quinta-feira, 11 de junho de 2020

Outra gente


A maioria das pessoas que integram este livro não ficou para a História porque o conceito de imortalidade nada tinha a ver com o moderno "ficar na História". Espanto-me com as pessoas de hoje que baralham tudo. Hoje a droga é vendida em autênticos supermercados. As chamadas "guerras religiosas" são religiosas apenas em parte. Os fanatismos são aproveitados e fomentados para que uns poucos tenham mais poder e, logo, mais dinheiro. O que os move é a aquilo que Mircea Eliade chamou "a fuga do tempo", ou a fuga da angústia do tempo. No íntimo, poucos são os que acreditam na transparência e na possibilidade de sermos transparentes face ao divino. Poucos são genuinamente curiosos e, por isso, poucos são os que passam verdadeiramente o umbral para outra dimensão e se o fazem, em certa medida, por qualquer acaso da vida, imediatamente essa experiência é convertida em guerra. Guerra para serem ouvidos, para serem falados, para serem conhecidos, para conseguirem mais disto ou daquilo e depressa a demanda se dissipa na bruma. Os hábitos civilizacionais estão virados única exclusivamente para esta esta vida, não para a vida paralela ou para outra vida. As massas não conhecem mais nada e são geradoras de elites que trazem o ADN das massas embutidas. Não é só Pessoa que é mal lido, Camões também o é e, quando fala de obras que vão libertando os homens da lei da morte, isso é imediatamente conotado com obras visíveis (se possível espampanantes) que conduzem os seus autores para "um lugar na História". Na verdade, ele dirige-se ao povo português em geral. Seria ridículo se fosse esse o sentido porque todos os povos ficam na História, ainda que acabem por serem esquecidos ou por serem desconhecidos. O que indicava, com esta ideia, era que a lei da morte podia ser alterada segundo aquilo que os seres humanos laboravam. Segundo o que lhes interessava, segundo o que construíam em si, segundo as suas possibilidades, segundo os seus sonhos. Um ser humano é como um povo. Se antigamente a "assinatura" da obra era perfeitamente dispensável, isso significava que o homem era até mais importante do que o seu nome. Mais importante do que aquilo que mostrava ser. Da imagem que projectava de si. Do que a sociedade. O homem era o próprio mundo do qual brotava a obra. Era um ser criativo. Co-criava.  A memória daquilo que ficava era a da obra, a imortalidade não tem nome próprio. O hiato provocado por esta falsa noção de que o nome tem de ficar para a História está em desacordo até com o Culto do Espírito Santo. Nesse culto, a começar pelo nome "Espírito Santo", não há nomes. Três crianças anónimas representam esse mesmo Espírito. Até hoje, nenhuma delas ficou na História por isso e, no entanto, ao participar no culto, contribuíram para a imortalidade. A qualidade das pessoas tem vindo a diminuir. A qualidade da sua curiosidade também. Isto por causa da confusão apontada por Guénon: confunde-se "perpetuidade" com "imortalidade". E esta pequena grande diferença diz tudo acerca da qualidade da curiosidade que é nula e é alimentada única e exclusivamente pelo sentido que, durante muito tempo, se deu às coisas: se funciona, é bom. O Funcionalismo na História da Antropologia não passou de uma corrente nascida no século XIX, mas não passou à história pelo facto de ser esse o único eixo de curiosidade que faz girar as pessoas. As técnicas iniciáticas não eram infalíveis. Tudo dependia da qualidade do ser humano. Não passava pela cabeça de ninguém responsabilizar a "técnica" (que funcionava) se não se conseguissem resultados. A técnica em si era apenas um suporte para o mais importante: a qualidade do ser humano. A sua capacidade. O seu desenvolvimento (não se pode confundir com "evolução", ideia também do século XIX). A técnica falhava se o ser humano não conseguisse o seu propósito porque era ele quem conduzia a técnica. Isto é óbvio. As religiões são restos diminutos de uma outra forma de ser e de se estar no mundo. São técnicas que na sua grande maioria falham porque a qualidade humana falha. Se não falhasse talvez atingisse o nível das religiões dispensáveis. Seriam dispensáveis pelas melhores razões e não pelas piores razões como são hoje. "O vai ficar tudo bem" de hoje é o desastre do futuro exactamente pela qualidade desse "vai ficar tudo bem" que é mais do mesmo... Teria sido melhor dizer "vai ficar tudo mal" e aí, teríamos sim, um ponto de partida.  Foram buscar o símbolo do arco-íris, símbolo da aliança com Deus. Lembram-se dele nas aflições. É o costume.  Mas esse arco só é possível com a qualidade humana. Essa ponte é feita pelo Pontifex (construtor de pontes) que pode haver ou não dentro de nós. Prefiro, sem dúvida, dizer que vai ficar tudo mal. Aí reside a verdadeira esperança de endireitar as coisas a partir da raiz. Os portugueses são bons construtores. As suas obras em pedra espalhadas pelo mundo são apenas o lado visível e materialista daquilo que podem ser dentro deles mesmos. Valem o que valem, materialmente. E foram feitas por anónimos que não ficaram para a História, não têm nomes sonantes e não apareceram nos escaparates. A maior parte da poesia não é visível. A maior parte da obra fica no segredo dos deuses que se deliciam e se  rebolam com as nossas ideias dadas por eles. E cá em baixo, é ao contrário.

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