sábado, 24 de abril de 2021

Quando o sol nasce a ocidente e se põe a oriente



 




Portugal, China e Sol

 



Quem se debruça sobre as iniciações da puberdade sabe que elas são sobretudo dirigidas ao sexo masculino nas sociedades tradicionais. As casas dos homens são muito mais frequentes do que a casa das mulheres. Uma das explicações será a de que as mulheres são naturalmente iniciadas no mundo pelo próprio corpo e estando, por isso, dispensadas de determinadas provas. O sangue, a dor, as lágrimas a par com as quatro idades da mulher são o suficiente para a associarem à lua, a grande fonte de medida no mundo. Pela lua se medem os ciclos do mundo inseridos num ciclo maior e solar. Não deixa de ser curioso que a ciência, toda ela, se baseie na medida, ou antes nas diversas medidas. O mundo lunar no seu esplendor. Não deixa de ser curioso, igualmente, que um dos passatempos preferidos dos homens seja o de medir tudo, desde as forças às vitórias. Quer no caso das mulheres que com o corpo são inseridas nos ciclos, quer o caso dos homens medidores que com esse passatempo são inseridos na matéria, o mundo lunar, é o que permanece. O mundo solar é sempre uma síntese qualitativa no qual a medida não entra. É nesse sentido que existem anos bons e maus, anos piores e anos melhores. O ciclo é diferente e o critério é diferente quanto se trata do julgamento. Numa equipa de futebol, por exemplo, uma série de vitórias não constitui a qualidade do ano. O sagração do campeão não é igual à qualidade dos jogos. Um campeão à custa de penáltis deixa um gosto amargo na boca. O mundo lunar dos homens é curioso porque nele medem tudo: a potência do carro, por exemplo ou a quantidade de adeptos que conseguem atrair com as suas ideias. O mesmo se passa na política. Os votos são a permanência da medida. A distancia entre dois pontos ou a quantidade de vezes que o mesmo voto se repete num determinado universo. A feminização da sociedade apontada por Guénon e que tanto choque provocou às feministas cegas, é uma chamada de atenção para a sociedade no seu geral e do modo como esta vive equilibrada na frágil barcaça da medida. A britcoin, por exemplo, é uma medida imaginária, numa barcaça ainda mais frágil virando-se à mínima ondulação. É a elevação do estatuto que a nossa economia global já possuía porque ascende à virtualidade. A virtualidade tem cada vez mais prestígio. Desde as redes sociais, passando pela economia, uma espécie de compensação pelo desconhecimento do mundo subtil, um mundo subtil imaginado por não se conhecer o verdadeiro. Os deuses são substituídos por deuses talhados a régua e esquadro porque a base é apenas a medida. Entre a virtualidade e o mundo subtil, nestas novas cabeças, não há diferença substancial. Na virtualidade, que não passa de uma fantasia, toda a limitação, toda a ausência de liberdade é facilmente recuperada. No entanto, até mesmo o mundo subtil é uma refracção, quando não é uma distorção, dos raios solares, e disso não se fala. Silêncio absoluto. A realidade do mundo lunar é apenas substituída por uma imagem da imagem do mundo lunar. Nesse sentido, há um decréscimo acentuado da qualidade. Há uns dias apanhei na televisão, na RTP 2, um locutor chinês a falar do nosso país. Com aquela voz pausada, igual à dos documentários chineses, o locutor ia falando dos nossos pasteis de Belém, do nosso presunto, do nosso vinho e era fascinante ver aquilo que valorizavam em nós: o tempo e a mestria com que fazíamos os nossos produtos. Aquilo que nesse documentário era valorizado, à boa maneira tradicional chinesa, era a forma como as coisas eram feitas e não a quantidade de coisas que eram feitas. Os pastéis de Belém eram tocados pelas mãos dos pasteleiros e continham um segredo passado entre várias gerações ao longo do tempo,  não eram feitos numa fábrica, o vinho do Porto era pisado pelos pés e maturado por anos, o presunto, depois de salgado, era armazenado e abandonado ao tempo de cura lenta… eram todos os processos naturais do nosso fabrico que encantavam o olhar chinês, era aquilo que tínhamos em comum, um desenrolar de um enlace entre o corpo, a matéria-prima e o tempo qualitativo, enfim, todo o processo artístico uma vez que as práticas artesanais são a base de toda a Arte. Estranhamente, no fim, um chinês falava na durável e boa relação que o nosso povo tinha com a China, e ainda mais estranhamente disse: “nós queremos ser compreendidos”. Como se, pelo nosso vagar e sabedoria, nós pudéssemos, de alguma forma, resgatá-los a eles do sono de si mesmos em que se encontram. Um mundo solar, onde só semelhantes se encontram. Quando vejo os homens a medir forças, no meu olhar de mulher, parecem-me crianças tontas que ainda não perceberam nada e que não passam de personagens de um mundo efeminado, embrutecidos pela obsessão da medida. Um dia, quando for necessário e quando os homens portugueses, e as mulheres que os copiam, deixarem de lado essa obsessão, o sol vai nascer a Ocidente e irá iluminar até a própria China. 

terça-feira, 20 de abril de 2021

Os neo contemporâneos

 


