quinta-feira, 23 de janeiro de 2020
Os franco atiradores e os franco elogios
No outro dia dei a um conhecido meu que é emigrante em Londres há muitos anos um papelinho com uma observação que apanhei nas redes sociais quando ainda tinha a "coragem" de lá estar - para muitos é um acto de coragem, para outros um acto de estupidez, para outros uma perda de tempo, para outros um óptimo meio de divulgação, para outros um óptimo meio para fazer amigos, para outros uma óptima maneira de fazer inimigos, para outros um café pela manhã ou pela tarde com gente desconhecida, para outros um escape para a solidão, para outros... Vejam a diversidade. Para mim uma má experiência - mas dizia que tinha entregue essa observação e que demonstrava a diversidade de variação do verbo "To do" em inglês e as do verbo "Fazer" em português dando um total de 5 para 58. Disse-lhe para mostrar aos amigos ingleses. Afinal, como disse Steiner, o filósofo, cada língua que se aprende é um mundo que se revela e a nossa língua é muito rica. Uma das consequências desta contemporaneidade que parece que anda embruxada e bipolar (bipolar por fora e esquizofrénica por dentro) é a "polarização", o que até tem graça numa altura em que o eixo da terra parece querer avançar para oriente mais depressa do que o habitual, via norte. Quando uma sociedade, como é esta ocidental, se encontra neste estado bipolar isso é o mesmo do que só se conhecer uma língua com cinco variações (que me lembre) da palavra "do". Qualquer uma delas ganha um extraordinário peso porque há muito poucas. Neste sentido, não havendo muitas opções na língua e como a língua em épocas de crise tende a sobrepôr-se ao próprio pensamento, também não há muitas ao nível do pensamento. É neste sentido que podemos até falar em português mas pensar como alguém que só fala inglês. Quando a língua se sobrepõe ao pensamento há sempre uma colonização deste. Alguns têm é línguas mais ricas que condicionam menos o pensamento dando-lhe espaço para ir um pouco mais além pelas nuances e variações dos verbos, outras são um pouco mais reduzidas. A língua inglesa não é definitivamente católica, ao contrário das línguas latinas que sempre tiveram o Catolicismo e a ideia de "Julgamento" como companhia. A mistura é explosiva e rápida. Quando pensamos como um inglês e sentimos como católicos rolam cabeças. A língua que condiciona o pensamento é pobre e o julgamento é ultra-rápido. É quando pensamos antes da língua servindo esta apenas para traduzir a riqueza do pensamento que as coisas se podem atenuar. Sabemos bem que o acto de pensar foi passando para segundo plano, até no ensino, com a ausência de filosofia nas escolas em Portugal, a outra grande ausência é a da Antropologia clássica e não desta moderna que não passa de uma geringonça ao serviço da política. Podemos até falar em português mas pensamos como os americanos e sentimos como católicos simplórios (o catolicismo português tinha como marca o facto de cada qual se relacionar com ele como queria - com a pobreza de pensamento isso desaparece e dá lugar ou ao ateísmo ou à corrida a Fátima que nunca, infelizmente, chegámos a trocar por Trancoso) e o resultado é esta explosão de polarização frontal que demonstra o bi-polarismo dos "vencedores" e dos "falhados" aplicado não apenas à capacidade de ganhar dinheiro ou de ter sucesso como no caso dos colonizadores americanos, mas como o nosso sentir é católico, isso é aplicado a diversos níveis mais profundos, morais, de carácter, de capacidades, enfim, muito mais abrangentes. O resultado é um julgamento rápido e eficaz sem qualquer espaço para dúvidas. Mas, como a língua portuguesa é diversa porque traduz um pensamento diverso, certos tiques de diversidade continuam presentes sem que nos apercebamos e assim, facilmente, essa polarização é invertida e se passa de um extremo a outro com a velocidade e grandeza de um salto de bailarino russo, sem nos darmos conta do que acabámos de fazer, é a tal esquizofrenia implícita cuja particularidade maior é a capacidade de fragmentação. Não admira que a loucura esteja instalada ao ponto de sabermos, por observação, que "elogiar" alguém é atacar um outro em simultâneo, esquecendo facilmente a riqueza da nossa língua e do nosso pensamento. Não há espaço para pôr tudo na mesa do balcão porque a mesa é muito pequena. Ou se há, fica tudo amontoado na maior confusão, o multiculturalismo no seu melhor. O único antídoto para isto é re-aprender a pensar coisa que ninguém quer porque dá trabalho e anda tudo muito cansado com esta polarização cuja esquizofrenia obriga a saltos de Nureyev de uma ponta à outra do palco. Depois sim, entender que a nossa língua transmite o nosso pensamento como povo e que quando se elogia alguém não se está obrigatoriamente a criticar outra pessoa e vice-versa. Os nossos verbos, pela sua riqueza, são quase adjectivos o que torna as acções "adjectiváveis" por natureza, ou seja, dotadas de qualidades ligadas ao tempo em que decorrem. Se perdermos isso, ficamos com o julgamento, mas com muito pouca justiça. Até para nós próprios. Como povo, merecemos isso?
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário