quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

A libelinha


A libelinha axadrezada
Encontrou uma poça na estrada
Ficou atordoada, a coitada
Nunca a sua ideia estivera tão enganada
Se as asas em curva eram prova dada
De que o voo não é para asa quadrada
Tanta água era a prova encontrada
De que na água nada voa, nem a ideia
De uma libelinha axadrezada


(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 26 de janeiro de 2020

Água e fogo



Sob o signo da água é a energia conduzida bem como a Tradição. A fonte que alimentou o mar é portuguesa como uma primeira fase. Sob o signo do fogo está a transfiguração. A fonte pode ser portuguesa. Sob o signo do Espírito Santo. Se a primeira fase é a do ensino/aprendizagem, a segunda requer a Arte, a transmutação. Requer a devolução da arte esquecida. Essa, não se faz em bancos de escola. Faz-se junto ao fogo. Passa de mestre a discípulo e tem resultados. Essa requer nascer-se, para isso, duas vezes...

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Luz



No outro dia dei por mim de visita a uma casa escura, com iluminação fraca, a sugerir (o que é um hábito-compulsão no que toca à decoração) à dona da casa, que iluminasse os cantos das divisões porque eram normalmente lugares mortos.
As mulheres tendem a ver e a ouvir muito mais (eu disse tendem, não é uma lei) talvez porque estejam muitas vezes entretidas com o seu próprio silêncio... Naturalmente, tal conselho é luciferino. Uma recusa das trevas é algo luciferino segundo os preceitos bíblicos. Mas penso que a prova do fruto da árvore do bem o do mal é o mesmo. Tudo o que é conhecimento, é luz e toda a sua procura rompe com alguma regra algures no cosmos. Não me vou pôr a venerar de joelhos o pecado original nem Lúcifer, isso faz parte do materialismo hermenêutico muito comum na nossa época e dá aso às maiores confusões. Tive a sorte de não ter sido forçada, desde a infância, a aderir a qualquer instituição religiosa e isso torna-me sempre uma estrangeira nessas terras. O meu olhar perante as instituições é o meu olhar e não o das instituições que olham para si próprias com o seu próprio olhar. Esta pequena diferença tem sido fundamental. Tenho assistido, por outro lado, às teorias mais díspares sobre o "alcançar da luz". Desde os que mergulham nas trevas para a procurar, Dante, por exemplo, aos que se entregam ao mar e à viagem para a merecer, a visão de Camões sobre os Descobrimentos, por exemplo, aos que mergulham profundamente nos abismos da alma e voam, em simultâneo, às montanhas mais altas para a intuir, Cervantes, por exemplo. Somos modeláveis pela literatura que nos embala muito mais do que percebemos. Na verdade, na decoração, a luz é fundamental. E também na vida. Na decoração japonesa, a sombra ganha destaque mas o único propósito é o de tornar a luz um elemento raro e precioso. Assim, e em concordância com a Tradição, são as sombras que mudam crescem ou diminuem conforme a dimensão simbólica que queremos dar à luz. Não é a luz que cresce e muda conforme a dimensão simbólica que queremos dar às trevas. Os pontos de luz são a referência, aquilo que nos pode encaminhar os passos. Percebi isso muito bem quando um dia por via de uma actividade da minha Associação, rondava eu os dezesseis anos, me vi suspensa nas traves acima do palco do S. Carlos. Já não me lembro porquê, fui dar comigo lá em cima, num teatro vazio e escuro. À minha frente sabia ter umas traves que atravessavam o "céu" do palco, suspensas. Cada passo que dava era feito na mais completa escuridão. Não se via nada, nem para cima, nem para baixo nem para os lados. Senti-me a flutuar. Senti que era perigoso fazer aquilo. E, no entanto, continuava a dar passos cuidadosos para a frente, tocando as traves com os pés devagar. A única luz que tinha era a do tacto e a da minha consciência. Sem ela nunca teria avançado por entre as trevas que se reuniam à minha volta. Cada canto escuro tinha sido vencido.
-- Sabe, iluminar os cantos das divisões das casas torna-as mais acolhedoras.
Parou, por momentos, a olhar para mim. O olhar tinha-se transformado. Adquirira uma súbita profundidade. Ela não era muito do género de pensar em coisas profundas mas naquele preciso momento, o símbolo tinha vencido as suas trevas. Sorriu. Conscientemente.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Os franco atiradores e os franco elogios