Quando começamos a incomodar os neo-contemporâneos, de todas as ordens e feitios, imediatamente chovem, nesta sociedade de esoteristas altamente misóginos, imagens de  mulheres escarlate. As pobres referências que constam nos seus dossiers individuais não vão além de uns míseros séculos atrás. A pobreza masculina não se poupa a dizer, a referir, a sublinhar, a reafirmar e a citar a velha frase tornada batido de frutas para desportistas esotéricos de longo, penoso e repetitivo curso: "penso que as mulheres são superiores aos homens", e depois, vai-se a ver e... nada. É a chamada superioridade energética disfarçada de musa que dá jeito nas horas de tédio... na verdade não são superiores nem inferiores, são iguais e diferentes, mas a igualdade incomoda muito mais do que uma superioridade concedida em argumentos para que, na prática, ao mais pequeno gesto de uma senhora (para alguns as mulheres duvidosas, mas muito intelectuais, não devem ser chamadas de senhoras, epíteto dado às simplórias, mas boas esposas, quando são) lá venha a corte de esoteristas formados nas leituras de toda a História com olhos de Crowley (para eles este mago é o complementar de Cristo disfarçado de oposto), bramir a literatura juvenil que os encantou nas noites em que nada se passava. Na verdade, apenas utilizam o argumento da "superioridade da mulher" para a afastar para bem longe, colocando-a num altar bem ideal de onde não possa sair, não se possa mexer e, muito menos, escrever ou falar, para que não lhes seja roubado o lugar; bem sair até pode, desde que seja para práticas sexuais consideradas muitíssimo sagradas por essa corte de imberbes mentais, altamente justificativas do autoconvencimento , bem no fundo, da superioridade masculina...  Há que dizê-lo: os esoteristas portugueses são portugueses e, na sua grande maioria, tiveram uma família católica  cujas virtudes lhes foram, desde cedo, impostas e a rebelião é tão pouco imprevista que é feita exactamente com as mesmas cartas de jogar com que joga a Igreja Católica. O bocejo é enorme. Nascer diferente de tudo isto, e nascer mulher ainda por cima, é estar condenado a não entrar na grupalhada e o pior é que é a única que existe. Os restantes ou são teósofos, com loucura agravada, ou são orientalistas cujo espectro vai desde o médio até ao extremo oriente e cuja linguagem não é totalmente nossa. Nascer diferente é uma condenação danada ao inferno em que este país se pode tornar. É por exemplo olhar de frente para estes tipos e sentir a pergunta num esgar que se torna quase sempre indisfarçável "mas o que é que este tipo quer?" e perceber depressa que a conversa é sempre a mesma, os tiques iguais (embora disfarcem dizendo que estão em campos opostos), os propósitos idênticos, e as atitudes altamente previsíveis. Dizem que as elites intelectuais estão por detrás de um país, ainda que pareçam ser as económicas e se assim é, não admira que o país esteja como esteja, atrofiado, inquinado, desgraçadamente preso a estereótipos internos, desde os medievais em que os fiéis d'amor canalizavam as energias sexuais para andar para aí a cantar porque, doutro modo, nada lhes saia e convinha ser anti-Roma quando se era filho desta,  ao produto de uma Inquisição com um cheiro a mofo tão intenso que ainda não deixou de se notar mesmo passados todos estes séculos, passando pelas modas estrangeiras e estrangeiradas que agradam aos intelectuais quando se sentem habilitados a adquirir algum poder. Nascer diferente é a maior provação neste país por ter estes neo-contemporâneos por contemporâneos. E que de mulheres, não percebem nada. Quanto mais de arte... ou de iniciação que é exactamente o mesmo. 

terça-feira, 13 de abril de 2021

O Projecto de Portugal



Ontem tive uma conversa com o meu irmão durante quatro horas. Na verdade foi uma conversa, um debate e uma discussão cujo fogo da emoção variava alternadamente, ora mais aceso, ora menos. O tema? Portugal. Dei-me conta ontem de que já há muito tempo tenho um Projecto para Portugal. Evidentemente que sempre houve pessoas que tiveram um Projecto para Portugal, ora mais espiritual, ora mais social, ora mais cultural. O meu implica tudo e implica um novo olhar sobre todas as coisas. Evidentemente que, naturalmente ninguém está interessado no que digo ou deixo de dizer. Talvez o meu irmão. Tive o gosto de debater com ele ideias. Ideias a sério e não murros no ar, bocas para os infelizes que nada podem fazer ou alternativas radicalistas fáceis e acessíveis. Ideias mesmo, aliás como era típico na minha família. Evidentemente que não as vou expor aqui simplesmente porque é completamente inútil. Como foi inútil a minha completamente infeliz participação no Facebook. A única vantagem, no meio disto tudo, é a de morrer com a consciência absolutamente tranquila. 

 

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Os que não entendem António Telmo



