quarta-feira, 5 de junho de 2019
Superioridade
A gata Valquíria tomou conta do dicionário de símbolos e do comando da televisão. A relação dos gatos com o espaço é simples: "O espaço é meu, e já agora os objectos e objectivos".
Adensa-se o mistério simbólico de um livro de símbolos sempre que um felino está em cima dele. Causa-me uma certa angústia. Na verdade, essa angústia não tem muita razão de ser, cá em casa há milhares de palavras. Milhares de sons e ideias. É possível hoje em dia ter um reservatório de civilizações numa casa. É o caso do quase infinito conseguir estar contido no finito. A história do cubo com mil e uma janelas dando umas para as outras. Relacionar as coisas é um trabalho para várias vidas. Dizem os entendidos que andamos cá para ampliar, para conhecer e é verdade. Uma vez conheci uma pessoa que tinha interesse por História mas disse-me que sentia angústia, quase medo, insegurança por não saber por onde começar, quase como se intuísse que deveria "acertar" no alvo, alcançar um objetivo mas a dimensão do problema que era toda a História a fizesse retrair-se por pensar que nunca iria saber tudo, que haveria sempre alguém que sabia mais e mais. Achei graça a essa franqueza, esse tremor tão humano, simples e verdadeiro. Tomara existirem mais pessoas com essa consciência a que chamei a "consciência da montanha" sobretudo numa altura em que tantas pessoas tentam dizer exactamente o oposto, que "sabem", que "conhecem", que "percebem", enfim, numa altura em que ninguém quer dar parte fraca porque os americanos nos meteram na cabeça aquela história dos "perdedores" e dos "ganhadores" tornando-nos bipolares por causa disso. Disse-lhe que o oceano da História era tão grande que qualquer "peixe" servia desde que houvesse gosto e que os peixes se encaixavam todos uns nos outros e que quando não se encaixavam o nosso papel era o de conseguir ligar o que aparentemente não tinha ligação e que isso constituía o caminho individual de cada um. O seu "génio", por assim dizer. A montanha é sempre maior do que nós como nas pinturas do Extremo Oriente, exactamente como convite duplo à nossa humildade e à nossa capacidade. Só os idiotas substituem a aventura por "ganhar e perder". Os romances são as vidas, os interesses são possibilidades de expansão, como flores desabrochando. Nunca vi uma flor preocupada com perder e ganhar. Há conceitos que só aparecem para perdermos tempo. Este entranhou-se como a Coca-Cola, é uma espécie de cocaína que dá "speed" às pessoas em torno de coisa nenhuma. A gata angustia-me apenas pela impossibilidade de poder abrir o livro mas é só isso. Parece uma montanha em cima do livro. Uma montanha em cima doutra montanha e cada montanha se quer única. Até costumam ter nomes. Encostadas formam uma cordilheira, umas em cima das outras já são arqueologia ou espeleologia ou algo semelhante. Se fosse arqueóloga não parava de escavar como a minha cadela Papoila que sei que um dia irá aparecer na China. A arqueologia é mais angustiante do que a História que é mais confortável. Camada sobre camada, sobre camada... Deve ser isso, a gata provoca a "angústia" do escavador. E, na volta, é um símbolo de tudo isto: do dicionário, do comando, das escavações e só porque é uma montanha em cima de outra... Afinal o que há diferente entre mim e a rapariga que tinha a angustia do começo do estudo da História? A direcção, mas o tempo é igual.
terça-feira, 4 de junho de 2019
A lira
Este quadro chama-se "A Lira". A última exposição que fiz foi num restaurante em Arruda dos Vinhos o ano passado. Esteve lá. Agora está cá. Vale a pena pintar para os amigos que apreciam, sobretudo. Os outros gostam tanto de "arte de rua" como disto. Ou seja, não gostam disto porque não sabem ver. São tontinhos. Este ano não me está a apetecer ir à procura de um restaurante para expor. Ter que pedir, ficar em lista de espera meses e meses. Somos levados a pensar que nos estão a fazer um favor. Eu é que lhes faço um favor em romper com a fealdade. A última tentativa que fiz foi há uns meses em Torres Vedras na Câmara Municipal. Disseram-me logo: "Olhe que nem vale a pena, há tanta gente para expor." Também não me está a apetecer ir a todas as Câmaras. A de Mafra tem lá o meu portfólio há anos e há anos que não diz nada. É assim. É a vida. Mais fica.
