Serei vale, sombra e solidão,
serei palavras completas demais,
exaustas em si,
nas quais, encontrais o desejo,
o apelo, a asa d’ouro que cobiçais...
Serei vale e discussão,
sombra das tristes certezas,
solidão das almas sem memória,
Adamastor de impérios desistidos...
Potentemente fazendo tremer a vossa ira,
poderão, até, puxar os cabelos,
revolver-se naquela náusea nocturna
do horror do sabor a nada,
poderão ver vivo o vosso inferno,
erguido diante de vós...
Vale, sombra e solidão, sentir-se-ão
tristes, de farrapos arrastados nas ideias,
tontos aplaudindo o vosso circo,
esguichando assombros
de quem teme a criação que não for
o apelo, a asa d’ouro que cobiçam...
(Oh, pequenos deuses somos
em palavras menores,
e grandes se falamos
do esplendor, da glória, da luz)
Revolve-se-vos as entranhas,
entre o acordo e o desacordo,
entre o juiz e o arguido,
entre vós e essa balança,
à qual não dão um pontapé
Por tudo tentar em vão...
Toda a verdade tem de vir,
mas que não venha
em fúria escarlate, ou venha,
mas que não seja ruiva, ou seja,
mas que não tenha sardas, ou tenha,
mas que não levante a mão esquerda
ou a tenha erguida
como prova da capaz imensidão do gesto...
Ou então, que venha
mansa ou não,
cuidadosa, e seja Beatriz,
assim, leve, ligeira, ou não,
de olhos redondos, de criança, ou não,
que ela não levante a voz, ou grite,
para que a verdade seja mais mansa, ou alta,
mas se pague com a morte...
Que venha pura e inocente, ou não,
ainda que magoe no dizer, sempre,
ainda que seja vale, sombra e solidão,
ainda que vos faça morrer...
Nada é assim, vos digo,
não há poeta que não omita!
Todos eles cantam e são flautistas,
todos dão a imagem que imaginam que imaginam,
todos eles enganam para poderem segredar!
Até no vómito, e nas palavras duras,
até nos escombros de uma guerra,
até nas manchas que expõem,
são o engano da palavra!
Toda a realidade é essa e mais um pouco,
toda a verdade desnuda,
só ao ouvido é dita...
Todas as palavras são vestes,
daquilo de que vós,
se se aproximarem,
e, ao despirem,
não acreditam.
Só ao ouvido
e sem som,
nesse silêncio
de cada um,
longe de cada um,
no distante horizonte,
que é só memória e mais...
é dita aquela,
que ao cair,
acesa e erguida,
vos dá o dom, ou não.
(Cynthia Guimarães Taveira)