Tive de acordar absurdamente cedo por causa dos homens das obras que estacionaram aqui e fizeram os cães ladrar e, por causa disso, escrevo agora sobre os mundos interiores. Não sei que ligação existe entre os homens das obras e os mundos interiores, mas deve haver uma estranha relação de causa e efeito. Lembrei-me da Dama de Oiros de António Telmo e da forma como este tipo de relações entre as coisas marcam o tempo e o espaço da sua obra. Inicialmente, para quem está de fora, o facto de se deixar guiar por acontecimentos externos que correspondem a acontecimentos internos pode ser estranho para algumas almas que se aproximem da leitura dos seus textos. Estamos sempre muito habituados a dar mais crédito ao nosso mundo interior do que ao dos outros que, neste caso, nos são próximos por via de certas demandas. Se a vida for, como dizem, o reflexo de uma enorme mandala geométrica, a cada um a sua forma, como as flores são diversas. E a cada um o seu perfume que é uma mistura da ciência das balanças e do éter, esse quinto elemento misterioso e invisível que pode alterar o perfume, independentemente do peso dos seus elementos químicos constituintes e do qual não há provas. A prova, aliás pertence ao mundo da ciência e ao mundo dos juízes. O éter pertence ao outro mundo e toca este em determinadas ocasiões quando quer que o perfume de uma flor seja de determinada maneira. As correspondências simbólicas são fascinantes. Podemos passar uma vida inteira a fazê-las, como uma tecedeira que tece padrões. Na pintura, por exemplo, que para mim é um pouco como a tecelagem, começo por uma base. Uma espécie de tom geral, que até pode desaparecer no fim, mas que, despercebidamente, está sempre lá, mais ou menos visível. Por debaixo do azul, pode estar um amarelo, e ele vive e pulsa, nessa camada encoberta vertida de azul que nunca chegou a transforma-se visivelmente em verde. Assim, quem vê o azul, vê o amarelo também e, por inerência, o verde. E vê também o violeta, a cor complementar do amarelo, o laranja, a cor complementar do azul e o espectro invisível do arco íris. Algumas cores apenas se destacam mais do que outras, mas, nessas correspondências emergentes e submergentes, o espectro está todo lá. O mesmo se passa com alguns mundos interiores que lemos como se estes fossem constituídos por cores que, pelo facto de estarem mais visíveis, umas do que outras, não deixam de nos conduzir para o nosso próprio mundo interior e, quando tomamos consciência disso, então dá-se o encontro entre o leitor e autor. Tanto um mundo, como o outro, procedem do mesmo arco-íris. Subindo um pouco ainda de grau de interioridade, é nesse sentido que Dalila Pereira da Costa nos lembra a frase conhecida: “Os místicos falam todos a mesma linguagem”. Evidentemente que aqui se trata de um misticismo superior e não da vagabundagem sensitiva que podemos encontrar nos neófitos imberbes destas andanças e que normalmente tendem para a multi-dispersão na multi-sugestão que é o próprio mundo. No misticismo, como em tudo, podemos encontrar um lado inferior e um lado superior, convergente e inseparável da aproximação ao mundo da Iniciação, embora seja, ainda e apenas, uma aproximação. A passagem de um universo místico para o universo iniciático é a mesma que existe da passividade para a acção. O êxtase desaparece, a saída de si, esfuma-se, e passa-se, ao invés, a “estar em si”. Isto tem sido muito pouco compreendido, mas até Dalila, uma mística, faz referência a essa diferença. Será como a possibilidade de nos apercebermos de todas as cores do arco-íris num simples azul vertido sobre um amarelo que desaparece. Isto a propósito do desprezo que certas figuras têm demonstrado para com a obra de António Telmo. Normalmente são figuras de dois tipos: ou sobrepõem a razão a tudo e depois colocam uma cereja em cima do seu bolo racional, chamada Deus, muito ao estilo de Descartes, ou são aqueles que, tomaram a floresta pelo todo e que, ao largarem o êxtase, passaram a “sair de si para si” dando-nos a sensação de exteriormente “estarem em si”. O produto não é muito diferente do de Descartes, a diferença está no facto de nunca ultrapassarem o mundo da tecelagem, o de Penélope, o do Devir, num entrecruzar de fios, de símbolos, de contextos ou bases, infinitamente, sem que cheguem a ultrapassar alguma vez o próprio símbolo. O seu mundo é o mesmo mundo lunar de sempre, apenas a forma como se apresentam, com vestes luminosas e seguras, é diferente. Observando esses seres de perto, e confrontando-os com uma transformação directa, a sua reacção é de pânico, ou de incómodo, tal qual aponta Guénon no início, no quarto parágrafo, do seu livro “Os Símbolos da Ciência Sagrada” quando diz: “Para muitos católicos, a afirmação do sobrenatural só tem valor teórico, e ficariam muito pouco à vontade se tivessem de constatar um facto milagroso. É o que se poderia chamar de materialismo prático, de materialismo de facto; não seria este muito mais perigoso ainda do que o materialismo reconhecido, precisamente porque os atingidos por ele não têm mesmo consciência disso?”. Poderia acrescentar ainda, e passados alguns anos da escrita desta ideia, que existem por aí, muitos católicos disfarçados de pagãos e cuja reacção não é nada diferente perante o mesmo facto. O apadrinhamento do mundo interior do outro é coisa rara e quando existe, ou é feito com vista ao “discipulado”, normalmente cego e superficial, ou é feito com vista a um “mestrado”, fazendo “nossas” a palavra do “mestre” que adoptámos. Esta última acção também ocorre muito e serve a deturpação das mensagens exemplarmente até porque um Novo Mestre, só é legítimo com um Antigo Mestre, mas só é Novo Mestre, se trouxer alguma novidade, acrescentar um ponto (que nunca lá esteve) à história, ou se aproveitar uma visão parcelar do Antigo Mestre. Isto também se passa muito. Depois há, como dissemos atrás, aqueles que rejeitam o mundo interior do outro. Neste caso concreto de António Telmo. Nem o consideram Mestre de coisa nenhuma (e aí estão certos) nem o consideram sequer um aprendiz válido (e aí estão errados). Digamos que o tentam afastar e minimizar porque, ao invés de Iniciados, são aqueles que, embora não estando “fora de si”, em êxtase, passaram a “sair de si para si”, dando-nos a sensação de “estarem em si”, mas na verdade, estão continuamente presos aos fios de Penélope, tecendo os dias e as noites, enquanto Ulisses anda em aventuras solares que não lhe dizem respeito. O mundo solar é criativo, por excelência, embora venha muitas vezes disfarçado com a camuflagem bélica. Na verdade, António Telmo era uma figura incómoda como se ele próprio fosse um fenómeno que incomodasse a ordem pré-estabelecida de um padrão ou de uma mentalidade inalterada ao longo do tempo. Alguns lhe apontaram essa capacidade de fazer “tremer” quem dele se aproximava, não entendendo que a presença de algumas pessoas é naturalmente assim e não produto de iniciações contrafeitas como são as martinistas e que dão a mesma sensação, mas apenas por via da sugestão. Esse tremor, verdadeiro e mudo, sem ser produto de qualquer olhar ou gesto, é o mesmo que existe na própria terra, que vive e pulsa e só é captável e emitido por aqueles que se vão aproximando do seu centro.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Mundo lunar

No mundo lunar, que é este (quando não é sub-lunar...) o padrão é composto e nasce da medida. Mensurar é a palavra-chave de qualquer intuito dito ciêntifico. Ora, o imensurável pertence a outro universo. Apreendemos consoante os sentidos que temos e quando não os temos dizemos, em bom português, que é demasiada areia para a nossa camioneta. Já Guénon demonstrava o simples: que o atomismo não fazia sentido (ainda pouco se falava dos átomos), porque era divisível. O divisível, é-o, em valor indefinido e pressupõe sempre a "medida", por mais micro que seja. E os físicos lá vão alegremente, dividindo, dividindo. Depois, por vezes, esbarram com o inevitável, o grau indefinido da complexidade da divisão. A Unidade, pertence a um outro universo. Às vezes vão lá bater à porta e voltam para trás. É natural. Como natural é o universo em que vivem. 

