Fiquei agradavelmente surpreendida com a crónica de Risoleta Conceição Pinto Pedro no Jornal “Raio de Luz”, de Sesimbra, datada de Março de 2021. Dela retirei este excerto:
“...não sei se “Sesimbra sabe”, realmente, quem foi Rafael Monteiro, mas sei que hoje, figuras deste calibre teriam passado despercebidas, que passam despercebidas. Sobretudo se não tiverem um canal do Youtube. Aliás, aqui continua a vir António Carlos Carvalho (antes da pandemia), mas não sei se tem sido visto, ouvido, sentido, valorizado, convidado. E é pena, porque tem muito para dizer. E do melhor. Uma vez convidado, não sei se teria público, porque não viria falar das coisas pequeninas, e possivelmente não seria simpático o que teria para dizer. Mas seria como aquele remédio amargo que nos cura. Digo mais: Sesimbra tem o privilégio de conter entre os seus habitantes um sábio e companheiro destes outros acima referidos. Está aqui à mão de semear. Não é apenas sábio, mas também muito sabedor, uma enciclopédia viva sobre Sesimbra e não só. O que Rafael pregava no cimo do monte, para os ventos, prega António Reis Marques para as vagas do mar, como fazia Santo António aos peixes, cansado de falar aos homens que não o compreendiam.
Eu acredito, espero, desejo que o vento da pandemia tenha tido o mérito de conseguir o que até hoje ainda não se conseguiu, o de pôr os valores no sítio correcto, o perceber que algumas coisas são perenes e outras caducas, e que não vale a pena concentrarmo-nos nestas últimas, que quem não conhece e por isso não respeita o seu passado, dificilmente terá um futuro digno desse nome, que se aprende mais com o silêncio do que com a tagarelice, mas que há conversas que têm o valor do silêncio, e que vale a pena andarmos de olhos abertos, como pesquisadores em busca do ouro. Não digo que uns valham mais do que outros, todos são valiosos, mas existem alguns que poliram a sua pedra e ela resplandece, ainda que não se ponham em bicos dos pés, na sua natural modéstia. Há quem tenha à sua porta estas barras de ouro de altíssimos quilates, mas por estar encadeado com o brilho vulgar do pechisbeque, está cego para o que verdadeiramente vale. Mas acredito na mudança, no seu lento andar, no seu vagar…”
Evidentemente que sou suspeita por ter ficado agradavelmente surpreendida com esta crónica. Vivo com António Carlos Carvalho na mesma casa e partilho a vida com ele há mais de trinta anos. Conheci-o quando tinha dezanove anos e desde aí a nossa vida, não há outra descrição possível, tem sido uma aventura. Parte dela prende-se com a forma como tem sido tratado pelos seus “pares”. A pouco e pouco, foi sendo largado pelo caminho como pessoa incómoda, com ideias incómodas, com um feitio incómodo, com uma forma de falar directa e incómoda. Na verdade, António Carlos Carvalho, é brilhante. Um antigo professor seu de Teatro, dizia que ele era um chicote. Nada podia estar mais certo. Avisa sempre antes da desgraça. Sempre. Passa a vida a ler, a estudar, a contemplar. É profundamente meigo, mas disso as pessoas não sabem, nem têm que saber. É até bom que tenham dele a impressão de ser um chicote. Faz falta chicotear um pouco. Ultimamente tem andado à volta de Fernando Pessoa. Gostava de escrever um livro, mas diz frequentemente que duvida que alguém o editasse. Conhece bem muitas pessoas. Tem uma espécie de inteligência que nunca vi em ninguém. Só nele. Da mesma forma que chicoteia palavras em palestras, em livros, prefácios, apresentações, etc. (quando o deixavam falar), a inteligência dele é uma espécie de raio. Digo-lhe frequentemente que nunca vi nada assim. Tem a capacidade única de ir directamente ao busílis das questões. Observa (é extremamente observador) e depois diz qualquer coisa, normalmente uma frase curta que costuma nem sequer fazer muito sentido na altura, mas, por uma qualquer razão misteriosa, ela parece ficar dentro da nossa cabeça. Nós, pensamos na situação A ou B, observada por ele, andamos ali às voltas e, de repente, aquela frase, dita no imediato, volta a surgir na memória. Bem dito e bem feito: abro a porta do escritório dele e digo-lhe que em relação ao assunto A ou B ( muitas vezes ele já nem se lembra) ele tinha toda a razão quando disse isto ou aquilo. Outra característica da inteligência dele é que quase ninguém dá por ela. Vem muitas vezes camuflada numa piada, numa observação que parece ampliada, exagerada. Mas, está lá sempre aquele pensamento-raio, uma espécie de dom que o acompanha e do qual sou testemunha. Lamenta-se a Risoleta pelo facto de ninguém lhe ligar nenhuma. Isso é verdade. Por vezes pergunto-lhe se não tem saudades de falar para as pessoas, de dar umas lições, sabendo bem que ele nasceu e tem o bichinho da comunicação. A resposta é sempre a mesma, que ninguém está muito interessado no que ele tem para dizer e que ele mesmo já não está muito interessado em fazer-se ouvir devido à “qualidade das pessoas” (lá está, o chicote). Na verdade, ele é uma pessoa à moda antiga. Não é muito silencioso, nem faz favores, nem se cala perante os disparates. E isso é muito pouco bem vindo. Ele, por enquanto, não sabe que estou a escrever isto. Uma das coisas que não foi bem vinda, lembro-me de várias situações das quais fui testemunha, é do seu gosto pela cultura judaica (ele mesmo parece um judeu). Foi olhado de lado diversas vezes, eu vi algumas, ele disse-me doutras. Nós sabemos bem do que é que a casa gasta em certos meios… a tentativa geral de nivelar tudo por baixo e de tentar desesperadamente o facilitismo para agarrar público, levou a que o António, pura e simplesmente, fosse colocado de lado. Pedro Martins, é um bom e grande amigo dele e a Risoleta, conheceu-o através dele. Abel de Lacerda, sempre o tratou bem, chegou inclusive a vir ter connosco aqui à Ericeira almoçar, o mesmo se passando com o Pedro e com a Risoleta, mas para jantar (continuam a estar convidados). Há imensas histórias que estão na base e na origem desta marginalização (que também é um pouco uma auto-marginalização) a que o António foi levado, mas isso, como se costuma dizer, é entre nós e Deus e como somos os dois crentes Nele, sabemos bem que Ele também sabe o que se foi passando ao longo dos anos. Agradeço à Risoleta ter-se lembrado do António desta maneira. Penso que nunca ninguém o fez assim numa crónica. Lembrarem-se dele com justiça. E agora, sim, vou dar-lhe a conhecer as palavras de Risoleta e as minhas. De certeza que vai olhar para mim e encolher os ombros (até a encolher os ombros é um chicote), e vai dizer: “Não tem nada de mais a minha pessoa”, ou algo semelhante. O Chicote bate directamente no factor Humildade, mas desta vez, não tem toda a razão do mundo: o António, só é especial. Pelo menos para mim. Obrigada, Risoleta.
PS: Ele já leu. Afinal reagiu de maneira diferente. A justiça faz milagres.
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