PRIMAVERA
Dia de Primavera em que as cores das flores pareciam
não ser suficientes e então, olhei em volta com mais atenção e os vestidos e os
fatos de todos nós estavam coloridos também à sorte como num campo selvagem
onde as flores ficam sempre bem e, os humores iguais, espelhados nos gestos que
eram sempre um espelho do coração. Passaste por mim e disseste: “Finalmente com
naturalidade”. Julguei que te referias ao meu sorriso enquanto dispunha as
flores selvagens para formar um hino à Primavera, mas não te referias a ele.
Referias-te ao voo livre das minhas mãos que pareciam pássaros a voar em volta
das flores. Corri para ti e perguntei-te: “Como soubeste?”; respondeste-me que
sabias porque eu também sabia. Desde que tinha entrado no jardim, apenas
recordava o que já sabia porque tinha nascido lá. Olhei para as tuas palavras
de fogo com mais atenção e vi-as brilhar subitamente com mais intensidade e
vi-as debandar em voo pelo jardim, pequenas fénix ainda envoltas em chamas. A
atenção, a mesma que as flores têm quando se inclinam por causa da aragem que
provocamos depois de passarmos por elas, parecia ser a chave de todas as portas
de todas as memórias esquecidas. Quando os olhos se abrem e se fixam e se parecem
com aqueles dos místicos em êxtase e que se deixam ficar a navegar no meio das
estrelas, perdidos de si e assim encontrando o que sempre buscaram, parecem-se
apenas com eles para quem os vê de fora, mas no jardim não se encontra o que se
procura, encontra-se tudo aquilo que esquecemos e só é possível de encontrar
num lugar sem tempo. E tudo o que esquecemos não é um êxtase místico, uma visão
arrebatadora daquelas capazes de gerarem livros sucessivos de poemas ou
tentativas de cristalização nas palavras dessas visões tidas. Tudo o que
esquecemos é tudo o que somos no próprio momento e, os nossos gestos, quando se
levantam e se erguem como as flores, são universos que explodem e se ampliam,
re-primaveram, em cada movimento, a própria Primavera, como um nascimento
dentro de outro nascimento, ou como um renascimento dentro de outro
renascimento. As presenças ou ausências de prefixos ou de sufixos são ténues
sombras da palavra mãe, que é sempre nascer. Lembrar, no jardim, é o ritual
puro de acontecer, sem hora marcada, sem vestes pré-definidas, sem coreografias
escolhidas, sem palavras mortiças como aquelas que são as de um ritual normal
acompanhado por velas que parecem estar amordaçadas quando comparadas com as
palavras de fogo que rebolam livres pelo jardim e se deixam apanhar pelo vento,
pelos humores e pelos corações. O rito acontece como uma explosão de vida
surpreendente nos recantos mais inesperados do jardim: uma súbita ascensão
marcada pelo compasso espontâneo dos nossos gestos, o passado mais do que
perfeito arrancado à própria perfeição e colocado em movimento no centro do
nosso ser, a mais bela prova de eternidade dada pelos pássaros que soltamos só
porque as flores se deixaram conduzir com naturalidade pelos nossos dedos.
Esses ritos, no jardim, são a própria criação dele, aquilo que Deus não nos
disse que iríamos fazer, mas que esses homens e essas mulheres, rudes, como as
pedras que retiraram das montanhas para construírem o caminho por entre pomares
e casas caiadas e que, num determinado dia, possivelmente de Primavera,
souberam, fizeram e criaram e que, nesse dia, possivelmente de Primavera, pela
atenção que tiveram, abriram a porta da memória e passaram da construção à
criação. Aquela que Deus calou, omitiu dos nossos ouvidos e dos nossos escritos,
mas que fervilha em todos os jardins tocados pelos dedos livres dos homens.
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