Caos


 

Houve quem tivesse direccionado o mundo para o caos que agora atravessa. Nunca foi muito direito, mas sempre houve, aqui e ali, alguns pedaços dele que se escapavam ao caos total. Temos um belo futuro pela frente com desigualdades absolutas, entre continentes, países, classes sociais, famílias, pessoas. Nem todos terão acesso a determinados bens que se pensam ser básicos: casa, alimentação, saúde, segurança, justiça, educação. Antigamente, também não, é certo, mas agora damo-nos mais conta disso devido à globalização que só foi possível com o acesso a todos os meios tecnológicos de comunicação e aos transportes acessíveis e rápidos. Agora, o que se passa na China, passa-se aqui. Os desequilíbrios provocam mais desequilíbrios numa crescente e aparente viagem desenfreada até à desintegração. É possível que haja desintegração. A desintegração é algo que existe no próprio cosmos, na própria ordem. O desvio da natureza e da sobrenatureza e ainda de tudo o que está para além destas duas, provoca isso, inevitavelmente, porque não há sintonia entre o ser humano e tudo o que o rodeia e em simultâneo está dentro dele. Não me parece que haja outra explicação para aquilo que se assiste. É pena? É. Poderíamos ter direccionado a humanidade numa outra direcção, provavelmente mais duradoira. Poderíamos não ter de passar por cataclismos traumáticos levando até ao limite a possibilidade da extinção da espécie. Mas talvez tudo se tenha de passar exactamente assim. Talvez esta humanidade presente tenha nascido mal e tosca, incapaz de outros voos que não sejam os materialistas num constante e repetitivo processo de comprovar que "o meu sofá é melhor do que o teu", até chegar à conclusão de que isso não é o mais importante. Talvez nem chegue a essa conclusão, talvez desapareça antes disso. A grande e enorme falta desta humanidade tem um nome: "A soberba". Ao mínimo feito, envaidece-se e utiliza essa vaidade para procurar um outro feito do qual se possa envaidecer. O objectivo nem chega a ser o feito em si, apenas o da vaidade. A vaidade cega e louca, a rainha má da Branca de Neve... a primeira selfie depois do espelho de Narciso. Se Narciso morre de desgosto, a rainha má manda matar por vaidade, um outro patamar, uma outra escolha, uma outra consequência. A vaidade que nos torna assassinos de nós mesmos, sem que o saibamos. A vaidade, assassina da própria beleza. 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

O ensino

 



Nunca gostei de ensinar. Prefiro plantar em vasos sementes e ver milagre que é ver as plantas a desabrochar. O ensino cansa-me. No meu caso tem sido obrigatório porque lá vou dando explicações. Há quem nasça para dar aulas, há quem nasça para plantar sementes. Nesta fotografia estão, no vaso verde, umas sementes que plantei há pouco mais de um mês e vejam como cresceram. Não é fascinante? Dizem que o ensino é plantar sementes. Não. Plantar sementes é uma coisa, ensinar é outra. As plantas não são ensinadas a crescer, crescem espontaneamente e, como quem não quer a coisa, lá se vão dirigindo ao céu. 

terça-feira, 6 de abril de 2021

António Carlos Carvalho

 


Lançamento do livro "Bateleur" António Telmo escreve uma dedicatória a António Carlos Carvalho


Fiquei agradavelmente surpreendida com a crónica de Risoleta Conceição Pinto Pedro no Jornal “Raio de Luz”, de Sesimbra, datada de Março de 2021. Dela retirei este excerto:


...não sei se “Sesimbra sabe”, realmente, quem foi Rafael Monteiro, mas sei que hoje, figuras deste calibre teriam passado despercebidas, que passam despercebidas. Sobretudo se não tiverem um canal do Youtube. Aliás, aqui continua a vir António Carlos Carvalho (antes da pandemia), mas não sei se tem sido visto, ouvido, sentido, valorizado, convidado. E é pena, porque tem muito para dizer. E do melhor. Uma vez convidado, não sei se teria público, porque não viria falar das coisas pequeninas, e possivelmente não seria simpático o que teria para dizer. Mas seria como aquele remédio amargo que nos cura. Digo mais: Sesimbra tem o privilégio de conter entre os seus habitantes um sábio e companheiro destes outros acima referidos. Está aqui à mão de semear. Não é apenas sábio, mas também muito sabedor, uma enciclopédia viva sobre Sesimbra e não só. O que Rafael pregava no cimo do monte, para os ventos, prega António Reis Marques para as vagas do mar, como fazia Santo António aos peixes, cansado de falar aos homens que não o compreendiam.

Eu acredito, espero, desejo que o vento da pandemia tenha tido o mérito de conseguir o que até hoje ainda não se conseguiu, o de pôr os valores no sítio correcto, o perceber que algumas coisas são perenes e outras caducas, e que não vale a pena concentrarmo-nos nestas últimas, que quem não conhece e por isso não respeita o seu passado, dificilmente terá um futuro digno desse nome, que se aprende mais com o silêncio do que com a tagarelice, mas que há conversas que têm o valor do silêncio, e que vale a pena andarmos de olhos abertos, como pesquisadores em busca do ouro. Não digo que uns valham mais do que outros, todos são valiosos, mas existem alguns que poliram a sua pedra e ela resplandece, ainda que não se ponham em bicos dos pés, na sua natural modéstia. Há quem tenha à sua porta estas barras de ouro de altíssimos quilates, mas por estar encadeado com o brilho vulgar do pechisbeque, está cego para o que verdadeiramente vale. Mas acredito na mudança, no seu lento andar, no seu vagar…”

