em que elas os desafiavam a eles. Rebelavam-se apenas no que conseguiam ver que havia para se rebelarem. Não tinham mão nelas, mais rebeldes do que eles, cresciam em todas as direcções, ou murchavam quando menos era esperado, ou resolviam criar a desarmonia, assim entendida por eles que apenas desenhavam traços rectos e despojados que a sua falta de criatividade escondia enquanto podavam o jardim, tentando domesticá-lo incessantemente. Os deuses passavam por entre eles, despreocupados e com olhos de lince capazes de verem para além das rectas desenhadas e de apontarem os defeitos: uma folha amarelecida, uma tesoura de podar esquecida, um vaso tombado no caminho. Como cresciam ou em que direcção, isso não dizia respeito aos deuses, nem era importante. Uns reparavam com mais firmeza numas coisas, outros com mais segurança, diferente da firmeza, noutras e os deuses, ao contrário dos homens, admiravam a beleza da rebeldia das plantas e das flores, brincando com elas em segredo e criando com elas e, a partir delas, as sementes que um dia iriam cair de um ramo de flores composto num qualquer momento crepuscular. Olhavam para os homens que se rebelavam contra a rebeldia do mundo vegetal, indomesticável e pensavam-nos como condenados ao destino composto pelos passos escolhidos por esses homens e mulheres, passos cada vez mais fortes e firmes dados nessa tentativa de se sobreporem ao aparente e iminente caos do jardim e que não viam ainda os símbolos, apenas participavam neles, lançando uma ou outra palavra de fogo que lhes parecia terem escutado nos momentos, raros, em que a sua alma agitada sossegava. Nessas alturas, olhavam para longe como se estivessem a olhar para um anjo ou para alguém que lhes acenava ao longe. A sua rebeldia era ligeiramente sombria, uma sombra ténue que só os deuses podiam ver, uma sombra da sombra de um esbatido sentimento de culpa que ainda não sabiam ser uma ilusão, porque se rebelavam contra a própria rebeldia sem conhecerem a sua beleza, vista ao longe, na distância que separa os deuses dos símbolos e dos símbolos que os homens são.

 

 

 

 

 

 


 

domingo, 14 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXXI

 


 

MERCÚRIO

 

Mercúrio agita os nossos dedos, acompanha o voo das palavras de fogo e torna possível o improviso com as suas asas capazes de transcender qualquer espaço que não seja verdadeiro. Quando não há tempo, há improviso aqui e, com as flores variadas – verdadeiros frutos ascendentes – não há modelos de vida, nem vidas exemplares. Os sonhos, depois de tidos, não se desfazem, ficam suspensos como uma rosa densa no perfume e nas pétalas, entre o sonho e a realidade, tornando-os irrelevantes e apenas ela subsiste para além deles. O improviso transcende o tempo, a memória e o sonho. E todo o improviso, mesmo que não tenha a forma de uma flor é, como ela, espiralado, nos espinhos mais assertivos e nas pétalas mais suaves de perfume difuso. Ver uma flor, não é ver um ser vivo ou já colhido a caminho da morte. É limitarmo-nos a sê-la como a foram aqueles homens de mãos calejadas pelas pedras com que construíam muros e caminhos e que, por isso, ouviram, pela primeira vez, as vozes dos deuses que, até aí, só imaginavam. E ficaram suspensos num improviso entre a vida e o sonho. Os deuses sempre falaram pelas flores, muito mais do que pela imaginação, e elas surgiram em espadas e capacetes, em taças e altares, acompanhando a vida, a guerra, o amor e a morte, num improviso profundo para além de toda a aparente realidade, ascendendo ao vale celeste como estrelas num céu nocturno luminoso. Apenas a sombra evoca as trevas como um sonho louco perdido na realidade. Improvisamos com as asas concedidas por Mercúrio, pontífex trazendo flores envolvidas por serpentes enfeitiçadas e incapazes de enfeitiçar, morte e vida vencidas pelas palavras dos deuses escutadas. O improviso é o rito em estado puro. A Providência, o improviso dos deuses, o Destino, o improviso dos homens. 


domingo, 7 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXX

 


O FRUTO

 