Ardinas
Sinto-me um ardinas a espalhar jornais pelas varandas com notícias que ninguém sabe o são. E o mundo devolve-me esse sensação de não saber nada das notícias que vou dando. Sento-me no degrau da porta da tipografia velha que é uma boca aberta de um inferno desconhecido. Alguém me entrega um maço de jornais presos por um cordel. Nas primeiras páginas há rostos que nunca vi, palavras que parecem um novo português, fotografias de lugares distantes com crateras e vulcões e palmeiras e piscinas.
Trago os joelhos sujos e feridos das pedras por passar tanto tempo a jogar ao berlinde. No bolso direito tenho uma fisga para atirar pedras aos pássaros. No esquerdo, uns rolos mal feitos com o cordel que sobra desses maços de jornais. Tenho uma boina velha que me deu o meu pai quando me tornei ardinas. Uma vez por semana recolho as moedas das vendas e entrego-as à minha mãe que limpa as mãos ao pano de cozinha velho e esburacado e as põe numa lata velha com uma imagem de um baile de princesas.
Tenho o segredo da abertura de um túnel que fica para lá do cemitério. Vou para lá sozinho depois de fazer voar esses jornais pela cidade. Ainda há que percorrer uns metros até chegar ao carvalho velho com os ramos inclinados que dão sempre sombra qualquer que seja a hora do dia. Afasto as pedras da sua base e vejo o buraco. Deixo-me escorregar por ele devagar e esfolando ainda mais os sapatos que já me apertam. E vejo. Vejo aquilo que mais ninguém vê. Vejo os jardins. As casas caíadas com listas azuis, as telhas de barro, os muros brancos, as laranjeiras perfeitas. O céu doce, parado num azul que é um abraço. E vejo as flores doutra maneira com mais cores como se se rissem. E a terra batida é da cor do pôr-do-sol ao lado das pedras brilhantes dos passeios. E está tudo tranquilo e é tudo tão claro. Desço pela rua sempre devagar, arrastando a mão pelos muros e cancelas enquanto os brincos de princesa pendurados me fazem festas na cabeça. Sei, que ao fundo, onde a aldeia termina, há um grande carvalho e, que por debaixo das pedras a ele encostadas há um buraco. Deslizo por ele, devagar, esquecido da dor que os sapatos me fazem, dos joelhos com crostas e deixo-me ir até bem fundo onde uma abertura pequena está à minha espera. Quando saio, à minha volta há pétalas e deixo-me estar sentado por um pouco. As pétalas estendem-se ao meu redor como caminhos. Parecem pontes ligeiramente curvas. Sigo por uma delas, descalço porque perdi os sapatos no buraco. O caminho da pétalas é de seda. A que está à minha frente tem uma lista cor de mel no meio formando um traço e depois vai ficando amarela para os lados. Sigo por ela e, no fim dela, há o mar. O mar é morno, o ar é morno, a ilha lá longe. Há um barco pintado com um olho e tem um nome escrito que diz: "do que é que estás à espera?" como ouvi uma vez numa canção. Entro no barco que é só bolina. As sereias saltam ao meu lado. Chego à praia com areia branca que piso com os meus pés felizes. Há três montes e, no cimo deles uma mulher linda. Uma deusa. Chama por mim e subo por um deles. E de lá de cima, sentado na mão dela, vejo o mundo inteiro. Tal como ele é. E sei que saí dele, pelo caminho secreto, até à mão da deusa que é o lugar onde se sentam todos os poetas de Portugal.
Aves
Dalila Pereira da Costa viu o Porto invisível, viu as paisagens circundantes doutras épocas. Viajou no tempo. Mística e escritora, devotada a Portugal. E porquê? Isso é aquilo que é mais estranho e inexplicável em Dalila. Só pudemos supor.
Os místicos, que segundo a velha máxima, falam todos a mesma linguagem, penetram nos mundos superiores onde lhes são reveladas verdades superiores, de muito difícil posterior transmissão, quer seja pela escrita, quer seja pelas artes plásticas, quer seja pela música. O que terá levado Dalila Pereira da Costa a debruçar-se tanto sobre Portugal quando as verdades de ordem superior, são de ordem superior e não têm pátria? Não tenho uma resposta exacta para isso. O interesse de Dalila pela nossa literatura não explica tudo pois nem toda a nossa literatura tem como assunto Portugal. Poderia ter-se interessado por outros autores, por outros assuntos, pelos costumes, pela História num campo específico, a sociedade, a economia. Poderia nunca ter mencionado Portugal e ficar-se pelo místicismo como "experiência de Deus", como o definia, e em termos gerais, pelo diálogo da alma com Deus, pela aproximação à salvação. Mas, ao invés disso, decide e dá a isso uma importância estrutural na sua obra, levar consigo Portugal e elevar Portugal para esse diálogo, para essa aproximação. Os nossos maiores escritores, Camões e Pessoa fazem exactamente o mesmo. A escrita maior é indissociável da pátria e do seu destino. Os nossos maiores ensaístas e pensadores fazem o mesmo, mesmo que desconhecidos e menosprezados pelo grande público. Camões só é relativamente conhecido por constar no programa de Ensino com algum destaque (embora a gramática estrague tudo, todo o prazer que há em lê-lo, pelo menos pela forma como é dada...), Pessoa é conhecido porque apanhou uma onda de marketing avassaladora e porque a sua escrita é apelativa e fixam-se bem certas frases, se não fosse assim, permanecia quase desconhecido. No fundo Pessoa é bastante desconhecido do grande público que se senta com ele na Brasileira na cadeira de chumbo. Quando aborda Portugal, Pessoa, então hoje, seria motivo das maiores polémicas e controvérsias e ninguém quer ir por aí: temas como a Monarquia, a República, o papel dos portugueses na História e no Futuro, a política, a Maçonaria, o Catolicismo... Bem, abordar esses temas hoje é atirarmo-nos para a fogueira. Na verdade, os grandes sempre quiseram saber de Portugal na sua vertente filosófica e sobrenatural. Dalila, grande também, optou pela reabertura das portas de Portugal ao céu, como António Quadros, como António Telmo, como Agostinho da Silva. Não haverá uma razão maior para que isso tenha acontecido com todos os nossos grandes? Sobretudo numa época de decadência do papel do transcendente? Serão eles maiores exactamente por terem esse papel? Se retirarmos a estes autores o tema "Portugal", tudo fica um pouco menos. A sua relação com Portugal e as pontes que estabelecem entre Portugal e o céu são cruciais, são o eixo. O que os torna grandes já sabemos: é um pensamento, uma forma de expressão própria, uma personalidade única, coisa que já não se encontra. A época dos indivíduos acabou. O que temos são escolas, correntes, impressionistas, neo-historiadores (quase sempre dos Templários - parece uma obsessão das novas gerações), estudiosos dos grandes, ensaios sobre ensaios, pequenos apontamentos filosóficos que se diluem no tempo e no espaço, "discípulos" desses grandes, variações criativas nesta naquela área (surrealismo, criacionismo, modernismo, saudosismo - quase nada, revivalismos históricos - o cinema como motor visual desses revivalismos históricos, a velha cassete teosófica com as suas habituais divisões e subdivisões...) e pouco mais. Portugal estará condenado a ser um eco por falta de indivíduos de corpo inteiro e de meras refrações dos que partiram ou de correntes que se arrastam no tempo. A chamada "Arte contemporânea" não é arte e a dar atenção a esses