Este lago sereno e plácido onde me encontro sempre esteve
comigo ou em verdade ou em sonho e espelha os rostos e os olhos de amor,
enquanto os restantes, fundos, num lodo indefinível, se diluem em gotas de pó.
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
Rostos e olhos d'amor
A arte da inveja
Ei-la, a Inveja, nascida do casal insegurança e maus
instintos. Presente no mundo desde o princípio dos tempos, ei-la ainda jovem
menina e moça, condição de que não se livrará até ao fim dos seus dias, numa
qualquer pausa da eternidade. Ela vive, respira e é eternamente jovem.
Assemelha-se a um fumo, transparente e volátil que impregna cada canto, cada
esquina do olhar. É fácil dar-mos conta da sua presença, ela paira, aparece e
desaparece, é senhora do espaço e do tempo, a rainha da última palavra nos corações
de alguns portugueses. Ela está sempre acordada, esperta e implacável. No canto
dos olhos das mulheres que se olham de alto a baixo, e avaliam, e julgam e
matam nesse pequeno pestanejar. Nos homens que olham os outros, e os invejam
pela virilidade, pelo carro que não têm, pelo sucesso que não conseguem. Ela
age por lampejos, pequenos raios sem compaixão. Dita pequenos gestos de recusa,
dita os silêncios no lugar dos elogios possíveis. É muda e sinuosa e apressa-se
nas decisões que mudam vidas. Ela vive no coração, mas não é o coração,
instala-se no lugar dele e pulsa como ele, imita-o, na verdade, mas traz uma
outra verdade que dela nada tem por ser apenas uma réplica. No fundo dela o
medo e a maldade são os seus hemisférios sentimentais, na pele dela, a má
língua e as más acções, são os hemisférios materiais.
Ela destrói, corrói, incendeia. Produz opiniões sobre falsas
premissas e governa assim parte do mundo. Conduz sentimentos no devir da
história e no seu rasto mudo, inculpável, indetectável deixa cadáveres de
pessoas encerradas numa infinita tristeza. A mágoa que ela provoca não é igual
às outras. Não é um filho que se perde, não é um pai que morre, não é um
desgosto de amor. É a mágoa da injustiça, pura e dura, implacável sem intentos
divinos que a possam justificar. Absolutamente irracional, absolutamente
absurda no fim. Um non sense sem graça, uma desforra de coisa nenhuma. Mas
ei-la sempre viva, em cada esquina, em cada olhar, nos pormenores dos gestos,
dissimulada, imitando o amor.
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
Fecho portas e janelas e finjo-me ser uma casa abandonada. No jardim suspenso de uma qualquer memória, ouço hinos oscilando ao vento. Por entre as frestas dos ramos das árvores, o sol impõe-se. Nada é como foi, nesta terra. Foi tudo imaginado por alguém que quis, sem forças, suportar o mundo nos ombros. E agora, flutuamos livres no espaço. A forma da poesia altera-se e passa a ser um rio, em vez de uma pirâmide de palavras. Uma vez sabendo, perde-se a casca seca que se agarrava à arvore surgindo esta, agora jovem, com ramos lançados à vida. E balouço num salgueiro simples, cujo movimento perpétuo é o de se deitar nas águas da poesia. Em vez de nuvens, há sóis. E as manhãs são as pontes que pisamos ao atravessarmos o lago das ideias. Descomplica-se o mundo com uma tenaz e, dos nossos dedos, ergue-se o barro dos seres.
terça-feira, 27 de outubro de 2020
Clima Geral
Quando acordo de manhã e me lembro, quase de imediato, do
mundo adoentado como está, só me apetece voltar a dormir. As pessoas continuam
e continuarão a votar em Bolsonaros, em Trumps, em esquerdas apavoradas com a
Tradição, em blocos centrais que produzem e fazem a manutenção do próprio
sistema levando as pessoas a votar em direitas e esquerdas que se alimentam,
mutuamente, em seguida. Isto para uma monárquica, é impensável. Decido, todos
os dias, aproveitar o conforto. Arrumar a casa, ler, desenhar, ouvir música,
ver filmes e séries uns atrás dos outros e pensar o mínimo possível na minha
falta de contribuição para um mundo melhor. Se não o fizer, entro em depressão.