O jardim é um fruto matinal saboreado à hora crepuscular. Só pode ser colhido pela manhã. Às primeiras horas, quando o sol se habitua a um novo céu, devagar. Como não há tempo, todos os dias servem, pela manhã, para a recolha do jardim dentro de nós. Nele é e vive o rito que é sempre novo. Recolhem-se as flores, os tons, os perfumes, as palavras quentes, como se todos os elementos dessa manhã fossem orvalho celeste. Nessa altura da recolha, o jardim está sempre suspenso. Nada se sabe. Só se vê. E diz-se o que se vê. Se se passar muito tempo sem palavras para o que se vê, o jardim reclama, não propriamente por palavras, mas pelas suas raízes ligadas ao coração de quem as profere. As palavras são árvores frondosas a nascer todos os dias acompanhadas pelas flores e seus perfumes. Pelas cores e pelos seus sóis, pelos tons e pela sua luz, pelo sons e pelos seus pássaros. E como tu também és o jardim, também reclamas por palavras, de fogo ou de poesia, tanto faz. E zangas-te ligeiramente, de forma quase teatral sem chegar a ser porque sabes que todas essas recolhas desses dias sem tempo irão ser a obra, que, ao crepúsculo, aprofundas como quem enterra um tesouro que irá ser encontrado por alguém, à hora do crepúsculo, num outro dia sem tempo. A essa hora, as palavras tornam-se mais prolongadas e, como os cometas, iniciam a sua viagem por dentro de nós, palavras com raízes perscrutando o coração em busca de alimento até não haver diferença, fronteira ou distância alguma entre o coração, as palavras e o jardim. Foi por isso que me perguntaste o que fazia à hora do crepúsculo. Disse-te que ia ver as paisagens longínquas, para além do jardim, os vales que se estendiam até onde ascendiam as montanhas, o mar que se estendia até onde ascendia o céu. Impaciente perguntaste: “E mais?”, respondi-te que saboreava os frutos recolhidos no jardim pela manhã. E sorriste. A ampulheta desse jardim era a de um tempo sem tempo, invulgar: três globos faziam resvalar, alternadamente, a ordem da natureza: sementes, flores e frutos. Quando os deuses a viravam, surgia a ordem invulgar: as sementes geravam os frutos e eram as flores a gerar as sementes. Uma ordem improvável que harmonizava todas as coisas e que as pessoas com vestes coloridas e chapéus com flores que visitavam o jardim não conseguiam ver: a transformação dos frutos em flores e a forma como as flores lançavam as sementes iniciando o ciclo até que algum deus, imprevisível e caprichoso, voltasse a virar a ampulheta. “E mais?” voltaste a perguntar. Respondi-te que pensava em tudo o que havia no jardim e que os frutos eram mais saborosos a essa hora e lembrei-te as palavras de Dalila Pereira da Costa: “Quantas estrelas douradas sobre o teu ombro bordadas”. Sorriste. No jardim solar só há ouro. Não é o sol que se retira para ser noite, é a noite que se recolhe no sol e as palavras são frescas,  recolhidas pela manhã, ainda vindas de um sonho guardado num lugar secreto do jardim onde os deuses lançam mundos às palavras e palavras aos mundos. Depois, como as vestes que trazíamos vindos do mar, crepusculares e recolhidas em nós, é ao crepúsculo que transformamos as palavras num ramo de flores com as cores, os tons e os sons recolhidos pela manhã, os seus caules alongados como cometas, a sua profundidade vinda do coração e as palavras já dele. E, como uma noiva, lançamo-lo ao ar, espalhando sementes de ouro pelo caminho.

 


sábado, 6 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXIX

 


O EXÉRCITO

 