Evidentemente que sou suspeita por ter ficado agradavelmente surpreendida com esta crónica. Vivo com António Carlos Carvalho na mesma casa e partilho a vida com ele há mais de trinta anos. Conheci-o quando tinha dezanove anos e desde aí a nossa vida, não há outra descrição possível, tem sido uma aventura. Parte dela prende-se com a forma como tem sido tratado pelos seus “pares”. A pouco e pouco, foi sendo largado pelo caminho como pessoa incómoda, com ideias incómodas, com um feitio incómodo, com uma forma de falar directa e incómoda. Na verdade, António Carlos Carvalho, é brilhante. Um antigo professor seu de Teatro, dizia que ele era um chicote. Nada podia estar mais certo. Avisa sempre antes da desgraça. Sempre. Passa a vida a ler, a estudar, a contemplar. É profundamente meigo, mas disso as pessoas não sabem, nem têm que saber. É até bom que tenham dele a impressão de ser um chicote. Faz falta chicotear um pouco. Ultimamente tem andado à volta de Fernando Pessoa. Gostava de escrever um livro, mas diz frequentemente que duvida que alguém o editasse. Conhece bem muitas pessoas. Tem uma espécie de inteligência que nunca vi em ninguém. Só nele. Da mesma forma que chicoteia palavras em palestras, em livros, prefácios, apresentações, etc. (quando o deixavam falar), a inteligência dele é uma espécie de raio. Digo-lhe frequentemente que nunca vi nada assim. Tem a capacidade única de ir directamente ao busílis das questões. Observa (é extremamente observador) e depois diz qualquer coisa, normalmente uma frase curta que costuma nem sequer fazer muito sentido na altura, mas, por uma qualquer razão misteriosa, ela parece ficar dentro da nossa cabeça. Nós, pensamos na situação A ou B, observada por ele, andamos ali às voltas e, de repente, aquela frase, dita no imediato, volta a surgir na memória. Bem dito e bem feito: abro a porta do escritório dele e digo-lhe que em relação ao assunto A ou B ( muitas vezes ele já nem se lembra) ele tinha toda a razão quando disse isto ou aquilo. Outra característica da inteligência dele é que quase ninguém dá por ela. Vem muitas vezes camuflada numa piada, numa observação que parece ampliada, exagerada. Mas, está lá sempre aquele pensamento-raio, uma espécie de dom que o acompanha e do qual sou testemunha. Lamenta-se a Risoleta pelo facto de ninguém lhe ligar nenhuma. Isso é verdade. Por vezes pergunto-lhe se não tem saudades de falar para as pessoas, de dar umas lições, sabendo bem que ele nasceu e tem o bichinho da comunicação. A resposta é sempre a mesma, que ninguém está muito interessado no que ele tem para dizer e que ele mesmo já não está muito interessado em fazer-se ouvir devido à “qualidade das pessoas” (lá está, o chicote). Na verdade, ele é uma pessoa à moda antiga. Não é muito silencioso, nem faz favores, nem se cala perante os disparates. E isso é muito pouco bem vindo. Ele, por enquanto, não sabe que estou a escrever isto. Uma das coisas que não foi bem vinda, lembro-me de várias situações das quais fui testemunha, é do seu gosto pela cultura judaica (ele mesmo parece um judeu). Foi olhado de lado diversas vezes, eu vi algumas, ele disse-me doutras. Nós sabemos bem do que é que a casa gasta em certos meios… a tentativa geral de nivelar tudo por baixo e de tentar desesperadamente o facilitismo para agarrar público, levou a que o António, pura e simplesmente, fosse colocado de lado. Pedro Martins, é um bom e grande amigo dele e a Risoleta, conheceu-o através dele. Abel de Lacerda, sempre o tratou bem, chegou inclusive a vir ter connosco aqui à Ericeira almoçar, o mesmo se passando com o Pedro e com a Risoleta, mas para jantar (continuam a estar convidados). Há imensas histórias que estão na base e na origem desta marginalização (que também é um pouco uma auto-marginalização) a que o António foi levado, mas isso, como se costuma dizer, é entre nós e Deus e como somos os dois crentes Nele, sabemos bem que Ele também sabe o que se foi passando ao longo dos anos. Agradeço à Risoleta ter-se lembrado do António desta maneira. Penso que nunca ninguém o fez assim numa crónica. Lembrarem-se dele com justiça. E agora, sim, vou dar-lhe a conhecer as palavras de Risoleta e as minhas. De certeza que vai olhar para mim e encolher os ombros (até a encolher os ombros é um chicote), e vai dizer: “Não tem nada de mais a minha pessoa”, ou algo semelhante. O Chicote bate directamente no factor Humildade, mas desta vez, não tem toda a razão do mundo: o António, só é especial. Pelo menos para mim. Obrigada, Risoleta. 

PS: Ele já leu. Afinal reagiu de maneira diferente. A justiça faz milagres. 



segunda-feira, 5 de abril de 2021

Os pregadores

 



Há pessoas ligadas ao Esoterismo que ainda não perceberam que erraram na vocação. São aqueles que pregam. São os pregadores de panfletos religiosos. Pregam, pregam. Imagino-os como estando melhor num mosteiro ou num convento, a compasso canónico. Outros até pregam de um lado para o outro: num dia são muçulmanos, noutro cristãos, noutros ainda não sabem bem se hão-de ser judeus ou não, mas normalmente recusam porque nessa religião não podem pregar para os transeuntes apanhados numa esquina da vida. São, sobretudo, chatos porque depois dissimulam as pregações em esoterismos tendenciosos e com intuitos de conversão. Primeiro, vieram os judeus. Viam-se como povo eleito, fora do seu círculo, não havia eleitos como eles, "ninguém é como nós", depois vieram os cristãos e, como filhos rebeldes dos judeus, disseram: todos são susceptíveis de ser convertidos, "todos podem e devem ser como nós" e em diversas fases da História chegou mesmo a ser à força, agora é mais com falinhas mansas e muitos esotéricos adoptam esse papel, e os muçulmanos, radicais dizem mesmo "um dia todos vão ser como nós", já se sabe que às vezes é mesmo a mal... Daí que diga para mim própria que gosto de todos aqueles  que, sendo monoteístas, não querem converter ninguém. São mais humanos e menos vaidosos das suas opções interiores. De boas intenções está a terra cheia. E lá está, conheci gente cujo exemplo era suficiente e nunca os ouvi dizer "sou isto ou sou aquilo". Esses enchem-me as medidas, e basta olhar para eles e para o que fazem, como vivem e o que dizem sem a carga definitiva que são as religiões e sem querer impingir nada a ninguém. Ah! E não são chatos.


