domingo, 2 de junho de 2019
A mãe
A mãe. Nascida em 33, apanhou os anos da II Guerra. Seu pai, meu avô, donde vem o apelido Guimarães, tinha uma farmácia em Alfama. Durante a Guerra, pernoitavam em casa dele refugiados da guerra vindos da primeira escala em Marrocos, como no filme "Casablanca", que chegavam ao cais para daí a um dia ou dias a seguir seguirem para os Estados Unidos. O apelido Mendes, da minha avó materna e da mãe foi cuidadosamente suprimido quando me deu o nome exactamente por causa dessas memórias. Disse-me que um dia poderia voltar a haver a "caça aos judeus" e que o apelido Mendes me poderia vir a dar problemas. A mãe tirou o curso de Farmácia nos anos cinquenta. Depois foi estudando o que quis durante toda a vida, foi para Inglaterra ainda nos anos cinquenta para estudar inglês, fez a Alliance Française e estudou alemão com uma explicadora que ela dizia com toda a certeza ser uma ex-espia ou ex-nazi e com quem embirrava profundamente. Fez um ano de Teatro no Conservatório, a Faculdade de Letras foi, nos anos sessenta, o local onde se iniciou na História e a Filosofia. Depois da reforma do ensino durante a Revolução partiram-lhe o curso ao meio e então escolheu o Italiano. Voltou a estudar, mais tarde, depois de reformada na Faculdade da Terceira Idade. Esteve lá dois anos e saiu porque aquilo não era para ela. Aos setenta e tal voltou para a Faculdade de Letras para o curso de estudos portugueses. Tirava, dezoitos, dezassetes, dezasseis ao lado de colegas que poderiam ser seus netos. Escrevia poesia, um pouco estranha e influenciada pelos anos sessenta sem ambições de a publicar. Discutia comigo as matérias da escola. Gostava dos deuses gregos, da cultura romana.
A mãe era a liberdade. E foi até ao fim. Viva, crítica, atirava-se ao mar da costa ao pé dos "estivadores", onde não havia pé, em dias de sol, em dias de chuva. A mãe era o mar. O sol. A areia. A observação atenta. O rigor naquilo que considerava ou não ser arte. Repetia-me "a arte começa com a verdade interior" como um mantra. Cresci a ouvi-la falar dos meus desenhos. A mãe era a verdade, por mais crua, doce ou paradoxal que fosse. Tudo era falado lá em casa: política, literatura, arte, tudo. E não havia horas para nada. Não havia horas para a refeição, não havia horas para dormir. Enquanto o meu irmão dormia eu ficava com ela a ver filmes a preto e branco até tarde com as contas de dividir dos trabalhos por fazer, o caderno aberto na cama dela, sentada no chão ou dentro da cama a ver filmes. Só depois, já muito depois da meia noite ou mais tarde lá fazia os trabalhos. A mãe era o teatro. E lá ia eu com ela ver "os seus actores" que eram os seus amores. E para os travestis e para a ópera. Uma vez pus tudo a rir, anos setenta, ia pelo bairro alto com ela e amigos e soltei: "gosto muito do Bairro Alto". Gargalhada geral. O bairro das prostitutas e da má vida, longe estava eu de perceber aquelas gargalhadas só explicadas mais tarde. A mãe era um mundo inteiro. Só sei dizer isso porque quando se começa a falar dela não se acaba mais. Tinha jeito para viver. Amava a vida mais do que tudo. A nossa relação era absolutamente intensa. Cada uma era forte e única à sua maneira. Confrontavamo-nos sistematicamente só porque cada uma era única. Eu não era o prolongamento dela e ela não era, definitivamente, uma mãe tradicional. Era a Maria Cecília, a livre. A viva, como a Eva. O que herdei dela é o mais secreto. O menos visível. Dizem que de cara sou parecida com ela mas não sou. É a aura que nos torna parecidas. Não tenho os olhos dela, nem a boca, nem o nariz, nem as orelhas. Nada. O que tenho dela é uma rebeldia fora do comum sempre apontada em direcção à liberdade. Como se a liberdade fosse uma constelação e nós fossemos um sagitário e a caçássemos sempre que pudéssemos. É uma anarquia vertical. Um caos visivel com uma ordem profunda, invisível, intemporal e eterna, já vinda da avó e do avô materno. Uma anti-burguesia nata. A ira que percorre todo esse lado da família. A minha avô, farta do meu avó dizia alto, em pleno salazarismo, em plena época de submissão das mulheres: "Sou pelo amor livre!". A minha mãe cumpriu os seus desejos e foi, na prática, pelo amor livre. Herdei das duas, o amor, a liberdade, o amor livre, o livre amor. Acrescentei-lhe algo mais difícil: o puro amor. Porque nasci com ancestralidade a mais e porque sei onde está.
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