Vestiam-se de azul-crepúsculo, fatos longos como a Era de onde tinham vindo. Mergulharam no mar, confundiram-se com ele e emergiram numa nave que reflectia as estrelas. Acompanharam os homens e mulheres que tinham fugido das águas que se tinham desprendido do céu quando desembarcaram na praia e que, atordoados, adormeceram entre a espuma e a areia. Confundiram-se com eles. Só se distinguiam pelo modo como andavam. Passos fortes, rápidos e bem definidos. Como os de um exército. E ensinaram-nos a levantarem-se, devagar, ao mesmo ritmo do sol que nascia. E a equilibrarem-se nos primeiros passos como se tivessem nascido há pouco tempo. E encaminharam-nos para a beleza das montanhas para que pudessem ver o mar a partir dos seus cumes e a transformar os pesadelos em sonhos suaves, para que pudessem intuir os degraus invisíveis que existem na linha do horizonte e que só se podem ver à medida que se sobe pela montanha. E a ter esperança. E a olharem para os corações uns dos outros como se fossem pequenos sóis, ora encobertos, ora nascentes ou poentes, ou como as fases de uma flor, desabrochando, ainda fechada ou aberta em raios múltiplos e querendo tocar todo o universo. Formavam um exército invisível que permanecia sempre eterno, frequentando as Eras e prescindindo de subir as escadas que se elevavam a partir da linha do horizonte só para acompanharem os homens nas suas grutas, nos seus caminhos de pedra, que construíam, a pouco e pouco, ao longo das montanhas de pedras rudes que subiam devagar, nas aldeias com pomares e flores e acompanharam-nos no perfume dos canteiros e do mar e da primeira rosa que viram nascer, subitamente, sem que ninguém a plantasse. Essa primeira rosa era o sinal do equilíbrio entre os deuses e os homens. Entre o exército invisível divino e o visível humano. O primeiro sinal de liberdade, porque a rosa divina tinha nascido espontaneamente, sem ser plantada, sem ser desejada, sem ser imaginada. Era a vontade da própria harmonia em existir, com as suas pétalas nascidas em espiral, como a História, e passagem de um ciclo a outro, ascendente e horizontal em simultâneo. Um sinal da aprovação dos deuses e desses homens e mulheres numa terra que o vento secava e que voltava a lançar os seus cristais de sal para o mar. Uma terra que apenas era verdadeiramente fértil com essa rosa. O caminho de espinhos até à sua coroa, era o caminho que tinham subido pela montanha, uns, deuses disfarçados de homens, com passos firmes, outros, nascidos das sementes, ausentes de pensamentos que voassem além da terra, mas unidos pelas palavras de fogo, umas vindas do coração, outras vindas de uma verdade que era como uma lança atravessando as Eras, inaugurando a História verdadeira que é sempre interior, invisível aos homens e vista apenas por entre cortinas de luz por esses deuses disfarçados de homens. Na coroa da rosa, com pétalas dispostas em espiral, uma escada perfumada, um perfume que embala, no cimo da montanha. A linha horizonte, no mar, quando descia, levemente, era um degrau que desaparecia e outro que surgia, numa nova linha. A roda da arte move-se como a pedra de um túmulo de alguém que se oculta na morte no extremo ocidente da Europa. 


quarta-feira, 3 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXVIII

 


PRIMAVERA

 