domingo, 4 de abril de 2021

Funções desalmantes

 


Conheci quem trabalhasse num banco e tivesse de sair por doença. A seguir, todos os que naquele gabinete ficaram acabariam por morrer de cancro. É caso para dizer que há profissões que fazem mal à saúde. Contar o dia todo para alimentar a rainha Banqueira, deve tornar os seres humanos em formigas, meros insectos, simétricos como os números. Entendo perfeitamente que a relação com o Estado não possa ser melhor. Antigamente, quando se morria por causa de uma tragédia, os nomes surgiam em listas. Agora já não há nomes, há números. Fernando Pessoa, uma cabeça superior, não se identificava com o Estado. Por saber, eventualmente, que o Estado era uma figura de estilo aplicada ao texto da humanidade só para soar melhor... o Estado desalma porque o seu princípio é constituído pelo impossível: a aglomeração de umas tantas almas na identidade do Estado e que constituem, todas juntas a figura do Funcionário Público. Figura tipicamente esquizofrénica: por um lado gozando de alguns benefícios que o Privado nunca teve, por outro, gozando da infelicidade de saber que não são pessoas, são apenas Funcionários Públicos. Daí que este tipo de figuras produzam tantos sentimentos extremados. Como são constituídos por um nome genérico, como genérico é o nome "Estado", não possuem propriamente uma alma, porque a vão perdendo, a pouco e pouco, enfiados nas papeladas, nos carimbos e, tal como os funcionários dos bancos, nos números. Os sentimentos extremados são iguais aos produzidos pelas religiões: ou são amados em extremo, ou são detestados, porque deles ninguém tem uma imagem precisa. Não chegam a alcançar o estatuto de semi-deuses, estão apenas numa espécie de limbo entre a identidade possível e a falta dela. Se se disser: "sou funcionário público", e apenas isso, o mistério religioso permanece, não sabemos bem se havemos de amar, respeitar ou odiar e não sentir qualquer respeito. Enquanto não soubermos qual a hierarquia, qual a função e, sobretudo, se nos vai beneficiar ou não, não temos qualquer intimidade com essa entidade abstracta que é o funcionário público. Apesar de tudo, somos mais íntimos com o Estado que, volta e meia, nos persegue com cartas ameaçadoras. Nunca persegue os banqueiros a tempo, mas a nós, parece que nos filmam cá em casa e nos analisam ao pormenor. No tempo da outra crise, a antecedente, conversei com uma funcionária pública que esteve à beira de uma depressão. Trabalhava nas Finanças e o trabalho dela era ser perseguidora. Reformou-se e ficou feliz. Voltou a ter alma. O Estado corre o risco de ser desalmado e de produzir pequenos seres, chamados de Funcionários Públicos, cujo olhar é baço, os cantos da boca estão sempre descaídos e estão sempre prontos para irem tomar café. Amados e protegidos, odiados e nada protegidos naquilo que se refere à alma. Transformar pessoas em números é tarefa penosa. Anti-artística, por assim dizer. O Funcionário Público, a seguir aos bancários e aos banqueiros, são as figuras mais chocantes que uma sociedade pode produzir. Por isso é que se entendem nas pseudo perseguições e nas transferências de dinheiro sempre que um banco se vai abaixo por causa de um bancário ousado que pensa poder levar o cheque com ele para a cova. Estas figuras assinaladas, que não são armas nem barões, nem possuem sequer essa grandeza, tomam conta de um país inteiro, de uma série de almas que já não sabem muito bem o que pensar, o que amar, o que odiar ou em que acreditar. Se fogem é porque fogem, se se deixam apanhar, é porque se deixam apanhar, se cumprem é porque cumprem. Metade do país anda à caça da outra metade e cada metade, por sua vez, caça a outra metade. Os mexilhões são aqueles que nunca desejaram uma vida tão complicada e tão difícil e com tanta falta de atenção à alma. Os mexilhões somos todos nós quando nos deitamos e pedimos apenas para nos deixarem viver em paz. Há funções desalmantes, desalmadas e, pior do que isso, colocam o país em risco, em elevado risco. Que nos digam o contrário com argumentos, tabelas de Excel, subsídios, reformas, exemplos, é coisa que já não queremos saber, isso é converter-nos a todos, à vez, em funcionários públicos, em bancários e em banqueiros. É mais ou menos isso que os telejornais tentam fazer quando nos apresentam tabelas, quando nos informam de todos os números, de todas as perseguições, de todos os medos. À vez, lá vamos sendo banqueiros quando nos emprestam dinheiro, bancários, quando nos cobram, funcionários públicos quando perseguimos e somos perseguidores. À vez, numa roda dentada, vamos perdendo a alma, a pouco e pouco, como povo ancestral.  À vez, rodando em números em vez de rodarmos em sonhos, porque os sonhos são para os parvos, gente pequena, inútil até ao dia em que os sonhos começarem a dar dinheiro e se tornam úteis só por isso. 

