sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Luz



No outro dia dei por mim de visita a uma casa escura, com iluminação fraca, a sugerir (o que é um hábito-compulsão no que toca à decoração) à dona da casa, que iluminasse os cantos das divisões porque eram normalmente lugares mortos.
As mulheres tendem a ver e a ouvir muito mais (eu disse tendem, não é uma lei) talvez porque estejam muitas vezes entretidas com o seu próprio silêncio... Naturalmente, tal conselho é luciferino. Uma recusa das trevas é algo luciferino segundo os preceitos bíblicos. Mas penso que a prova do fruto da árvore do bem o do mal é o mesmo. Tudo o que é conhecimento, é luz e toda a sua procura rompe com alguma regra algures no cosmos. Não me vou pôr a venerar de joelhos o pecado original nem Lúcifer, isso faz parte do materialismo hermenêutico muito comum na nossa época e dá aso às maiores confusões. Tive a sorte de não ter sido forçada, desde a infância, a aderir a qualquer instituição religiosa e isso torna-me sempre uma estrangeira nessas terras. O meu olhar perante as instituições é o meu olhar e não o das instituições que olham para si próprias com o seu próprio olhar. Esta pequena diferença tem sido fundamental. Tenho assistido, por outro lado, às teorias mais díspares sobre o "alcançar da luz". Desde os que mergulham nas trevas para a procurar, Dante, por exemplo, aos que se entregam ao mar e à viagem para a merecer, a visão de Camões sobre os Descobrimentos, por exemplo, aos que mergulham profundamente nos abismos da alma e voam, em simultâneo, às montanhas mais altas para a intuir, Cervantes, por exemplo. Somos modeláveis pela literatura que nos embala muito mais do que percebemos. Na verdade, na decoração, a luz é fundamental. E também na vida. Na decoração japonesa, a sombra ganha destaque mas o único propósito é o de tornar a luz um elemento raro e precioso. Assim, e em concordância com a Tradição, são as sombras que mudam crescem ou diminuem conforme a dimensão simbólica que queremos dar à luz. Não é a luz que cresce e muda conforme a dimensão simbólica que queremos dar às trevas. Os pontos de luz são a referência, aquilo que nos pode encaminhar os passos. Percebi isso muito bem quando um dia por via de uma actividade da minha Associação, rondava eu os dezesseis anos, me vi suspensa nas traves acima do palco do S. Carlos. Já não me lembro porquê, fui dar comigo lá em cima, num teatro vazio e escuro. À minha frente sabia ter umas traves que atravessavam o "céu" do palco, suspensas. Cada passo que dava era feito na mais completa escuridão. Não se via nada, nem para cima, nem para baixo nem para os lados. Senti-me a flutuar. Senti que era perigoso fazer aquilo. E, no entanto, continuava a dar passos cuidadosos para a frente, tocando as traves com os pés devagar. A única luz que tinha era a do tacto e a da minha consciência. Sem ela nunca teria avançado por entre as trevas que se reuniam à minha volta. Cada canto escuro tinha sido vencido.
-- Sabe, iluminar os cantos das divisões das casas torna-as mais acolhedoras.
Parou, por momentos, a olhar para mim. O olhar tinha-se transformado. Adquirira uma súbita profundidade. Ela não era muito do género de pensar em coisas profundas mas naquele preciso momento, o símbolo tinha vencido as suas trevas. Sorriu. Conscientemente.

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