terça-feira, 20 de agosto de 2019

Estelas

Pintura de Cynthia Guimarães Taveira

Tive a sorte de encontrar quem fizesse da mesma forma e com a mesma linguagem. Na verdade, é uma coisa antiga isto das estelas que funcionam como estrelas. E esta coisa do repentismo, de não se pensar muito nem racionalizar demais. Evidentemente que quem encontrei sofre também da total, quase total, incompreensão dos outros que estão muito mais bem adaptados a estes tempos modernos. É certo que, antes de o encontrar a ele, encontrei uma cápsula do tempo primeiro que me levou a esse mundo onde as nossas essências da mesma linhagem flutuam e se mantêm constantes enquanto este mundo precisar. Precisa cada vez menos por não compreender e precisa cada vez mais pela mesmíssima razão, na verdade. Para ser precisa isto das estelas e das estrelas e das flores é fundamental para o rito que é, ou deveria ser a própria vida. Um rito que se vai anulando, desaparecendo a pouco e pouco porque, às tantas, já nem é necessário. Não como esta sociedade moderna desritualizada. Não. Essa nem chega a passar pelo rito e, por isso, não percebe nada de estelas, de estrelas e de flores. Pensam que inúmerar as espécies é o suficiente para serem entendidos na matéria. Um pouco como a história que seduz, factual mas sem interpretação. Na verdade isto das estelas tem que se lhe diga. São concentrações energéticas e de outro plano. Não tem nada a ver com os sonhos e as divagações que são úteis como uma valsa rodopiante, onde se executam os movimentos e nos habituamos a coordená-los. A estelas são de outra ordem. São estrelas fixas, pontos de encontro, pontos de fuga e pontos de orientação. O seu espírito é quase inacessível na sua plenitude. Não há nelas ausência total de movimento, antes pelo contrário, o movimento é tão rápido que se torna um salto entre mundos. Há uma respiração própria nelas, uma fixação que é, em simultâneo, um movimento. Tais coisas passam despercebidas a quem não é da mesma linhagem ou a quem se afunda na técnica, nas metáforas geométricas ou na perfeição da pincelada. Na Estela, nas Estrelas e nas Flores não há nada disso. Andamos todos demasiado descontraídos para tais precisões. A nossa precisão é outra e vem doutro lugar. Efervescente de liberdade. Depois esse espírito que é livre resolve parar nas estelas por um pouco e, como é omnipresente, pode aí ficar sem que deixe de estar noutra parte. Estive mesmo para lhe pegar no braço e dizer-lhe que eles nunca vão compreender, mas teria sido estúpido da minha parte. Ele é mais velho do que eu e sabe disso há anos. Ele cruza os braços perante o contexto deste atabalhoado mundo. Eu também. Não é uma questão de fuga ou de isolamento é uma questão de providência. A providência conta muito para estes seres. Ela sustém as coisas e protege-as da precariedade. Um pouco como as estelas, as estrelas e as flores. Estão na presença, no brilho e no botão. Que interessa se compreendem ou não? Uma estela, uma estrela ou uma flor não têm de se fazer compreender. Se não compreendem não venham dizer a quem não nasceu para ensinar para ensinar, tim tim por tim tim como se faz. Qualquer um de nós tem mais do que fazer. Quem vê, vê, quem não vê espera-se que um dia venha a ver pela mão da providência. Nada mais. Estelas, isso é coisa muito antiga. Outras cabeças, outra forma de estar e de pensar. E sobretudo de sentir. Tenho essa maneira de sentir a encher-me o coração. É um bocado como aquilo do homem sagrado e do homem profano. Mas não tem nada a ver com estudo ou catequese, nem pensar. É qualquer coisa que nos leva a fazer estelas, mais do que a contar histórias. É qualquer coisa que já nasce connosco. Foi bom encontrar alguém assim. Afinal não sou só eu. Sim porque vai rareando e começamos a pensar que alguma coisa anda de errado connosco. Mas não, é mesmo assim. Estelas, estrelas e flores. Muito antigas. Muito mesmo.

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