Ponto da Situação



Não me obriguem a não ir para a rua gritar
Numa formação, por ter feito perguntas, puseram-me de lado
A juventude é silenciosa, não questiona
A juventude é drogada. Numa turma são mais aqueles que se drogam do que os outros
A juventude vai para a rua gritar só quando lhe tocam no botão do ambiente porque foi formatada para isso
A juventude tem a forma que lhe deram e droga-se porque não vai à procura de quem é
A rebeldia é um sonho soterrado na História; a arte perdeu-se nas ruínas da memória
Só se encontra gente medíocre intelectualmente
Só se encontram técnicos em todas as áreas, inclusive no esoterismo
Hoje, Domingo de Páscoa, imagino um Cristo especial: um braço estende-se para o passado, o outro faz o mesmo para o futuro, os pés tocam num chão imundo, a cabeça inclina-se para ver o céu e o coração está no presente, irremediavelmente no presente, a sofrer
O mundo não está perdido apenas porque ainda há memória. Quando não existir mais memória será porque se salvou ou se perdeu
A ideia de morte como passagem consola-me imenso. Não ter de aturar isto, é bom
Os arquitectos modernos das casas modernas só conhecem algumas cores, a saber: o preto, o cinzento, o encarnado e, muito de vez em quando, o branco
Os arquitectos modernos não gostam de mármore, de pedra e de colunas. E eu não gosto de arquitectos modernos
Convém que se saiba que nada disto me agrada
Pintei demais, penso que tenho uma tendinite
Li demais, penso que tenho um reservatório de palavras suficiente para fazer frente à demência reinante
As pessoas de quem gosto, e não são muitas, aturam estas coisas
Se falamos demasiado em nós, somos egocêntricos, se falamos em nós em relação com os outros, estamos no processo de cura, se falamos dos outros somos jornalistas encartados que espelham a única realidade que lhes é apresentada. A prosa jornalística tornou-se abominável porque o mundo está abominável 
Nós somos mais bonitos do que o mundo abominável. Escolher falar de nós não é uma questão de ego, é uma questão de estética
Tenho saudades da minha mãe e do seu contexto. O seu contexto era a festa espontânea e a paixão desenfreada pela vida. Hoje, só vejo zombies em selfies. 
Espero outra época fora de mim, sabendo que a tenho dentro de mim.
Anda tudo à procura de justiça social. Alguma vez houve justiça social? A única que houve foi a divina. A social é uma prova do egocentrismo dos homens que se julgam deuses de causas menores
Sento-me a balançar ao vento como uma pomba branca em cima de um galho. Podia ser cinzenta, a pomba, mas esta é branca. Ainda hão-de dizer que a pomba branca é racismo... não percebem nada de símbolos, criaturas impuras, miscelâneas de credos artificiais lidos nos livros de política.
Todos os dias acordo com pena de acordar para este tosco mundo povoado com gente tosca. Depois, lembro-me do mar, e todos se afogam nele e fica apenas esse azul magnífico, a força das ondas
Não me obriguem a não ir para a rua gritar... ao que chegámos. E sabemos bem, que mesmo que fossemos para a rua gritar nos iriamos juntar a uma multidão de gente que grita para nada.

Ponto de situação: 
Não me obriguem a ir para a rua gritar e 
não me obriguem a não ir para a rua gritar. 
Sem qualquer paradoxo, aqui.
Esta é a verdade exacta e pura da prisão que nos rodeia 
e da gente medíocre que nos cerca. 



 

sábado, 3 de abril de 2021

A serpente loira




Há uns meses vi esta reportagem na qual uma mulher relata ter visto uma cobra com cabelos loiros  Mais tarde encontrei esta imagem e lembrei-me do relato da senhora: "Tinha uns cabelos lindos, dourados". Alguém viu o mesmo que ela e esta escultura nasceu. Isso é perfeitamente natural, ou antes, sobrenatural pois os termos, por vezes, confundem-se. Ora bem, se formos pesquisar a palavra "gnosticismo" na Internet, saltam inúmeros grupos nascidos depois de Cristo e cuja Natureza "Gnóstica" deve o seu nome  à descrição feita por Henry More para uma heresia tiatirense. A saber, e só a título de exemplo desses grupos: Marcelinos, Setianos, Barbelognósticos, Ebionistas, Zoroatristas, Mendeístas, Maniqueístas, Cátaros, Bogomilos, Carpacianos, Ofitas, Cainitas, Paulicianos, Valentianitas, Nazarenos e de entre os Setianos, (Guenón aponta ser possível terem sido o mesmo que os Ofitas no seu livro "Os símbolos da ciência Sagrada" no capítulo sobre Seth) existiram grupos mais pequenos como os Arcônticos, os Audianos, os Borboritas, os Fibionitas ou os Estratiônicos. Terá esta senhora do campo pertencido noutras vidas a um destes grupos? Ou, para quem não acredita noutras vidas, terá esta senhora uma sensibilidade extra que a aproxima de uma linhagem espiritual semelhante? Ou terá sido puro acaso e poderia ter visto esta serpente como outra coisa qualquer, um duende, um anjo? Não sabemos. Aquilo que sabemos é que a origem das correntes Gnósticas é extraordinariamente variada e, se formos a analisar mais pormenorizadamente, chegam a ser correntes quase opostas pelas metodologias. Por isso quando alguém me diz que é Gnóstico fico mesmo muito baralhada a olhar para a pessoa. A que gnosticismo pensa que pertence? A qual aderiu? Será mesmo de uma qualquer linhagem espiritual ou é puro desejo/imaginação fantasiosa? Nunca sei. Em última hipótese, e essa é sempre das mais prováveis, é um produto Teosófico que criou mais um gnosticismo, seja ele o que for. Ou então essa pessoa criou um gnosticismo para si. Isso também é provável. As nomenclaturas são muito traiçoeiras. As que estão ligadas às instituições ainda mais. As pessoais, são pessoais e não passam disso embora algumas pessoas desejem que passem a ser de toda a gente ou de meia dúzia de eleitos, por eles, claro, evidentemente, se são os criadores delas... 
Como as palavras escritas do Cristianismo foram divulgadas, sobretudo, e no início, a partir da língua  grega, foi necessário encontrar termos gregos que se encaixassem nessas palavras. O termo "Gnóstico", não só se encaixou, no início, como, mais tarde, foi a forma que se encontrou para colocar tudo no mesmo saco. É um termo que serve, de facto, para tudo e para todos e daí que Blavatsky não se tenha coibido com ele e o tenha adoptado, também, para a sua miscelânea, de conceitos, de ideias e de pessoas.  As seitas satânicas, por seu lado, deliram com a palavra "Gnóstico", afinal de contas, nunca saíram das saias do Cristianismo, esse papão mau que não os deixa fazer nada... Bom, bom é Lucifer, segundo elas, esse sim, é um bom papão, um bom exemplo, porque lhes dá as guloseimas todas. E logo ao pequeno-almoço e tudo! Gosto mais de crianças a sério. São bastante mais adultas. Uma delas, depois de lhe ter perguntado o que estamos cá a fazer, respondeu-me, calmamente: "estamos cá para aprender", e vejam só, falou em português, não em grego-acumulado-por-não-sei-quantas-seitas-e-ou-escolas-ao-longo-do-tempo! Abençoada!