No outro dia dei a um conhecido meu que é emigrante em Londres há muitos anos um papelinho com uma observação que apanhei nas redes sociais quando ainda tinha a "coragem" de lá estar - para muitos é um acto de coragem, para outros um acto de estupidez, para outros uma perda de tempo, para outros um óptimo meio de divulgação, para outros um óptimo meio para fazer amigos, para outros uma óptima maneira de fazer inimigos, para outros um café pela manhã ou pela tarde com gente desconhecida, para outros um escape para a solidão, para outros... Vejam a diversidade. Para mim uma má experiência - mas dizia que tinha entregue essa observação e que demonstrava a diversidade de variação do verbo "To do" em inglês e as do verbo "Fazer" em português dando um total de 5 para 58. Disse-lhe para mostrar aos amigos ingleses. Afinal, como disse Steiner, o filósofo, cada língua que se aprende é um mundo que se revela e a nossa língua é muito rica. Uma das consequências desta contemporaneidade que parece que anda embruxada e bipolar (bipolar por fora e esquizofrénica por dentro) é a "polarização", o que até tem graça numa altura em que o eixo da terra parece querer avançar para oriente mais depressa do que o habitual, via norte.  Quando uma sociedade, como é esta ocidental, se encontra neste estado bipolar isso é o mesmo do que só se conhecer uma língua com cinco variações (que me lembre) da palavra "do". Qualquer uma delas ganha um extraordinário peso porque há muito poucas. Neste sentido, não havendo muitas opções na língua e como a língua em épocas de crise tende a sobrepôr-se ao próprio pensamento, também não há muitas ao nível do pensamento. É neste sentido que podemos até falar em português mas pensar como alguém que só fala inglês. Quando a língua se sobrepõe ao pensamento há sempre uma colonização deste. Alguns têm é línguas mais ricas que condicionam menos o pensamento dando-lhe espaço para ir um pouco mais além pelas nuances e variações dos verbos, outras são um pouco mais reduzidas. A língua inglesa não é definitivamente católica, ao contrário das línguas latinas que sempre tiveram o Catolicismo e a ideia de "Julgamento" como companhia. A mistura é explosiva e rápida. Quando pensamos como um inglês e sentimos como católicos rolam cabeças. A língua que condiciona o pensamento é pobre e o julgamento é ultra-rápido. É quando pensamos antes da língua servindo esta apenas para traduzir a riqueza do pensamento que as coisas se podem atenuar. Sabemos bem que o acto de pensar foi passando para segundo plano, até no ensino, com a ausência de filosofia nas escolas em Portugal, a outra grande ausência é a da Antropologia clássica e não desta moderna que não passa de uma geringonça ao serviço da política. Podemos até falar em português mas pensamos como os americanos e sentimos como católicos simplórios (o catolicismo português tinha como marca o facto de cada qual se relacionar com ele como queria - com a pobreza de pensamento isso desaparece e dá lugar ou ao ateísmo ou à corrida a Fátima que nunca, infelizmente, chegámos a trocar por Trancoso) e o resultado é esta explosão de polarização frontal que demonstra o bi-polarismo dos "vencedores" e dos "falhados" aplicado não apenas à capacidade de ganhar dinheiro ou de ter sucesso como no caso dos colonizadores americanos, mas como o nosso sentir é católico, isso é aplicado a diversos níveis mais profundos, morais, de carácter, de capacidades, enfim, muito mais abrangentes. O resultado é um julgamento rápido e eficaz sem qualquer espaço para dúvidas. Mas, como a língua portuguesa é diversa porque traduz um pensamento diverso, certos tiques de diversidade continuam presentes sem que nos apercebamos e assim, facilmente, essa polarização é invertida e se passa de um extremo a outro com a velocidade e grandeza de um salto de bailarino russo, sem nos darmos conta do que acabámos de fazer, é a tal esquizofrenia implícita cuja particularidade maior é a capacidade de fragmentação. Não admira que a loucura esteja instalada ao ponto de sabermos, por observação, que "elogiar" alguém é atacar um outro em simultâneo, esquecendo facilmente a riqueza da nossa língua e do nosso pensamento. Não há espaço para pôr tudo na mesa do balcão porque a mesa é muito pequena. Ou se há, fica tudo amontoado na maior confusão, o multiculturalismo no seu melhor. O único antídoto para isto é re-aprender a pensar coisa que ninguém quer porque dá trabalho e anda tudo muito cansado com esta polarização cuja esquizofrenia obriga a saltos de Nureyev de uma ponta à outra do palco. Depois sim, entender que a nossa língua transmite o nosso pensamento como povo e que quando se elogia alguém não se está obrigatoriamente a criticar outra pessoa e vice-versa. Os nossos verbos, pela sua riqueza, são quase adjectivos o que torna as acções "adjectiváveis" por natureza, ou seja, dotadas de qualidades ligadas ao tempo em que decorrem. Se perdermos isso, ficamos com o julgamento, mas com muito pouca justiça. Até para nós próprios. Como povo, merecemos isso?