Ao meu lado, está sempre esta sombra de que não sirvo para nada. Nem a ninguém.
E, como eu, existem, de certeza, milhões de pessoas a sentirem-se entre o inútil e o
estupefacto perante tudo aquilo que este mundo oferece aos nossos olhos. Alguns pensam que mudam as coisas no Facebook, ou no Twiter, porque dizem a sua opinião.
Na verdade, a maioria dos que pensavam assim, já se deu conta de que as opiniões
se dissolvem na solução de um mundo que se auto-resolve, sem qualquer
intervenção do alto ou deles mesmos. Outros, entregam-se ao voluntariado. Tarefa nobre, não
direi que não, mas absolutamente inútil a longo prazo e extremamente útil a
curto prazo. De forma que, este desconforto, não se dissipa. Agravou-se até com
a pandemia. E como eu, há milhões de desconfortáveis por aí, por uma razão ou
por outra. Os restantes, consideram-se heróis de uma qualquer causa. Escrevo no
blogue para passar os dias e fazer meia com palavras que não agradam a ninguém.
E retiro-me do teclado do computador
para me concentrar numa qualquer outra tarefa. Invento tarefas. Tal como o
país, não tenho projecto nenhum. Não há dor que atravesse o corpo de Portugal que
por mim não passe. Ou antes ou depois, tanto faz, porque o tempo não existe.
domingo, 25 de outubro de 2020
Ruína
Não há um notável pensamento que sustente um mundo a arruinar-se.
As ruínas do passado são-nos nostálgicas. O pôr do sol em Roma é o resultado de
palavras doiradas que caem sobre as pedras tombadas. Mas há o momento em que o edifício
se torna ruína. O movimento e o momento de arruinar. Nesse instante, podemos
ter as mais belas ideias sobre o mundo. Os mais precisos sistemas filosóficos,
as manhãs mais gloriosas arquétipais, no entanto, a pedra desce e desvia-se do
eixo gravitacional. E nasce a ruína. São chamados fins-do-mundo que estão muito
mais na pedra do que em qualquer promontório porque estes são sempre uma
promessa de vida e de viagem, aquém ou além da vida. O momento da transformação
da pedra em ruína é a queda da própria ideia, o seu esvaziar, a sua insignificância
face ao contexto. É um momento apenas visual. Cinematográfico. Alguma luz
projectada num pano branco, sem profundidade ou sorte que não seja o tombo. A torre
que tomba. O caos da dispersão das pedras, a aterragem delas, já rodeadas pela
poeira que as irão fazer submergir em parte. Nesse momento, de morte de civilização,
as ideias, como as almas, vagueiam, passam para outro plano, tornam-se
fantasmáticas e ausentam-se até se evaporarem e passarem a ser apenas um
espectro na memória. E o mundo não é sustentado senão por um ligeiro sopro de
espírito. Uma brisa que traz e esconde a semente na poeira das ruínas. Uma chuva
miudinha que a fará germinar. Uma pequena grande ideia a ser, com a reviravolta
que irá dar em si, por si. Um raio de sol atento, preciso, que a irá iluminar. Quando
cai uma civilização, restam as sementes guardas em ânforas de barro. Sementes que
ainda nada são, na penumbra da poeira. Eis o retrato parado e esquecido do que
já é esta civilização. Ao contrário das ideias, as civilizações morrem mesmo. As
ideias, ausentam-se e estalam-se na memória. A queda da civilização é
indiferente aos homens, às ideias dos homens. Ela já tomou corpo sozinha, já se
fez grande, já foi do mundo, já decai, tomba e já se deixa adormecer na terra. E
as almas dos homens de uma civilização em movimento de ruína, andam tombado com
ela. Oscilam na rua como corpos em choque, o olhar triste e perdido de quem
sobrou de uma guerra. A rua sem princípio nem fim, limitada apenas pela poeira.
