segunda-feira, 17 de agosto de 2020

O sorriso de António Telmo em "António Telmo, Vida e Obra"



http://m.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/voz-passiva-100/?fbclid=IwAR3w7XQBXLDIgvRi8mYu0Io1rYMQc-a66vElgD4iHkhll10Japi0cfrdQTQ


Quando penso em António Telmo, sorrio. A nossa expressão facial, quando nos lembramos de alguém que já partiu, é importante. Talvez nos fique na expressão a amargura e a tristeza dos últimos tempos de vida ao termos acompanhado alguém, diariamente, numa doença. Talvez nos fique uma expressão serena, como é o que me acontece quando me lembro de Dalila Pereira da Costa. De António Telmo, o sorriso mantém-se inalterável. Até num sonho no qual ele apareceu como um mestre de um estranho jogo. Sonho premonitório que falava dos passos seguintes da sua obra.

O sorriso de António Telmo era achinesado. Os olhos ficavam ainda mais rasgados. Normalmente conversava com um sorriso e dizia frases que ficavam na memória, como só aquilo que é escutado em presença fica. Lembro-me de uma pedreira e de um lago visto nela por Telmo. A sua visão de um lago de paz para onde se encaminharia depois de se libertar do seu corpo. Ou da brincadeira dele quando disse a um pequeno grupo que junto dele se encontrava que, se nos focássemos nas orelhas dos nossos interlocutores, estes, a pouco e pouco, se assemelhariam cada vez mais a animais. Lembro-me de uma refeição junto dele na qual falávamos baixinho sobre experiências extra-corporais e de me ter contado “sofrer” da tentação de se erguer além do corpo, indo mais longe assim, e de ambos termos concordado que, sem mestres, era uma actividade perigosa forçar esse tipo de vivências. Lembro-me de, já perto do fim, ele ter pegado num símbolo que lhe ofereceram, e que tinha sido desenhado por mim, e de me ter segredado: “Este é o meu lado pseudo-católico”. E de termos rido os dois quando lhe disse que era a autora do desenho do objecto. “Tem toda a razão”, disse-lhe,” isto é muito mais do que Católico. Tem a ver com a Idade do Espírito Santo” (a única em que os contrastes se harmonizam). Lembro-me de ele se rir ao contar uma historia passada com ele sobre a pseudo-serenidade, o pseudo-despojamento e a pseudo-impassividade e do modo como eram frágeis e nitidamente visíveis a olho nu esse tipo de pessoas que reclamavam isso para si próprias e exigiam o mesmo aos outros (mesmo que fosse uma exigência sub-reptícia). Lembro-me de, numa palestra sua, terem entrado três personagens com as quais tinham existido alguns desentendimentos e de ele ter parado de falar, de os ter olhado e de ter dito a sorrir: “Lá vêm os inimigos”.

Se o seu sorriso trazia boa disposição e ironia fina, a sua voz profunda, grave e com a estranha capacidade de ser o eco de ela própria, era um mistério. Foi um dos últimos portugueses livres a partir. Livre de rótulos políticos e religiosos (mal sabia ele a forma como, pouco depois de partir, esses terrenos se aproximariam de uma maneira tão promiscua – e crescentemente promiscua -- como só existiu na Segunda Guerra Mundial). Depois da partida de este tipo de pessoas, normalmente, o discipulado inseguro e difuso procura nelas a legitimação das suas ideias e das suas crenças, ou seja, abandonam no seu “professor” tudo o que não lhes interessa e aproveitam, muito bem aproveitado, tudo o que se possa vir a encaixar e assegurar a continuidade dessas mesmas ideias e crenças que adoptaram. Mas António Telmo sabia que não era assim o “movimento” da Tradição ao longo dos anos. Ele próprio tinha tido as suas personagens-chave, importantes para a sua aprendizagem, mas como tinha escutado a sua voz interior, a mais importante, depressa desbravou o seu próprio caminho, seguiu as suas próprias ideias, e foi estabelecendo para si próprio (e para mais ninguém) as suas crenças, tendo criado para Deus o seu próprio Universo e foi, por isso, um dos poucos portugueses completos que conheci. Os restantes, os que convictamente e conscientemente procedem a uma selecção do seu trabalho com vista a alimentar as ideias e crenças que adoptaram (nunca são genuinamente suas), são candidatos a portugueses, tendo ainda de percorrer um longo caminho até adquirirem voz própria (se é que alguma vez irão adquirir), indiscutivelmente sua. Portugal só pede que sejamos nós próprios.

Creio que António Telmo faz parte da constelação invisível que envolve e protege Portugal. Uma constelação de vozes próprias e inconfundíveis, de almas que amam o seu país e que se entregaram nos braços da Iniciação que este país permite, chamando a si aqueles que estão aptos a deixarem a sua marca, o seu modo de ser, de estar, de escrever, de pensar, de criar.

António Carlos Carvalho escrevia, há pouco tempo, que nós íamos alegremente ter com António Telmo. Não podia estar mais certo no advérbio de modo.  Íamos com um sorriso para encontrar o seu sorriso e as suas palavras, por vezes, desconcertantes e que nos faziam pensar. Os livros, li-os todos e muitos deles reli. Nem sempre os autores nos aparecem desfasados do que escrevem no convívio efectivo e presencial. António Telmo foi um deles, bem como Dalila Pereira da Costa. Lê-lo é, portanto, sentir a sua presença para quem com ele conviveu. Fez jus às palavras de Pessoa: “Põe quanto és/ No mínimo que fazes”. Foi um português completo e já restam muito poucos e, a maioria dos que restam, devido as estes tempos de fim de ciclo, permanecem invisíveis e camuflados por entre a vegetação caótica.

O interesse de António Telmo pelo elemento vegetal é a sua marca rosa-cruz que é sempre totalmente independente das Ordens e seitas, quer sejam públicas ou pouco públicas. Esse interesse ou chamamento era absolutamente genuíno e de outra maneira não poderia ser. O elemento vegetal é o mais ancestral na constituição do ser humano e não se deixa apanhar nem pelas Ordens nem pelas seitas. Chama a si aqueles que lhe pertencem, sem palavras, apenas através da Santa Providência (que é diferente do sopro do Espírito Santo, ou seja, pode ser complementar, mais tem outras características) que é a sua linguagem. O elemento vegetal tende à difícil domesticação,  se é que esta não é mesmo impossível, e daí que, da mesma forma que reconhece os seus, também não reconhece os seus. O elemento vegetal é verdadeiramente o “Totalmente Outro” em nós, para além da nossa Vontade (a nossa Vontade só é adquirida muito mais tarde). António Telmo sabia disso. Um dia, íamos os dois a descer uma rua em Sesimbra. Parámos junto a um muro. Ele fez silêncio, olhou para o muro, apontou para uma flor que ali tinha nascido e perguntou-me:

-- A Cynthia sabe qual é o nome desta flor?

Totalmente ignorante do nome da flor, respondi-lhe:

-- Não faço a mínima ideia.

Ele sorriu ainda mais, os seus olhos brilharam ainda mais. E continuou o caminho.

Três anos mais tarde, fui chamada pelas flores. Lembrei-me da flor e do sorriso dele e dirigi-me a um novo mundo. O verdadeiro.

Sem comentários:

Enviar um comentário