O FRUTO
O jardim é um fruto matinal saboreado à hora
crepuscular. Só pode ser colhido pela manhã. Às primeiras horas, quando o sol
se habitua a um novo céu, devagar. Como não há tempo, todos os dias servem,
pela manhã, para a recolha do jardim dentro de nós. Nele é e vive o rito que é
sempre novo. Recolhem-se as flores, os tons, os perfumes, as palavras quentes,
como se todos os elementos dessa manhã fossem orvalho celeste. Nessa altura da
recolha, o jardim está sempre suspenso. Nada se sabe. Só se vê. E diz-se o que
se vê. Se se passar muito tempo sem palavras para o que se vê, o jardim
reclama, não propriamente por palavras, mas pelas suas raízes ligadas ao
coração de quem as profere. As palavras são árvores frondosas a nascer todos os
dias acompanhadas pelas flores e seus perfumes. Pelas cores e pelos seus sóis,
pelos tons e pela sua luz, pelo sons e pelos seus pássaros. E como tu também és
o jardim, também reclamas por palavras, de fogo ou de poesia, tanto faz. E
zangas-te ligeiramente, de forma quase teatral sem chegar a ser porque sabes
que todas essas recolhas desses dias sem tempo irão ser a obra, que, ao
crepúsculo, aprofundas como quem enterra um tesouro que irá ser encontrado
por alguém, à hora do crepúsculo, num outro dia sem tempo. A essa hora, as
palavras tornam-se mais prolongadas e, como os cometas, iniciam a sua viagem
por dentro de nós, palavras com raízes perscrutando o coração em busca de
alimento até não haver diferença, fronteira ou distância alguma entre o
coração, as palavras e o jardim. Foi por isso que me perguntaste o que fazia à
hora do crepúsculo. Disse-te que ia ver as paisagens longínquas, para além do
jardim, os vales que se estendiam até onde ascendiam as montanhas, o mar que se
estendia até onde ascendia o céu. Impaciente perguntaste: “E mais?”,
respondi-te que saboreava os frutos recolhidos no jardim pela manhã. E
sorriste. A ampulheta desse jardim era a de um tempo sem tempo, invulgar: três
globos faziam resvalar, alternadamente, a ordem da natureza: sementes, flores e
frutos. Quando os deuses a viravam, surgia a ordem invulgar: as sementes
geravam os frutos e eram as flores a gerar as sementes. Uma ordem improvável
que harmonizava todas as coisas e que as pessoas com vestes coloridas e chapéus
com flores que visitavam o jardim não conseguiam ver: a transformação dos
frutos em flores e a forma como as flores lançavam as sementes iniciando o
ciclo até que algum deus, imprevisível e caprichoso, voltasse a virar a
ampulheta. “E mais?” voltaste a perguntar. Respondi-te que pensava em tudo o
que havia no jardim e que os frutos eram mais saborosos a essa hora e
lembrei-te as palavras de Dalila Pereira da Costa: “Quantas estrelas douradas
sobre o teu ombro bordadas”. Sorriste. No jardim solar só há ouro. Não é o sol
que se retira para ser noite, é a noite que se recolhe no sol e as palavras são
frescas, recolhidas pela manhã, ainda
vindas de um sonho guardado num lugar secreto do jardim onde os deuses lançam
mundos às palavras e palavras aos mundos. Depois, como as vestes que trazíamos
vindos do mar, crepusculares e recolhidas em nós, é ao crepúsculo que
transformamos as palavras num ramo de flores com as cores, os tons e os sons
recolhidos pela manhã, os seus caules alongados como cometas, a sua
profundidade vinda do coração e as palavras já dele. E, como uma noiva, lançamo-lo
ao ar, espalhando sementes de ouro pelo caminho.
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