Dia de Primavera em que as cores das flores pareciam não ser suficientes e então, olhei em volta com mais atenção e os vestidos e os fatos de todos nós estavam coloridos também à sorte como num campo selvagem onde as flores ficam sempre bem e, os humores iguais, espelhados nos gestos que eram sempre um espelho do coração. Passaste por mim e disseste: “Finalmente com naturalidade”. Julguei que te referias ao meu sorriso enquanto dispunha as flores selvagens para formar um hino à Primavera, mas não te referias a ele. Referias-te ao voo livre das minhas mãos que pareciam pássaros a voar em volta das flores. Corri para ti e perguntei-te: “Como soubeste?”; respondeste-me que sabias porque eu também sabia. Desde que tinha entrado no jardim, apenas recordava o que já sabia porque tinha nascido lá. Olhei para as tuas palavras de fogo com mais atenção e vi-as brilhar subitamente com mais intensidade e vi-as debandar em voo pelo jardim, pequenas fénix ainda envoltas em chamas. A atenção, a mesma que as flores têm quando se inclinam por causa da aragem que provocamos depois de passarmos por elas, parecia ser a chave de todas as portas de todas as memórias esquecidas. Quando os olhos se abrem e se fixam e se parecem com aqueles dos místicos em êxtase e que se deixam ficar a navegar no meio das estrelas, perdidos de si e assim encontrando o que sempre buscaram, parecem-se apenas com eles para quem os vê de fora, mas no jardim não se encontra o que se procura, encontra-se tudo aquilo que esquecemos e só é possível de encontrar num lugar sem tempo. E tudo o que esquecemos não é um êxtase místico, uma visão arrebatadora daquelas capazes de gerarem livros sucessivos de poemas ou tentativas de cristalização nas palavras dessas visões tidas. Tudo o que esquecemos é tudo o que somos no próprio momento e, os nossos gestos, quando se levantam e se erguem como as flores, são universos que explodem e se ampliam, re-primaveram, em cada movimento, a própria Primavera, como um nascimento dentro de outro nascimento, ou como um renascimento dentro de outro renascimento. As presenças ou ausências de prefixos ou de sufixos são ténues sombras da palavra mãe, que é sempre nascer. Lembrar, no jardim, é o ritual puro de acontecer, sem hora marcada, sem vestes pré-definidas, sem coreografias escolhidas, sem palavras mortiças como aquelas que são as de um ritual normal acompanhado por velas que parecem estar amordaçadas quando comparadas com as palavras de fogo que rebolam livres pelo jardim e se deixam apanhar pelo vento, pelos humores e pelos corações. O rito acontece como uma explosão de vida surpreendente nos recantos mais inesperados do jardim: uma súbita ascensão marcada pelo compasso espontâneo dos nossos gestos, o passado mais do que perfeito arrancado à própria perfeição e colocado em movimento no centro do nosso ser, a mais bela prova de eternidade dada pelos pássaros que soltamos só porque as flores se deixaram conduzir com naturalidade pelos nossos dedos. Esses ritos, no jardim, são a própria criação dele, aquilo que Deus não nos disse que iríamos fazer, mas que esses homens e essas mulheres, rudes, como as pedras que retiraram das montanhas para construírem o caminho por entre pomares e casas caiadas e que, num determinado dia, possivelmente de Primavera, souberam, fizeram e criaram e que, nesse dia, possivelmente de Primavera, pela atenção que tiveram, abriram a porta da memória e passaram da construção à criação. Aquela que Deus calou, omitiu dos nossos ouvidos e dos nossos escritos, mas que fervilha em todos os jardins tocados pelos dedos livres dos homens.


segunda-feira, 1 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXVII

 




O HORIZONTE

 

Os deuses falavam por gestos porque conheciam os pensamentos, os nascidos das sementes falavam por gestos porque os desconheciam. Dois universos paralelos, em quase tudo semelhantes, mas cujo equilíbrio necessário residia entre esses gestos, em uníssono, criando o jardim, cada vez mais luxurioso, sem que fosse perceptível a sua riqueza crescente. Nessa dança entre o humano e o divino, os passos sucediam-se a partir da melodia jorrando da fonte que eram eles mesmos. E as mãos calejadas foram desenhando orlas de pomares à beira dos caminhos e das casas solares, com cal que saia das mãos calejadas, mãos escuras de tanto revolverem a negra terra, gerando o branco do sol e o azul do mar em pequenos pormenores com que pintavam as paredes que davam para as ruas. E os caminhos e os pomares desciam e subiam os montes de onde se via o mar, os escuros vales, os altos cimos de outros montes, e o círculo do pôr-do-sol que se deixava tocar pelas janelas quadradas. Deuses e homens trocavam olhares em cima dos seus cavalos, domesticados pelo pensamento dos deuses, atravessando as florestas circundantes, subindo a novos montes,  contemplando a linha do horizonte que descia e subia, conforme a sua posição na montanha, como degraus a desaparecer à medida que são escalados, no ponto invisível da percepção em que o horizonte de torna vertical, como uma promessa concedida pelo mar aos que conhecem os caminhos dos pensamentos dos deuses, paralelos aos caminhos de pedras, bordados por frutas quentes e doces, num jardim multiplicado em beleza e abundância, com os seus portões de ferro forjado a dragão e a coroa, em certas alturas quase fechados e de difícil entrada e noutras, abertos para o mundo para receber as suas vozes, tornando-se, por isso, de mais difícil acesso, como um pêndulo de uma balança enganadora aos olhos dos que passavam: quanto mais aberto o portão, mais fechado se tornava o jardim, quanto mais fechado, mais acessível aos poetas capazes de forçarem as portas; aos poetas, ladrões de destinos, aventureiros destemidos dos dragões divinos e das suas chamas ardentes vindas nas palavras de fogo, elevando a coroa nas escadas erguidas no horizonte marítimo onde tudo parece estar perdido e se diluí nas águas profundas e negras como as do lago de onde se emerge de um soluço.