quarta-feira, 5 de junho de 2019

Superioridade


A gata Valquíria tomou conta do dicionário de símbolos e do comando da televisão. A relação dos gatos com o espaço é simples: "O espaço é meu, e já agora os objectos e objectivos".
Adensa-se o mistério simbólico de um livro de símbolos sempre que um felino está em cima dele. Causa-me uma certa angústia. Na verdade, essa angústia não tem muita razão de ser, cá em casa há milhares de palavras. Milhares de sons e ideias. É possível hoje em dia ter um reservatório de civilizações numa casa. É o caso do quase infinito conseguir estar contido no finito. A história do cubo com mil e uma janelas dando umas para as outras. Relacionar as coisas é um trabalho para várias vidas. Dizem os entendidos que andamos cá para ampliar, para conhecer e é verdade. Uma vez conheci uma pessoa que tinha interesse por História mas disse-me que sentia angústia, quase medo, insegurança por não saber por onde começar, quase como se intuísse que deveria "acertar" no alvo, alcançar um objetivo mas a dimensão do problema que era toda a História a fizesse retrair-se por pensar que nunca iria saber tudo, que haveria sempre alguém que sabia mais e mais. Achei graça a essa franqueza, esse tremor tão humano, simples e verdadeiro. Tomara existirem mais pessoas com essa consciência a que chamei a "consciência da montanha" sobretudo numa altura em que tantas pessoas tentam dizer exactamente o oposto, que "sabem", que "conhecem", que "percebem", enfim, numa altura em que ninguém quer dar parte fraca porque os americanos nos meteram na cabeça aquela história dos "perdedores" e dos "ganhadores" tornando-nos bipolares por causa disso. Disse-lhe que o oceano da História era tão grande que qualquer "peixe" servia desde que houvesse gosto e que os peixes se encaixavam todos uns nos outros e que quando não se encaixavam o nosso papel era o de conseguir ligar o que aparentemente não tinha ligação e que isso constituía o caminho individual de cada um. O seu "génio", por assim dizer. A montanha é sempre maior do que nós como nas pinturas do Extremo Oriente, exactamente como convite duplo à nossa humildade e à nossa capacidade. Só os idiotas substituem a aventura por "ganhar e perder". Os romances são as vidas, os interesses são possibilidades de expansão, como flores desabrochando. Nunca vi uma flor preocupada com perder e ganhar. Há conceitos que só aparecem para perdermos tempo. Este entranhou-se como a Coca-Cola, é uma espécie de cocaína que dá "speed" às pessoas em torno de coisa nenhuma. A gata angustia-me apenas pela impossibilidade de poder abrir o livro mas é só isso. Parece uma montanha em cima do livro. Uma montanha em cima doutra montanha e cada montanha se quer única. Até costumam ter nomes. Encostadas formam uma cordilheira, umas em cima das outras já são arqueologia ou espeleologia ou algo semelhante. Se fosse arqueóloga não parava de escavar como a minha cadela Papoila que sei que um dia irá aparecer na China. A arqueologia é mais angustiante do que a História que é mais confortável. Camada sobre camada, sobre camada... Deve ser isso, a gata provoca a "angústia" do escavador. E, na volta, é um símbolo de tudo isto: do dicionário, do comando, das escavações e só porque é uma montanha em cima de outra... Afinal o que  há diferente entre mim e a rapariga que tinha a angustia do começo do estudo da História? A direcção, mas o tempo é igual.

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