terça-feira, 4 de junho de 2019

Ardinas


Sinto-me um ardinas a espalhar jornais pelas varandas com notícias que ninguém sabe o são. E o mundo devolve-me esse sensação de não saber nada das notícias que vou dando. Sento-me no degrau da porta da tipografia velha que é uma boca aberta de um inferno desconhecido. Alguém me entrega um maço de jornais presos por um cordel. Nas primeiras páginas há rostos que nunca vi, palavras que parecem um novo português, fotografias de lugares distantes com crateras e vulcões e palmeiras e piscinas.
Trago os joelhos sujos e feridos das pedras por passar tanto tempo a jogar ao berlinde. No bolso direito tenho uma fisga para atirar pedras aos pássaros. No esquerdo, uns rolos mal feitos com o cordel que sobra desses maços de jornais. Tenho uma boina velha que me deu o meu pai quando me tornei ardinas. Uma vez por semana recolho as moedas das vendas e entrego-as à minha mãe que limpa as mãos ao pano de cozinha velho e esburacado e as põe numa lata velha com uma imagem de um baile de princesas.
Tenho o segredo da abertura de um túnel que fica para lá do cemitério. Vou para lá sozinho depois de fazer voar esses jornais pela cidade. Ainda há que percorrer uns metros até chegar ao carvalho velho com os ramos inclinados que dão sempre sombra qualquer que seja a hora do dia. Afasto as pedras da sua base e vejo o buraco. Deixo-me escorregar por ele devagar e esfolando ainda mais os sapatos que já me apertam. E vejo. Vejo aquilo que mais ninguém vê. Vejo os jardins. As casas caíadas com listas azuis, as telhas de barro, os muros brancos, as laranjeiras perfeitas. O céu doce, parado num azul que é um abraço. E vejo as flores doutra maneira com mais cores como se se rissem. E a terra batida é da cor do pôr-do-sol ao lado das pedras brilhantes dos passeios. E está tudo tranquilo e é tudo tão claro. Desço pela rua sempre devagar, arrastando a mão pelos muros e cancelas enquanto os brincos de princesa pendurados me fazem festas na cabeça. Sei, que ao fundo, onde a aldeia termina, há um grande carvalho e, que por debaixo das pedras a ele encostadas há um buraco. Deslizo por ele, devagar, esquecido da dor que os sapatos me fazem, dos joelhos com crostas e deixo-me ir até bem fundo onde uma abertura pequena está à minha espera. Quando saio, à minha volta há pétalas e deixo-me estar sentado por um pouco. As pétalas estendem-se ao meu redor como caminhos. Parecem pontes ligeiramente curvas. Sigo por uma delas, descalço porque perdi os sapatos no buraco. O caminho da pétalas é de seda. A que está à minha frente tem uma lista cor de mel no meio formando um traço e depois vai ficando amarela para os lados. Sigo por ela e, no fim dela, há o mar. O mar é morno, o ar é morno, a ilha lá longe. Há um barco pintado com um olho e tem um nome escrito que diz: "do que é que estás à espera?" como ouvi uma vez numa canção. Entro no barco que é só bolina. As sereias saltam ao meu lado. Chego à praia com areia branca que piso com os meus pés felizes. Há três montes e, no cimo deles uma mulher linda. Uma deusa. Chama por mim e subo por um deles. E de lá de cima, sentado na mão dela, vejo o mundo inteiro. Tal como ele é. E sei que saí dele, pelo caminho secreto, até à mão da deusa que é o lugar onde se sentam todos os poetas de Portugal.

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