assuntos cai também nas redundantes imagens-reflexos desses nomes que escreveram sobre o que fomos e o que somos. Escrever directamente sobre Portugal e sobre o seu papel no mundo, mesmo que seja pouco, se não for para ser dito nos encontros de "Reflexão" com auditórios maiores, quase sempre ligados à política e à sociologia e, por isso, longe da transcendência, parece ser uma árdua tarefa sem que cheire a mofo ou que remeta invariavelmente para "visões" já tidas pelos grandes. Este mundo é um "mundo cão" pelas injustiças óbvias mas também porque parece estarmos todos condenados a ser cães de algo que já se passou, obedientes, abanando a cauda, sem pinga de originalidade, ou seja, sem alguém que seja "um indivíduo" por estar ligado à sua própria raíz que se confunde com a de Portugal. O que temos são "observações" políticas ou sociológicas. Isto no dia em que faleceu Agustina. Lembrei-me de Dalila, a eterna esquecida no meio disto tudo que viu o Porto doutras épocas, viu "claramente visto". E que vemos nós "claramente visto" sobre este país hoje? Será necessário sentir esta dor da ausência no próprio corpo para poder ver, claramente visto, e depois transmitir? A mim só me ocorrem portugueses genuínos que conheci nos últimos tempos. Parece que só eles, como um resto esquecido, parecem guardar a raíz. São pessoas simples. Tão simples que nem se dá por elas. Mas guardam tanto. Os intelectuais estão demasiado envolvidos em escolas, vias, correntes e discipulados. Só se pode escutar o céu dentro de nós e ele diz-nos que, neste momento, só esses poucos portugueses simples ainda trazem a ligação de Portugal ao Céu dentro de si. Dalila sabia desse lado bom. Agustina estava demasiadamente envolvida no lodo da "vida a sério", uma perspicácia que atingia o povo directamente naquilo que era esse lodo, essa dureza, esse granito. Mas há um outro lado. Um lado celeste capaz das maiores proezas. Como cantaram Zeca Afonso ou os Madredeus. Não seria o momento de voltar a escutar essa gente antes que desapareça? O ensino em Portugal está a gerar uma geração que é uma geringonça de culturas (multiculturalismo). Precisamos de uma águia real que sabe quem é e para onde olha a voar lado a lado com a pomba que desce onde quer e quando quer. Na expo 98 fizeram uma "peregrinação" de geringonças, cada uma mais grotesca e feia do que a outra. É só isso que temos para oferecer a nós próprios? Esta dor que sinto, mais alguém a sente? Uma dor permanente. Esta saudade absurda que me abala o corpo todo. O que é que se passa comigo? O que é que se passa com Portugal? Será isto estar junto à raíz? Será esta a raíz? O optimismo e o pessimismo são invenções modernas de quem vai para a guerra ou de quem vai ser operado. Sinceramente não quero saber do optimismo nem do pessimismo, isso nada tem a ver com a raíz. A raíz é outra coisa. É um nascer permanente, doloroso e luminoso. O péssimismo e optimismo é uma resignação camuflada. Nascer é uma indignação alegre, um choque permanente, um estado alterado de consciência porque se passou da inconsciência do útero para a consciência do ar. Nascer é ser ave. O elemento é o ar. O ar de inteligência, de mercúrio, de vôo, de proximidade com o Sol, do centro, da raíz. E essa raíz reside nos mais simples e nos grandes que foram. O resto é diplomacia e confusão. Precisamos de uma lufada de ar fresco que agite as flores das coroas dos mortos e as flores nos beirais dessa gente simples. Quase invisível como a brisa de Elias, mas que esteja lá. Não é de péssimo nem de optimismo, para isso vai-se à bruxa. Precisamos de gente genuína. É como a beleza. Onde quer que ela esteja. E de saber reconhecê-la, à beleza e a essa gente. Só assim saberemos que "alma temos".