As mãos caídas sobre o corpo, como cadáveres de pé. A mente confusa e enublada,
perto, perto do vazio de si mesma ou alucinando tardes de Verão junto à fonte
das ideias, como um sonho ténue antes do último suspiro.
sábado, 24 de outubro de 2020
A Quinta da Regaleira e a celebração da Vida
Nenhum deles se auto-intitula de Mestre porque isso soaria
demasiado a autopromoção, mas não se importam de se apresentar como autênticos mestres de cerimónias de opiniões e de sínteses do que leram como exemplo da
sua superioridade. Na verdade, a preguiça de estudar é total. Antes ter quem
nos debite as coisas. Tenho uma amiga divorciada a quem o marido pedia para que
ela lhe contasse a história dos livros que ela tinha lido. Talvez fosse para
poder brilhar, um pouco mais tarde, numa festa ou num convívio, brilhar como
pessoa erudita ou talvez fosse a pura insistência em não ler, por ser coisa
vagarosa e implicar tempo e disponibilidade. O problema é que a minha amiga
poderia inventar uma história qualquer que ele a tomaria pela verdadeira. Os mestres
de cerimónias neste mundo esotérico estão bem visíveis nas interpretações da
Regaleira. Uns dizem uma coisa, outros dizem outra. Causam guerras. Guerras inúteis. Talvez o convite da própria
quinta de Carvalho Monteiro não seja bem esse. Talvez nunca tenha pensado em
mestres de cerimónias de opiniões. Talvez seja o de cada um sentir e ver com os
olhos que tem. E quem fala na quinta, fala em muitas outras coisas. Também eu
não me importaria de ser um Mestre de Cerimónias. Mas à moda antiga. Daqueles que
organizavam festas e faziam delas uma obra de arte. Uma arte efémera
inesquecível. E tomasse um cenário natural ou um palácio como base para a
criação. É por isso que não encontramos criatividade nenhuma a não ser, provavelmente,
nas interpretações dos mestres de cerimónias que ficam aquém de um verdadeiro Mestre de Cerimónias que se limita a conduzir as pessoas no voo da sua arte, da
sua imaginação sem querer, com isso, proclamar a verdade do mundo e acabando, no
entanto, por via da criatividade, por tocar nos pontos essenciais deste Mistério
de estarmos vivos. Talvez, Monteiro e Manini fossem Mestres de Cerimónias à
moda antiga e fizessem as pessoas voar nas suas asas com as asas que cada um tem.
Depois, vieram os herdeiros desses
mestres, desfasados. A queda da Arte na mera explicação mecânica dos símbolos. Com
tendência, naturalmente, para a imposição. São francamente mestres de cerimónias menores. São um produto deste tempo. Desta ausência
de arte. Destes rebanhos de gente sem vontade e sem alegria que nos cercam. São
produto do homem que se divorciou dos livros e da criatividade. Porque livros e
criatividade deveriam andar juntos, ser inseparáveis e, por isso, a nossa
relação com eles, deveria ser íntima e pessoal. Um dia emprestei um livro a um
amigo. Apareceu-me no outro dia, com um ar ligeiramente zangado. Disse-me: “Li
o livro de uma vez. Fartei-me de chorar”. Até hoje não sei que memórias ou em
que ponto da sensibilidade do meu amigo o livro tinha tocado. Não lhe perguntei
por que tinha chorando tanto. Fazia parte da sua intimidade. No entanto, sei,
que a relação dele com o livro foi única. E fiquei feliz com isso. Mesmo que tenham
sido lágrimas, foram lágrimas de ouro. Cansei-me de mestres de cerimónias de opiniões
e sínteses. Os únicos válidos são os que erguem palácios e jardins, da raiz ao
céu, partindo do céu para a raiz. Isso, sim, é uma verdadeira festa. Com esses vôos. Com os outros caímos num pantanal de guerras surdas. E a nossa alma cala-se. As festas não se fazem com desalmados.