sábado, 27 de junho de 2020

A ideia




Não há ideias porque as ideias andam sempre confusas. Queremos sempre umas ideias límpidas ou imaginamo-no-las assim. Uma ideia que apareça e que preencha quase tudo. Alguém que vá a passar na rua e de quem possamos dizer: ele tem uma ideia. Levá-la debaixo do braço como se fosse um jornal. Idealmente, a ideia é quase imaculada e chega mesmo a ter um mundo só para ela, o mundo das ideias e, embora a ideia não seja uma utopia, já o mundo das ideias nos surge como uma coisa à parte. O tal universo à parte. Podemos ser defensores de uma ideia original ou simplesmente de uma ideia. Somos imediatamente considerados mais ricos por isso, ligeiramente superiores embora também haja ideias tristes, vergonhosas ou inadmissíveis, mas essas são consideradas pecado no mundo das ideias. Sim porque esse mundo está embutido de catecismo embora digam que não. O catecismo das ideias. Quando as ideias se apresentam confusas, dizemos que não são ideias ou que "não fazemos a mínima ideia". Não fazer ideia é sinal de ignorância, por outro lado, "ter ideia" é ter uma impressão, uma vaga sabedoria sobre qualquer tema. Por isso até se diz, "vaga ideia", uma ideia que ainda não se transformou num monolito que preenche o espaço todo. No entanto, ter uma ideia como se fosse um monolito é ter consequentemente uma ideologia. Por isso se diz "ser fiel à ideologia". Quem não é fiel à ideologia não está na ideologia. Pode tê-la mas não está nela completamente e, por isso, não preenche o espaço todo. Uma pessoa "meio fiel" à ideologia não participa na sua totalidade que é aquilo que a define. Todas as ideologias são totalizadores, totalizantes e caminham para a ditadura monolítica. Por isso são monólitos. Ser uma pessoa com várias ideias é ser-se considerado rico. Ali vai uma pessoa com muitas ideias. Viver no mundo das ideias, por outro lado, é como viver no mundo da lua, é ser-se meio aluado e não ter os pés na terra onde, definitivamente, as ideias não vivem. Mas então vivem onde? Só há ideias no mundo das ideias? Há deias fora desse mundo? Tenho a sensação de que as ideias são como animais domésticos, às vezes são úteis para nos fazerem companhia, outras vezes, chegam mesmo a fazer parte da nossa família. Também podem ser abandonadas, as ideias. Quando se desiste de uma ideia ou se tem bom senso ou apenas se perdeu a esperança naquela ideia. É conforme a ideia. Há ideias com mais qualidade do que outras e há ideias em quantidade também. No mundo das ideias há muitas. Ter só uma ideia ao longo da vida não parece ser grande coisa. Mas há ideias que "mudaram o mundo". Outras que o estragaram mais um pouco. Foi quando deixaram de ser ideias apenas, encarnaram e tornaram-se coisas, embora todos saibamos que uma ideia é uma coisa. Uma coisa qualquer. Podemos ter ideia de tudo menos daquilo que não podemos ter ideia. É um estranho finito disfarçado de infinito. Mas o infinito também é uma ideia que podemos descartar e ficarmos só com o finito e, nesse caso, a ideia-monolito encaixa-se na perfeição. No infinito é que não. A ideia de infinito não coincide com a infinita ideia. O universo sufocaria e tornar-se-ia finito por excesso de acompanhamento da ideia. A ausência de ideias significa que estas estão confusas, que não estão delimitadas  e que se encontram diluídas no caldo universal das ideias. A ideia de um caldo universal das ideias é uma boa ideia. Serve para explicar a origem das ideias. Uma ideia que explica o seu próprio nascimento. De onde vens? Do caldo das universal das ideias. E fica tudo explicado sem se fazer a mínima ideia que caldo é esse nem que outras ideias poderão andar por lá. Isto de ter ideias pode ser muito complicado, ou muito simples. Podem surgir espontaneamente ou podem levar anos a surgir. Também podermos pensar anos e e anos numa ideia. Ficar por ali, a pensar nela como se fosse uma equação de difícil resolução, ou sem resolução. Mas nem todas as ideias têm de ser resolvidas. Algumas já são "ideias feitas" e isso não é considerado bom. Uma ideia feita não anda muito longe da ideologia só que esta última é considerada boa. Sobretudo para a ideia de democracia. Até dizem que a ideia de democracia vive do "diálogo" entre ideias feitas. Depois encontra-se a moda, a média ou mediana e a democracia fica mais gorda. A ideia de uma democracia gorda pode ser preocupante. Normalmente, na política, associamos os gordos àqueles que "comem tudo e não deixam nada", mas se calhar é só uma ideia feita. Quando dizemos que não temos ideias feitas isso é considerado bom. Termos uma ideia incompleta é melhor do que não ter ideia nenhuma, não fazer ideia e ou do que ter uma ideia feita. No entanto, a inocência terá ideias? É uma ideia a ponderar... Hoje diz-se muito que ninguém pondera. Ponderar é o mesmo que "pensar" só que está mais associado a uma "pré-acção". Uma pré-acção não é o mesmo do que ter uma ideia feita, normalmente associada
ao pré-conceito que não é considerado uma coisa boa. Um preconceituoso é um ser pouco benéfico. O homem fiel à ideologia, quanto muito, é fiel. Um homem com muitas ideias é melhor do que um homem com poucas. Mas um homem fiel a uma ideia é melhor do que um homem com muitas ideias, mas sem ser fiel a nenhuma. Normalmente é apelidado de "troca-tintas". Não faço a mínima ideia porque é que escrevi um texto destes, com tanta falta de ideias. Talvez haja uma falha em mim. Uma ausência de ideias sobre a ideia, ou de uma qualquer ideia monolítica sobre a ideia. No entanto, tenho ideia de ter escrito um texto sobre ideias. Mas talvez isso tenha sido apenas uma ideia. E é apenas uma ideia. Podia ser grande, mas é só uma. "Ter uma grande ideia" é diferente de ter apenas uma ideia. "Ser apenas uma ideia" é uma coisa modesta. Uma grande ideia pode salvar o mundo. Não é modesta. Será que as ideias têm tamanho?

1 comentário:

  1. As ideias têm tamanho, sim senhora. Ainda que muito reduzidas enquanto texto, podem ser tremendas , cheias de volume e peso

    ResponderEliminar