quarta-feira, 3 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXVIII

 


PRIMAVERA

 

Dia de Primavera em que as cores das flores pareciam não ser suficientes e então, olhei em volta com mais atenção e os vestidos e os fatos de todos nós estavam coloridos também à sorte como num campo selvagem onde as flores ficam sempre bem e, os humores iguais, espelhados nos gestos que eram sempre um espelho do coração. Passaste por mim e disseste: “Finalmente com naturalidade”. Julguei que te referias ao meu sorriso enquanto dispunha as flores selvagens para formar um hino à Primavera, mas não te referias a ele. Referias-te ao voo livre das minhas mãos que pareciam pássaros a voar em volta das flores. Corri para ti e perguntei-te: “Como soubeste?”; respondeste-me que sabias porque eu também sabia. Desde que tinha entrado no jardim, apenas recordava o que já sabia porque tinha nascido lá. Olhei para as tuas palavras de fogo com mais atenção e vi-as brilhar subitamente com mais intensidade e vi-as debandar em voo pelo jardim, pequenas fénix ainda envoltas em chamas. A atenção, a mesma que as flores têm quando se inclinam por causa da aragem que provocamos depois de passarmos por elas, parecia ser a chave de todas as portas de todas as memórias esquecidas. Quando os olhos se abrem e se fixam e se parecem com aqueles dos místicos em êxtase e que se deixam ficar a navegar no meio das estrelas, perdidos de si e assim encontrando o que sempre buscaram, parecem-se apenas com eles para quem os vê de fora, mas no jardim não se encontra o que se procura, encontra-se tudo aquilo que esquecemos e só é possível de encontrar num lugar sem tempo. E tudo o que esquecemos não é um êxtase místico, uma visão arrebatadora daquelas capazes de gerarem livros sucessivos de poemas ou tentativas de cristalização nas palavras dessas visões tidas. Tudo o que esquecemos é tudo o que somos no próprio momento e, os nossos gestos, quando se levantam e se erguem como as flores, são universos que explodem e se ampliam, re-primaveram, em cada movimento, a própria Primavera, como um nascimento dentro de outro nascimento, ou como um renascimento dentro de outro renascimento. As presenças ou ausências de prefixos ou de sufixos são ténues sombras da palavra mãe, que é sempre nascer. Lembrar, no jardim, é o ritual puro de acontecer, sem hora marcada, sem vestes pré-definidas, sem coreografias escolhidas, sem palavras mortiças como aquelas que são as de um ritual normal acompanhado por velas que parecem estar amordaçadas quando comparadas com as palavras de fogo que rebolam livres pelo jardim e se deixam apanhar pelo vento, pelos humores e pelos corações. O rito acontece como uma explosão de vida surpreendente nos recantos mais inesperados do jardim: uma súbita ascensão marcada pelo compasso espontâneo dos nossos gestos, o passado mais do que perfeito arrancado à própria perfeição e colocado em movimento no centro do nosso ser, a mais bela prova de eternidade dada pelos pássaros que soltamos só porque as flores se deixaram conduzir com naturalidade pelos nossos dedos. Esses ritos, no jardim, são a própria criação dele, aquilo que Deus não nos disse que iríamos fazer, mas que esses homens e essas mulheres, rudes, como as pedras que retiraram das montanhas para construírem o caminho por entre pomares e casas caiadas e que, num determinado dia, possivelmente de Primavera, souberam, fizeram e criaram e que, nesse dia, possivelmente de Primavera, pela atenção que tiveram, abriram a porta da memória e passaram da construção à criação. Aquela que Deus calou, omitiu dos nossos ouvidos e dos nossos escritos, mas que fervilha em todos os jardins tocados pelos dedos livres dos homens.


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