Quem se debruça sobre as iniciações da puberdade sabe que elas são sobretudo dirigidas ao sexo masculino nas sociedades tradicionais. As casas dos homens são muito mais frequentes do que a casa das mulheres. Uma das explicações será a de que as mulheres são naturalmente iniciadas no mundo pelo próprio corpo e estando, por isso, dispensadas de determinadas provas. O sangue, a dor, as lágrimas a par com as quatro idades da mulher são o suficiente para a associarem à lua, a grande fonte de medida no mundo. Pela lua se medem os ciclos do mundo inseridos num ciclo maior e solar. Não deixa de ser curioso que a ciência, toda ela, se baseie na medida, ou antes nas diversas medidas. O mundo lunar no seu esplendor. Não deixa de ser curioso, igualmente, que um dos passatempos preferidos dos homens seja o de medir tudo, desde as forças às vitórias. Quer no caso das mulheres que com o corpo são inseridas nos ciclos, quer o caso dos homens medidores que com esse passatempo são inseridos na matéria, o mundo lunar, é o que permanece. O mundo solar é sempre uma síntese qualitativa no qual a medida não entra. É nesse sentido que existem anos bons e maus, anos piores e anos melhores. O ciclo é diferente e o critério é diferente quanto se trata do julgamento. Numa equipa de futebol, por exemplo, uma série de vitórias não constitui a qualidade do ano. O sagração do campeão não é igual à qualidade dos jogos. Um campeão à custa de penáltis deixa um gosto amargo na boca. O mundo lunar dos homens é curioso porque nele medem tudo: a potência do carro, por exemplo ou a quantidade de adeptos que conseguem atrair com as suas ideias. O mesmo se passa na política. Os votos são a permanência da medida. A distancia entre dois pontos ou a quantidade de vezes que o mesmo voto se repete num determinado universo. A feminização da sociedade apontada por Guénon e que tanto choque provocou às feministas cegas, é uma chamada de atenção para a sociedade no seu geral e do modo como esta vive equilibrada na frágil barcaça da medida. A britcoin, por exemplo, é uma medida imaginária, numa barcaça ainda mais frágil virando-se à mínima ondulação. É a elevação do estatuto que a nossa economia global já possuía porque ascende à virtualidade. A virtualidade tem cada vez mais prestígio. Desde as redes sociais, passando pela economia, uma espécie de compensação pelo desconhecimento do mundo subtil, um mundo subtil imaginado por não se conhecer o verdadeiro. Os deuses são substituídos por deuses talhados a régua e esquadro porque a base é apenas a medida. Entre a virtualidade e o mundo subtil, nestas novas cabeças, não há diferença substancial. Na virtualidade, que não passa de uma fantasia, toda a limitação, toda a ausência de liberdade é facilmente recuperada. No entanto, até mesmo o mundo subtil é uma refracção, quando não é uma distorção, dos raios solares, e disso não se fala. Silêncio absoluto. A realidade do mundo lunar é apenas substituída por uma imagem da imagem do mundo lunar. Nesse sentido, há um decréscimo acentuado da qualidade. Há uns dias apanhei na televisão, na RTP 2, um locutor chinês a falar do nosso país. Com aquela voz pausada, igual à dos documentários chineses, o locutor ia falando dos nossos pasteis de Belém, do nosso presunto, do nosso vinho e era fascinante ver aquilo que valorizavam em nós: o tempo e a mestria com que fazíamos os nossos produtos. Aquilo que nesse documentário era valorizado, à boa maneira tradicional chinesa, era a forma como as coisas eram feitas e não a quantidade de coisas que eram feitas. Os pastéis de Belém eram tocados pelas mãos dos pasteleiros e continham um segredo passado entre várias gerações ao longo do tempo, não eram feitos numa fábrica, o vinho do Porto era pisado pelos pés e maturado por anos, o presunto, depois de salgado, era armazenado e abandonado ao tempo de cura lenta… eram todos os processos naturais do nosso fabrico que encantavam o olhar chinês, era aquilo que tínhamos em comum, um desenrolar de um enlace entre o corpo, a matéria-prima e o tempo qualitativo, enfim, todo o processo artístico uma vez que as práticas artesanais são a base de toda a Arte. Estranhamente, no fim, um chinês falava na durável e boa relação que o nosso povo tinha com a China, e ainda mais estranhamente disse: “nós queremos ser compreendidos”. Como se, pelo nosso vagar e sabedoria, nós pudéssemos, de alguma forma, resgatá-los a eles do sono de si mesmos em que se encontram. Um mundo solar, onde só semelhantes se encontram. Quando vejo os homens a medir forças, no meu olhar de mulher, parecem-me crianças tontas que ainda não perceberam nada e que não passam de personagens de um mundo efeminado, embrutecidos pela obsessão da medida. Um dia, quando for necessário e quando os homens portugueses, e as mulheres que os copiam, deixarem de lado essa obsessão, o sol vai nascer a Ocidente e irá iluminar até a própria China.
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