sexta-feira, 8 de maio de 2015

"A rosa que te dei não foi criada num jardim" *



* Título retirado de um verso de José Cid


Não há nada para imitar num jardim,
nem essa rosa abrindo a norte,
nem a pétala que cai e sobe o monte,
nem o canteiro pelo musgo atravessado,
nem essa terra que na chuva foi.
Não há nada que se imite,
nem nada que seja arte
é só a realeza que lhe imprime
este e aquele tom e a sua sorte.
 
Passas e levas a flor,
e ao largo passaste e a levaste,
se te dão o ancinho sabes o que baste
para iludir a morte sem a levares.
 
Mas não há nada nesse jardim,
que não seja espelho e não consorte,
nem por dentro o levas
se te desvias do desvio da morte.
 
Não há nada para ser num jardim,
nem jardineiro, nem flor, nem arte,
enquanto ele te suprimir visível,
extingue-se a chama da sagrada ponte.
A arte é somente o silêncio
deixando ouvir a fonte.
 
Há um tipo de memória que é um fio finíssimo de verdade. É essa uma memória complexa,
sobretudo quando se quer manifestar como coisa real e fora do tempo. Esse tipo de memória usa como que de um voluntarismo próprio e tenta, a todo o custo, contrariar as falsas memórias e aparências da História. É complexa porque é o relâmpago de verdade que houve no cerne da inexactidão do tempo. É o “concreto” e “definido”, no que tem de absolutamente harmonioso na confusão das fífias da orquestra...
A relação com ela pode ser semelhante à relação que se tem com um anjo, nunca passiva (apenas para os místicos que suportam tudo, e crêem em tudo, até na ilusão como ilusão) , embora essa relação tenha o seu quê de místico, como detalhe necessário, que parece não se importar com o próprio tempo. Uma vez entendendo-a, e assimilando-a no que tem de tipicamente eterno, então poder-se-á unir tal integração (que é uma integração plena naquilo que é a intensão do acto) às palavras de Pessoa: “quando se é mestre já se está fora dela” [ordem].  Aí, a linguagem torna-se de facto uma escadaria com vários níveis, na qual, cada qual apreende o seu grau ou parcela da sua própria realidade, sendo que o que “está fora dela” entende todos os degraus como realidade, ao mesmo tempo que a escadaria se dissolve. É nessa altura, também, que o cálice é dado a beber. Expectantes, os discípulos, e só e apenas quando são discípulos, provam a sua própria missão, incorporando-a, como elementos complementares de um zodíaco.  É o brilho dos doze sóis brilhando na simultaneidade. Doze que são um. O reconhecimento do discipulado é também o reconhecimento do mestrado.  E não há semântica, sequer, que possa falar do inominável. As forças opostas/complementares tendem a tornar ainda mais forte o vinho dado a beber. E não é no vinho dado a beber que reside o sangue do mestre. É no acto de dar o vinho a beber que ele reside. Pedir para afastar o cálice não é negar o cálice, é pedir que o gesto mude. Nessa memória, o gesto é meticulosamente divino.
Caindo-se no erro de chamar destino a toda e qualquer coisa, sobretudo nos dias de hoje, isso parece ser uma espécie de leviandade com o próprio tempo...  a fórmula que se ouve em determinados círculos, de que cumprindo o destino se cumpre a vida, é, na maioria das vezes, a capa  e a espada do herói e apenas isso, nada tendo a ver com o destino, ou aquilo a que se deverá chamar destino que é, tão somente, quando se dá a manifestação desse fio intemporal embora, temporalmente, diluído no vinho. Daí à legitimação do próprio tempo vai um grande passo... pois o movimento deve ser pendular, da mesma forma que se colhe e semeia. A dessacralização contemporânea, que é apenas o bloqueamento do acesso a tal tempo mítico, que, ainda assim, permanece na sua força como um tempo, não se afastando da sua noção, ainda que intemporal, não é a-temporal... não permite sequer a escuta... É por aí que, para quem já está fora dela [ordem], possa haver um ataque de riso, ou de choro, tanto faz, na observação de um rito. A consciência do desfasamento torna-se dramática pela incapacidade de comunicação desse desfasamento a que se assiste. No entanto, e ainda assim, cada um prova o seu cálice, porque tudo o que é eterno funciona de alguma forma e esse cálice é mais ou menos saboroso conforme a quantidade de espírito no vinho dissolvido. Quanto menos estiver sujeito o sujeito à imitação, menos sujeito será e mais próximo está da prontidão.  Em última análise, neste zodíaco activo, os planetas possuem mais dois movimentos que estão praticamente invisíveis no mundo ilusório, pois aqui só os vemos girando sobre si próprios e em torno de um centro de forma elíptica. A forma elíptica permite, no entanto, a percepção de um terceiro movimento, de afastamento maior ou menor do centro, e o outro que falta nesta quadratura visível, mas que é visível no invisível, é o ascendente e descendente, e quantas vezes este movimento é reintegrado nos sonhos... possuindo os sonhos a capacidade de repor determinados “valores” ou “aspectos” que se encontram invisíveis.
 
A iniciação é, de facto, um conjunto de “estados”, daí que a quantidade de ritos seja absolutamente irrelevante para que ela suceda. Até porque o rito, na sua intensão, é tão rito que nem de rito necessita. Apenas de intensão. A intensidade é uma resposta, que pode vir ou não, na sua liberdade, não é uma consequência, porque a liberdade é livre até da consequência. A intensidade é a intensão expandida. Como a não-palavra é a palavra no seu esplendor.
(Cynthia Guimarães Taveira)

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