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Vénus e Marte
As novas regras da crítica que alguém estabeleceu, não se sabe bem quem, têm vários itens que devem obedecer a determinados critérios. O critério da elegância, foi trazido por França, e diz que um ser superior que queira criticar, deve ser elegante. Deixam de contar as pauladas dos pauliteiros, coisa de povo, e o termo "vigarista" fica para os 'deselegantes", os que não sabem, (ou não estão para isso), dizer, "os que podendo limitar-se a viver sem roubar e ou mentir, preferem roubar e ou mentir, não querendo com isto, ofender ninguém, nem mostrar indignação, nem mal estar, apenas chamar a atenção para um facto ao qual sou completamente alheio, porque sou superior, que não me aquece nem arrefece, porque sou cientista de bata branca e os cientistas são seres distantes que não se deixam influenciar nem pelo que estudam e muito menos ainda influenciam o que estudam mostrando uma capacidade que o povo não tem, nem nunca terá, de se aperceber da realidade como objecto de estudo e muito menos de a alterar na aplicação prática que a observação vai permitir, após uma série de experiências". Isto sim, é ser elegante, é outra coisa. É ser Erasmos... Nunca rasca.
Há depois a "tática" do "ataque". A tática do ataque começou com os sofistas e alcançou o seu auge com a "tese". Os sofistas desenvolveram a capacidade argumentativa que poderia, como ideal, defender qualquer premissa, certa ou errada e o auge é a chamada "tese", uma pedra pesada, densa e encerrada sobre si mesma nos factos e argumentos de que dispõe e que obriga à existência de uma "antítese", ou seja, ao contra ataque que permite medir a resistência da densidade da "tese". Feito o balanço e a "medição", é lançada a "nota", ou seja, a "síntese".
Os "mestres" do ataque devem ser portanto "elegantes" e possuir uma tática "tésica" (ainda bem que não é tísica), para que as normas sejam cumpridas, publicamente, claro está.
Os mais que Mestres, não fazem nada. Reuniem documentos, como bibliotecários, e depois publicam-nos. A tendência é "mais do que científica" porque não argumentam, limitam-se a "mostrar" os factos reunidos em documentação, apresentados de forma subtilmente tendenciosa, permanecendo imunes à antítese porque "contra factos, não há argumentos".
A crítica tem portanto, três graus:
O modo como se diz. (A elegância)
O argumento e contra argumento do que se diz. (A fundamentação)
O que se diz com os factos alheios. (Os fundamentos).
Quem for respeitando sucessivamente estes três graus nos "ataques" é, mais do que elegante, um verdadeiro mestre da "arte da guerra".
Estes hábitos que fazem o monge são depois aplicados, com a mesma exatidão, no amor. E, quando isso é feito, sai uma coisa assim meio estranha e que escapa completamente à única regra que o amor tem e que gera todas as outras regras do amor que não existem no amor e que é:
O amor não tem regras.
Para uma sociedade democrática isto torna-se demasiaso complicado - o povo vai com muita elegância votar.
Para uma oligarquia, torna-se infrequentável - a "elite", gera as fundamentações com base nos fundamentos
Para uma ditadura, torna-se impossível - gera os fundamentos.
Para uma monarquia, torna-se possível.
Quando o povo diz "vigarista" é rei, quando o rei diz "vigarista" é povo. Isto só é possível com amor.
Como vivemos numa sociedade asséptica ela é constituída por um povo tornando "elegante" que vota numa oligarquia de vigaristas bem fundamentados nos fundamentos da ditadura gerados pelos maiores vigaristas que são escolhidos com cuidado por entre a oligarquia. Nem o povo (tal como está), nem a oligarquia nem os ditadores têm cultura.
O povo ( tal como era) e o rei têm cultura. Não estão ralados com as formas assépticas sem amor. As formas assépticas tornam-se fórmulas. O amor não têm fórmulas. A guerra é uma arte que visa a destruição com vista à reposição do amor. Não há arte sem amor. A guerra deixou de ser arte, tornou-se técnica. Técnicas que algum povo ainda nota e diz: vigaristas. É a única palavra e a única dignidade que lhe resta. E, tal como a ele, é a única dignidade que resta ao Rei. O resto é diplomacia e da pior. Porque as regras não estão em conformidade com a ordem.