 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Boa Páscoa


Sempre me deram uma péssima sensação as fórmulas aplicadas à vida. A psicologia tentou e tenta sistematizar o comportamento humano mesmo quando, nas entrelinhas, vai dizendo a frase recorrente que cada caso é um caso. O pensamento dito ciêntifico apresenta-se sob a forma de fórmula, mas ele é muito mais do que isso pois traz sempre às costas uma metodologia, uma forma de abordar o mundo e as coisas do mundo. Daí que sempre que se tenta resolver a vida e as pessoas por via de uma fórmula aquilo que acontece verdadeiramente é a adopção de uma só perspectiva que, mesmo de maneira inconsciente, contém em si a observação, a experimentação, a análise dos dados e a conclusão, como se não existissem outras formas de olhar o mundo...isto generalizou-se, tanto na clínica, como no laboratório, como nas conversas de café ou de sofá entre amigos. Somos todos cientistas de bata branca quando dizemos coisas como : "Pois, a criança sente um grande afecto por animais. É uma transferência porque falta algo na relação com os pais...". Lembro-me deste exemplo porque muito cedo vi que não tinha pés nem cabeça. Ainda em criança, uma vizinha minha, e muito minha amiga, gostava imensamente de animais. Ao saber, a minha mãe, com formação científica, começou a falar da transferência de afectos e por aí fora... o problema é que essa minha amiga era muito amada por todos e nunca lhe vi qualquer problema afectivo. Provavelmente tinha tanto que o espalhava também pelos animais. Pela vida fora, fartei-me de assistir a formas de pensamento científico como justificação para comportamentos, por vezes, o mais normais possíveis. Assim, a rebeldia era um desajuste desequilibrado com a sociedade ou com uma figura familiar; a melancolia, idem; a cólera, algo com pendor sexual, carências, provavelmente; a insegurança, idem; a obsessão vinha sempre a par com a compulsão e, logo com a pulsão. O problema que sempre achei neste tipo de observações foi o facto de terem a outra face da moeda e ela é a crença, cega naquilo que cada um pensa que os outros deveriam ser e como se deveriam comportar. Há por isso, uma fórmula dissimulada à espera de ser aplicada. Dantes chamava-se a isso, os limites, aqueles considerados sempre colectivamente para que a sociedade pudesse funcionar, ora esse "colectivo", esse  pré-prefeccionismo colectivo passou para a individualidade e passou também a conter uma qualquer "noção" de psicologia por detrás, profissional ou amadora, na verdade, pouco interessa...cada pessoa passou a ser a sociedade inteira e nem por isso ficou mais responsável pela sociedade que a rodeia. Já todos fomos psicólogos dos outros, já todos tentámos ser psicólogos de nós próprios e, nem por isso o ser humano se encontra muito melhor ou muito diferente. Parece que as fórmulas cientificamente comprovadas não se adequam à comprovada complexidade humana o que me leva a duvidar da sua aplicação e da tentativa que são para explicar as coisas definitivamente. Para além disso, possuem o factor "ditatorial" que a própria ciência, com os seus métodos, considerados infalíveis, contém. Na verdade, a figura daquele ou daquilo que manda é um uma necessidade comummente aceite. É a própria mentalidade ditatorial que cria a ditadura. Aquilo ou aquele que manda veio a substituir "aquilo que nos transcende", como se fosse a mesmíssima coisa. Mas não é. Enquanto tivermos esta mentalidade científica a espreitar e/ou a guiar todos os nossos passos nunca nos libertaremos do jugo das ditaduras, apenas porque não queremos ou antes, no fundo, porque não sabemos pois não conhecemos mais nada. A ciência trabalha com dados visíveis, palpáveis e concretos. A psicologia é sua herdeira no campo do chamado "inconsciente" ou "sub-consciente", ao passo que o transcendente é "herdeiro" do divino, ou seja, passivel de ser conhecido, passível de intervir ou não, passivel de "mandar ou não", tendo um raio e acção ou não acção muito mais vasto em variados níveis em simultâneo só que, como nos é transcendente, preferirmos, nestes dias da ciência, neste terceiro e actualíssimo postulado de Comte, ser serviçais perante um poder crescente da ciência que vai absorvendo a nossa mentalidade até nos consideremos apenas "coisas", produtos e depósitos de fórmulas... que invadem as conversas e reduzem as várias perspectivas a uma só. Uma verdadeira ditadura, desejada, amada, reclamada e produzida pela humanidade e isto porque virou costas ao transcendente ou o utiliza apenas como meio de ter uns dias festivos ou para as alturas em que se lembram, por entre as coisas da ciência que lhes dominam o modo de pensar, que talvez possa estar aí  a "limpeza dos pecados", tipo detergente ou a "salvação", isto quando nem sequer sabem o que é a "salvação", ouviram dizer... e defini-la, nem pensar.