domingo, 7 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXX

 


O FRUTO

 

O jardim é um fruto matinal saboreado à hora crepuscular. Só pode ser colhido pela manhã. Às primeiras horas, quando o sol se habitua a um novo céu, devagar. Como não há tempo, todos os dias servem, pela manhã, para a recolha do jardim dentro de nós. Nele é e vive o rito que é sempre novo. Recolhem-se as flores, os tons, os perfumes, as palavras quentes, como se todos os elementos dessa manhã fossem orvalho celeste. Nessa altura da recolha, o jardim está sempre suspenso. Nada se sabe. Só se vê. E diz-se o que se vê. Se se passar muito tempo sem palavras para o que se vê, o jardim reclama, não propriamente por palavras, mas pelas suas raízes ligadas ao coração de quem as profere. As palavras são árvores frondosas a nascer todos os dias acompanhadas pelas flores e seus perfumes. Pelas cores e pelos seus sóis, pelos tons e pela sua luz, pelo sons e pelos seus pássaros. E como tu também és o jardim, também reclamas por palavras, de fogo ou de poesia, tanto faz. E zangas-te ligeiramente, de forma quase teatral sem chegar a ser porque sabes que todas essas recolhas desses dias sem tempo irão ser a obra, que, ao crepúsculo, aprofundas como quem enterra um tesouro que irá ser encontrado por alguém, à hora do crepúsculo, num outro dia sem tempo. A essa hora, as palavras tornam-se mais prolongadas e, como os cometas, iniciam a sua viagem por dentro de nós, palavras com raízes perscrutando o coração em busca de alimento até não haver diferença, fronteira ou distância alguma entre o coração, as palavras e o jardim. Foi por isso que me perguntaste o que fazia à hora do crepúsculo. Disse-te que ia ver as paisagens longínquas, para além do jardim, os vales que se estendiam até onde ascendiam as montanhas, o mar que se estendia até onde ascendia o céu. Impaciente perguntaste: “E mais?”, respondi-te que saboreava os frutos recolhidos no jardim pela manhã. E sorriste. A ampulheta desse jardim era a de um tempo sem tempo, invulgar: três globos faziam resvalar, alternadamente, a ordem da natureza: sementes, flores e frutos. Quando os deuses a viravam, surgia a ordem invulgar: as sementes geravam os frutos e eram as flores a gerar as sementes. Uma ordem improvável que harmonizava todas as coisas e que as pessoas com vestes coloridas e chapéus com flores que visitavam o jardim não conseguiam ver: a transformação dos frutos em flores e a forma como as flores lançavam as sementes iniciando o ciclo até que algum deus, imprevisível e caprichoso, voltasse a virar a ampulheta. “E mais?” voltaste a perguntar. Respondi-te que pensava em tudo o que havia no jardim e que os frutos eram mais saborosos a essa hora e lembrei-te as palavras de Dalila Pereira da Costa: “Quantas estrelas douradas sobre o teu ombro bordadas”. Sorriste. No jardim solar só há ouro. Não é o sol que se retira para ser noite, é a noite que se recolhe no sol e as palavras são frescas,  recolhidas pela manhã, ainda vindas de um sonho guardado num lugar secreto do jardim onde os deuses lançam mundos às palavras e palavras aos mundos. Depois, como as vestes que trazíamos vindos do mar, crepusculares e recolhidas em nós, é ao crepúsculo que transformamos as palavras num ramo de flores com as cores, os tons e os sons recolhidos pela manhã, os seus caules alongados como cometas, a sua profundidade vinda do coração e as palavras já dele. E, como uma noiva, lançamo-lo ao ar, espalhando sementes de ouro pelo caminho.

 


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