domingo, 2 de junho de 2019
As vacas
A falta de inteligência é transversal a todas as classes sociais. O meio esotérico é sempre um reflexo, mais ou menos rarefeito da sociedade da mesma maneira que se Marte for habitável poderão habitar esse planeta os mesmos seres humanos, com os mesmíssimos defeitos que aqui tiveram em Terra. O meio chamado "esotérico" é uma espécie de Marte (Vénus é só para alguns...) no qual se pode observar a falta de inteligência. Basta ler algumas coisas para se constatar a total falta de raciocínio, de elaboração, de pensamento, autênticos somatórios de cimentadas listas de palavras, hierarquias e até cosmogonias que espremidas nos levam a ficar exactamente na mesma. Entre a cultura e a erudição continua a haver um grande fosso. Se não percebem isto podem ler Fernando Pessoa que, com palavras simples, até com muito poucas, por vezes, nos deixou a pensar. Mas há quem prefira listagens intermináveis de símbolos e palavras enquadradas em desenhos geométricos, arrumando assim o mundo e colocando definitivamente o pensamento para debaixo do tapete. É mais fácil e faz um vistão. Levar as pessoas a pensar pela sua própria cabeça é mais difícil, dá mais trabalho e é necessária, garanto, muito mais cultura do que erudição.
Iniciei o texto com a falta de inteligência (tomando esta como sendo a capacidade de raciocinar) e dizendo que era transversal a todas as classes sociais (e também esotéricas como espelho rarefeito) porque me lembrei da história das vacas.
Quando vim aqui para a aldeia (fugi da cidade por já não falar a mesma linguagem dos cidadãos e por razões que avariariam definitivamente qualquer mente que se considere sã no dias de hoje, ou seja, 99% racional) fui abordada pelo complexo de inferioridade (transformado em superioridade) de uma saloia. Disse-me ela com ar superior que eu não percebia nada de vacas e que, por isso, não percebia nada de nada. E teimou, teimou a dizer-me que tinha trinta vacas ou coisa que o valha, sempre com o mesmo tom, faltando um nadinha de nada para me dizer que eu era uma pacóvia da cidade e que não sabia o que era a vida a sério. É sabido que gosto de saloios e até da sua esperteza (é uma mistura de teatro e de teste que os grupos esotéricos tentam copiar e fazem-no muito mal porque se nota sempre que por debaixo do vestido de princesa têm sempre uns ténis, como aquelas máscaras mal amanhadas de Carnaval) mas aquela mulher já me estava a chatear. Tinha, visivelmente um complexo de inferioridade que "mascarava" com o de superioridade. Já farta da conversa, fiz-lhe uma pergunta em jeito de resposta:
- Então diga-me, desde que nasci que cresci na cidade e vivi em apartamentos. Onde é que queria que eu tivesse as vacas?
Calou-se, naturalmente. E calada ficou até esboçar um sorriso e dizer:
- É verdade! Num apartamento não cabem vacas.
- Muito bem, finalmente percebeu.
Daí em diante sempre que se chegam ao pé de mim com complexos e visivelmente com falta de inteligência, lembro-me das vacas. Pestanejo, faço uma cara de compreensão absoluta e esboço um sorriso que as pessoas não sabem mas que quer dizer: pois, não sabes onde pôr as vacas... E o diálogo fica em suspenso, até prova em contrário.
