Pessoalmente, uma das frustrações com a qual vou morrer é com aquela que diz respeito à “ascensão espiritual”, tão difícil de alcançar. Não vou morrer frustrada com o facto de não ter comprado o último modelo de telemóvel, ou de computador, com mais ou menos inteligência artificial, até porque não os levaria comigo para a cova e, se os levasse, de pouco me serviriam. Isto não se trata de uma questão de prioridades, as prioridades servem para as estratégias, os objectivos e para resolver problemas. Trata-se da natureza humana que está cada vez mais pobre e longe de si. Tenho andado concentrada na chamada pré-história e, afinal, quase tudo o que me ensinaram na escola ou mesmo tudo (tendo em conta de que as questões fundamentais são aquelas que sofreram mais alterações com os novos estudos) não estava correcto. A pré-História linear, tipo Darwin, já não funciona há alguns anos e o ser humano, modificou-se (não digo evoluiu porque é um disparate), em movimentos paralelos, desviantes ou divergentes o que confere ao desenho de desenvolvimento, a forma de uma árvore. A árvore da vida. Ao que parece, esses homens e mulheres, comunicavam uns com os outros através algumas figuras que iam desenhando às quais se já dá o nome de pré-escrita (não é em vão que temos um centro de escrita incrustado no cérebro), conheciam a agricultura praticando-a se estivessem para aí virados, faziam pão (uma espécie de biscoito que era transportável e podia ser comido durante uma viagem, o que mostra, mais do que o domínio do fogo, o domínio da temperatura. As pedras que erguiam (e ninguém percebe muito bem como o faziam), estavam orientadas com as estrelas e remetiam-se uma para as outras porque do seu alto, outras eram visíveis, podendo também, por isso, ser pontos de referência, isto para além da tese de servirem, nalguns casos, o dos menires, por exemplo, para uma espécie de acupuntura da terra visto se encontrarem frequentemente junto a cursos de água, a mesma sendo altamente condutora de energia. Faziam também flautas para emitir sons. Se seria música ou apenas seriam sons para comunicarem à distância, não o sabemos, no entanto, se para o pássaro a música é natural, o homem, dotado de ouvidos, não lhe seria indiferente. A Harmonia está presente desde o princípio do mundo, e até mesmo dos planetas cujas rotas, por exemplo, estão ligadas a números primos, vá-se lá saber porquê. Segundo estudos recentes, no seu cardápio não constava o consumo de cavalos, porém, são estes animais os mais representados na sua arte, daí que a exclusividade do tema da caça como tema artístico tenha de ser colocada de lado. Algo que me intriga, e como pinto sei do que falo, é a forma como os animais são tão bem representados ao passo que os seres humanos, são toscos, quase infantis nessas representações. Sei bem o quão difícil é desenhar um animal, muito mais do que um rosto, com olhos, pestanas, cabelos, sobrancelhas, nariz com respetivos orifícios, bocas ou queixos. Desenhar um animal, garanto que é mais difícil porque o animal vive das proporções, das linhas curvas que têm mesmo de se curvar no lugar certo, com a intensidade correta do traço. Mas, mais espantoso ainda, é o facto de esses desenhos não serem um produto do “desenho à vista”, feitos com o homem da pré-história prostrado em frente a uma tela, observando o bisonte enquanto bebe água. Eles são feitos depois de serem observados o que demonstra uma memória visual extraordinária, ou então, como alguns teóricos avançam, apareceriam sob a forma de visões depois da ingestão, que também era frequente, de substâncias alucinógenas. De qualquer forma, é notável a perícia, o bom gosto e o requinte. Na arte contemporânea, nada me atrai porque é cerebral, altamente pensada e mergulhada em conceitos artificiais. Não me transmite nada, nenhuma emoção, nenhum espanto, quando muito, repulsa, por vezes. Na arte da pré-história tudo é incrivelmente espontâneo, feito ali, no momento. As cores surgem como flores que desabrocham para o sol, os traços acompanham o ritmo da natureza e o fogo ou o sol que os ilumina (se se tratar de gravuras), permitem as sombras de um outro mundo que nos supera e nos escapa como água por entre as mãos. O artista é a sua obra e a obra é o artista, unidos pelo fogo transcendente que os cria a ambos. Como se pode constatar, é natural que não morra infeliz por não ter o último modelo tecnológico de qualquer coisa. Aquilo que mais me intriga não é o desenvolvimento tecnológico. É o processo artístico como cosmogonia. De que forma o nosso corpo pode entrar em sintonia com as esferas invisíveis, com os mundos paralelos que podem ser superiores ou inferiores numa hierarquia, por vezes, tremenda e radical, outras vezes, subtil como uma aguarela? O mistério do ser humano não passa pela sua capacidade de fazer mais ou menos objetos tecnológicos, passa pela sua dimensão espiritual e essa é, cada vez, mais desconhecida, quase como se fosse uma consequência do caminho que a humanidade tomou ao delegar e sua inteligência em aparelhos, ao negar os seus próprios sentidos que são muito mais do que apenas cinco. Mesmo que a espécie humana desapareça, e pode desaparecer, o fenómeno que é a sua alma, não desaparece e pode surgir encarnada noutras situações, noutros planetas, noutras dimensões, isto quando tem de surgir, no grande movimento que têm os olhos de Argos, que ora dormem, ora despertam. Crê-se ser esta a civilização do desperdício e, se sobrevivermos a ela, como espécie, penso que deveria ser apelidada disso mesmo, não só pelo lixo quase irreversível que produzimos, mas, sobretudo, por desperdiçarmos a oportunidade de nos conhecermos e, dentro de nós, de conhecermos todas as nossas dimensões e possibilidades, algo que renegamos e que remetemos para tecnologia à qual falta e faltará sempre a alma, como anima transcendente. A inteligência artificial irá à procura de uma alma qualquer que nela queira encarnar, mas será sempre uma alma artificial, em segunda mão, algo que não acontece com os seres humanos, mesmo quando são “visitados” por outras. Porque cada uma delas é a primeira e a última em si, não por uma questão de probabilidades de combinações, mas pelo facto de, na sua essência, existir uma unidade transcendente. Absolutamente transcendente. Algo que não conseguiremos nunca reproduzir por não necessitarmos. Já somos assim. A maior parte das frustrações humanas actuais prendem-se com uma sociedade construída no artificialismo e, qual pescada de rabo na boca, essas frustrações tendem a ser “curadas” por mais tecnologia, piorando o diagnóstico. É por isso que me sinto mais próxima dos homens da pré-história do que dos homens contemporâneos. Eles estão mais próximos da essência do que somos e a minha frustração não é de não ser uma deusa, é a de não ser mais humana, cada vez mais humana, porque, ao sê-lo, estaremos mais próximos dos deuses e de Deus, sem foguetões, mas com naves espirituais.