sábado, 6 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXIX

 


O EXÉRCITO

 

Vestiam-se de azul-crepúsculo, fatos longos como a Era de onde tinham vindo. Mergulharam no mar, confundiram-se com ele e emergiram numa nave que reflectia as estrelas. Acompanharam os homens e mulheres que tinham fugido das águas que se tinham desprendido do céu quando desembarcaram na praia e que, atordoados, adormeceram entre a espuma e a areia. Confundiram-se com eles. Só se distinguiam pelo modo como andavam. Passos fortes, rápidos e bem definidos. Como os de um exército. E ensinaram-nos a levantarem-se, devagar, ao mesmo ritmo do sol que nascia. E a equilibrarem-se nos primeiros passos como se tivessem nascido há pouco tempo. E encaminharam-nos para a beleza das montanhas para que pudessem ver o mar a partir dos seus cumes e a transformar os pesadelos em sonhos suaves, para que pudessem intuir os degraus invisíveis que existem na linha do horizonte e que só se podem ver à medida que se sobe pela montanha. E a ter esperança. E a olharem para os corações uns dos outros como se fossem pequenos sóis, ora encobertos, ora nascentes ou poentes, ou como as fases de uma flor, desabrochando, ainda fechada ou aberta em raios múltiplos e querendo tocar todo o universo. Formavam um exército invisível que permanecia sempre eterno, frequentando as Eras e prescindindo de subir as escadas que se elevavam a partir da linha do horizonte só para acompanharem os homens nas suas grutas, nos seus caminhos de pedra, que construíam, a pouco e pouco, ao longo das montanhas de pedras rudes que subiam devagar, nas aldeias com pomares e flores e acompanharam-nos no perfume dos canteiros e do mar e da primeira rosa que viram nascer, subitamente, sem que ninguém a plantasse. Essa primeira rosa era o sinal do equilíbrio entre os deuses e os homens. Entre o exército invisível divino e o visível humano. O primeiro sinal de liberdade, porque a rosa divina tinha nascido espontaneamente, sem ser plantada, sem ser desejada, sem ser imaginada. Era a vontade da própria harmonia em existir, com as suas pétalas nascidas em espiral, como a História, e passagem de um ciclo a outro, ascendente e horizontal em simultâneo. Um sinal da aprovação dos deuses e desses homens e mulheres numa terra que o vento secava e que voltava a lançar os seus cristais de sal para o mar. Uma terra que apenas era verdadeiramente fértil com essa rosa. O caminho de espinhos até à sua coroa, era o caminho que tinham subido pela montanha, uns, deuses disfarçados de homens, com passos firmes, outros, nascidos das sementes, ausentes de pensamentos que voassem além da terra, mas unidos pelas palavras de fogo, umas vindas do coração, outras vindas de uma verdade que era como uma lança atravessando as Eras, inaugurando a História verdadeira que é sempre interior, invisível aos homens e vista apenas por entre cortinas de luz por esses deuses disfarçados de homens. Na coroa da rosa, com pétalas dispostas em espiral, uma escada perfumada, um perfume que embala, no cimo da montanha. A linha horizonte, no mar, quando descia, levemente, era um degrau que desaparecia e outro que surgia, numa nova linha. A roda da arte move-se como a pedra de um túmulo de alguém que se oculta na morte no extremo ocidente da Europa. 


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