A mãe
A mãe. Nascida em 33, apanhou os anos da II Guerra. Seu pai, meu avô, donde vem o apelido Guimarães, tinha uma farmácia em Alfama. Durante a Guerra, pernoitavam em casa dele refugiados da guerra vindos da primeira escala em Marrocos, como no filme "Casablanca", que chegavam ao cais para daí a um dia ou dias a seguir seguirem para os Estados Unidos. O apelido Mendes, da minha avó materna e da mãe foi cuidadosamente suprimido quando me deu o nome exactamente por causa dessas memórias. Disse-me que um dia poderia voltar a haver a "caça aos judeus" e que o apelido Mendes me poderia vir a dar problemas. A mãe tirou o curso de Farmácia nos anos cinquenta. Depois foi estudando o que quis durante toda a vida, foi para Inglaterra ainda nos anos cinquenta para estudar inglês, fez a Alliance Française e estudou alemão com uma explicadora que ela dizia com toda a certeza ser uma ex-espia ou ex-nazi e com quem embirrava profundamente. Fez um ano de Teatro no Conservatório, a Faculdade de Letras foi, nos anos sessenta, o local onde se iniciou na História e a Filosofia. Depois da reforma do ensino durante a Revolução partiram-lhe o curso ao meio e então escolheu o Italiano. Voltou a estudar, mais tarde, depois de reformada na Faculdade da Terceira Idade. Esteve lá dois anos e saiu porque aquilo não era para ela. Aos setenta e tal voltou para a Faculdade de Letras para o curso de estudos portugueses. Tirava, dezoitos, dezassetes, dezasseis ao lado de colegas que poderiam ser seus netos. Escrevia poesia, um pouco estranha e influenciada pelos anos sessenta sem ambições de a publicar. Discutia comigo as matérias da escola. Gostava dos deuses gregos, da cultura romana.
A mãe era a liberdade. E foi até ao fim. Viva, crítica, atirava-se ao mar da costa ao pé dos "estivadores", onde não havia pé, em dias de sol, em dias de chuva. A mãe era o mar. O sol. A areia. A observação atenta. O rigor naquilo que considerava ou não ser arte. Repetia-me "a arte começa com a verdade interior" como um mantra. Cresci a ouvi-la falar dos meus desenhos. A mãe era a verdade, por mais crua, doce ou paradoxal que fosse. Tudo era falado lá em casa: política, literatura, arte, tudo. E não havia horas para nada. Não havia horas para a refeição, não havia horas para dormir. Enquanto o meu irmão dormia eu ficava com ela a ver filmes a preto e branco até tarde com as contas de dividir dos trabalhos por fazer, o caderno aberto na cama dela, sentada no chão ou dentro da cama a ver filmes. Só depois, já muito depois da meia noite ou mais tarde lá fazia os trabalhos. A mãe era o teatro. E lá ia eu com ela ver "os seus actores" que eram os seus amores. E para os travestis e para a ópera. Uma vez pus tudo a rir, anos setenta, ia pelo bairro alto com ela e amigos e soltei: "gosto muito do Bairro Alto". Gargalhada geral. O bairro das prostitutas e da má vida, longe estava eu de perceber aquelas gargalhadas só explicadas mais tarde. A mãe era um mundo inteiro. Só sei dizer isso porque quando se começa a falar dela não se acaba mais. Tinha jeito para viver. Amava a vida mais do que tudo. A nossa relação era absolutamente intensa. Cada uma era forte e única à sua maneira. Confrontavamo-nos sistematicamente só porque cada uma era única. Eu não era o prolongamento dela e ela não era, definitivamente, uma mãe tradicional. Era a Maria Cecília, a livre. A viva, como a Eva. O que herdei dela é o mais secreto. O menos visível. Dizem que de cara sou parecida com ela mas não sou. É a aura que nos torna parecidas. Não tenho os olhos dela, nem a boca, nem o nariz, nem as orelhas. Nada. O que tenho dela é uma rebeldia fora do comum sempre apontada em direcção à liberdade. Como se a liberdade fosse uma constelação e nós fossemos um sagitário e a caçássemos sempre que pudéssemos. É uma anarquia vertical. Um caos visivel com uma ordem profunda, invisível, intemporal e eterna, já vinda da avó e do avô materno. Uma anti-burguesia nata. A ira que percorre todo esse lado da família. A minha avô, farta do meu avó dizia alto, em pleno salazarismo, em plena época de submissão das mulheres: "Sou pelo amor livre!". A minha mãe cumpriu os seus desejos e foi, na prática, pelo amor livre. Herdei das duas, o amor, a liberdade, o amor livre, o livre amor. Acrescentei-lhe algo mais difícil: o puro amor. Porque nasci com ancestralidade a mais e porque sei onde está.
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