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Já não




Já não te ouço ou sinto
Ficaste na dormência do tempo
Na calma noite que me persegue
Nas unhas fundas da fera
Nos bustos recortados do palácio
Na naus embaladas pelo recorte lunar dos teus olhos.
Já não te escrevo nem re-escrevo,
Nem por entre as brumas por onde te via, te vejo
Nos passos libertos agora meus
Os teus ficaram dissolvidos no vento
Nas palavras minhas que te faziam aparecer
As tuas nunca as ouve
Nos silêncios meus, grandes montanhas
Os teus um quase nada querendo ser tudo
Já não te ouço ou sinto
Como se te tivesses afastado sem que tivesses estado
E se há pontes, ou rotas nos céus
Em nós não crêem
Em ti nunca foram imaginadas
Em mim apenas porque imagino tudo
Como a primeira inspiração de um recém nascido
Se pontes ou rotas, estendidas para os teus ombros e deles para cima, para a coroa de céu
Não vivem em mim, não ficaram por mim
Depois de as imaginar
Balançaram com o vento que te levou
Sempre quiseste a poesia
Para brincar com ela, boneca e carrinho de meninos
Sempre acreditaste mais nas palavras do que em mim
Sempre quiseste a transcendência por elas
Mas elas são pássaros que voam livremente
Nos quartos do meu palácio
Onde não te ouço nem te sinto
Nem lembro nada que não fosse uma
Bola de sabão a flutuar
Nas vertentes de montanhas onde
Deslizo agora pelos rostos de perfil
E nenhum deles é o teu
Porque nunca foste senão
O reflexo vago no espelho das águas
desfeito quando vi um peixe e o toquei
O mundo cresceu, dizem que não, mas vi-o expandir-se sem se cruzar contigo em qualquer parte da galáxia
Permaneces a ausência personificada
Se fores um deus és o da ausência
Porque os teus passos ficaram dissolvidos num tempo que nunca aconteceu
O teu rosto em mãos de areia
A tua sorte confinada à do destino
Sem a contemplação do improviso
Sem o salto sem rede
Sem que alcances o outro lado do precipício porque nunca estiveste
No meu coração que é absoluto
como o resultado de um conjunto total
ele próprio o itinerário desse transcendente
que tanto quiseste e não queres mais
Não te ouço nem te sinto
Na minha capa, na minha espada
Na minha nudez protegida pelos teus olhos cegos
Alguma vez soubeste que podia escrever pela noite fora pelos rumos de Xerazade,
Pelos poetas sem idade,
Pela eterna curva da Saudade?
Não te ouço nem te sinto
Porque és a angústia viva do fingimento
O lamento sem fim  escondendo a gargalhada
O canto do cisne sem que nenhum deslize pelo lago
Imaginas-me imaginando-te a imaginares-me
Espiralizas-te em imagens até ao disforme
E dizes que compões sinfonias
A régua e esquadro
Sem que vejas Regra diante de ti


(Cynthia Guimarães Taveira)

As Olimpíadas Esotéricas



Os jogos olímpicos da Antiguidade eram uma espécie de ritual e aconteciam com um ritmo de tal forma preciso que chegaram a servir para medir o tempo. Durante esta manifestação sagrada chegaram a existir as "tréguas sagradas" para que os jogos pudessem decorrer. É bom saber que a tradição grega continua viva no mundo esotérico português. Quando os nomes que escrevem livros e fazem palestras não andam à guerra uns com os outros, não se agridem verbalmente e não tentam sair vencedores, faz-se uma espécie de tréguas sagradas e aparecem todas essas figuras a falar de Amor, Paz e Compreensão. Depois voltam para a guerra. A única diferença é o tempo. Se nos Jogos Olímpicos da Antiguidade os períodos deles estavam estipulados, nas olimpíadas esotéricas é tudo muito imprevisível. Nunca se sabe quando é que um vai entrar em paz ou outro vai entrar em guerra. Esta imprevisibilidade faz lembrar uma das características do Espírito Santo... Mas na verdade, é um mero reflexo pardo e rarefeito dele. Assim, a vitalidade das sagrações tanto da guerra como da paz dependem dos calos pisados, da dor e da duração da mesma sendo, por isso, algo de extremamente pessoal e intransmissível... bem, intransmissível não direi, quando entram em guerra sabemos logo que há calos pisados, quando entram em paz há um desejo imenso de partilhar essa paz com o público, leitores e visitantes de palestras para assegurar a continuidade da pesca para os grupos respectivos feita por entre debutantes inexperientes que também trazem amigos. Entre mortos e feridos alguém se há-de escapar (escapam sempre - isto é como o PCP, nunca há derrotas), por via dos cânticos de paz e lágrimas de crocodilo para encantar as hostes.

Carta aberta a Luís de Matos


A propósito de uma conferência sobre Templários que me distraí a ouvir, dizia o orador, figura conhecida no meio esotérico, o Sr. Luís Matos, que não havia neo-templários, tal como não havia neo-sapateiros ou neo-carpinteiros. Evidentemente que não. Pode haver de tudo na contemporaneidade. De maneira que podemos ter sapateiros, carpinteiros e templários e até mais "profissões" como pedreiros, pintores, cavaleiros, damas, sacerdotes, músicos, etc e etc e etc. Os resultados é que podem ser "neo". As linhagens espirituais também podem existir na contemporaneidade, e aí, não há neo, nem passado. Há o que há. Ora a espiritualidade só é visível nos últimos estádios dela quando o corpo começa a ganhar uma tal subtileza que parece querer desprender-se deste mundo apenas por não lhe pertencer mais. Até lá, é Absolutamente invisível. De maneira que quanto a esta última não se pode falar de resultados a não ser muito perto do fim dentro das nossas coordenadas espacio-temporais. Nunca os "fenómenos" , "visões", ou "milagres", foram garantias de coisa nenhuma. Se procurarmos estas coisas como resultados, fenómenos, visões ou milagres pode aparecer-nos de tudo como é bem sabido ao longo da história "mística" da humanidade. Um faquir, não é um guru... Assim, Sr. Luis Matos, o resultado pode ser "neo". A legitimidade das coisas passa sempre pelo transcendente primeiro e só depois pela legitimidade que os homens dão ou não a essas coisas no campo do sagrado. Essa legitimidade dada pelo alto é aquela que é a mais difícil de obter e passa pelas linhagens espirituais que são Absolutamente invisíveis. A legitimidade dada pelos homens é a mais fácil de obter. Basta votar...no fenómeno que parece ser mais apropriado para a altura. Assim, depois de ter ouvido com extrema atenção a conferência, fiquei na mesma.