segunda-feira, 12 de abril de 2021

Os que não entendem António Telmo



Tive de acordar absurdamente cedo por causa dos homens das obras que estacionaram aqui e fizeram os cães ladrar e, por causa disso, escrevo agora sobre os mundos interiores. Não sei que ligação existe entre os homens das obras e os mundos interiores, mas deve haver uma estranha relação de causa e efeito. Lembrei-me da Dama de Oiros de António Telmo e da forma como este tipo de relações entre as coisas marcam o tempo e o espaço da sua obra. Inicialmente, para quem está de fora, o facto de se deixar guiar por acontecimentos externos que correspondem a acontecimentos internos pode ser estranho para algumas almas que se aproximem da leitura dos seus textos. Estamos sempre muito habituados a dar mais crédito ao nosso mundo interior do que ao dos outros que, neste caso, nos são próximos por via de certas demandas. Se a vida for, como dizem, o reflexo de uma enorme mandala geométrica, a cada um a sua forma, como as flores são diversas. E a cada um o seu perfume que é uma mistura da ciência das balanças e do éter, esse quinto elemento misterioso e invisível que pode alterar o perfume, independentemente do peso dos seus elementos químicos constituintes e do qual não há provas. A prova, aliás pertence ao mundo da ciência e ao mundo dos juízes. O éter pertence ao outro mundo e toca este em determinadas ocasiões quando quer que o perfume de uma flor seja de determinada maneira. As correspondências simbólicas são fascinantes. Podemos passar uma vida inteira a fazê-las, como uma tecedeira que tece padrões. Na pintura, por exemplo, que para mim é um pouco como a tecelagem, começo por uma base. Uma espécie de tom geral, que até pode desaparecer no fim, mas que, despercebidamente, está sempre lá, mais ou menos visível. Por debaixo do azul, pode estar um amarelo, e ele vive e pulsa, nessa camada encoberta vertida de azul que nunca chegou a transforma-se visivelmente em verde. Assim, quem vê o azul, vê o amarelo também e, por inerência, o verde. E vê também o violeta, a cor complementar do amarelo, o laranja, a cor complementar do azul e o espectro invisível do arco íris. Algumas cores apenas se destacam mais do que outras, mas, nessas correspondências emergentes e submergentes, o espectro está todo lá. O mesmo se passa com alguns mundos interiores que lemos como se estes fossem constituídos por cores que, pelo facto de estarem mais visíveis, umas do que outras, não deixam de nos conduzir para o nosso próprio mundo interior e, quando tomamos consciência disso, então dá-se o encontro entre o leitor e autor. Tanto um mundo, como o outro, procedem do mesmo arco-íris. Subindo um pouco ainda de grau de interioridade, é nesse sentido que Dalila Pereira da Costa nos lembra a frase conhecida: “Os místicos falam todos a mesma linguagem”. Evidentemente que aqui se trata de um misticismo superior e não da vagabundagem sensitiva que podemos encontrar nos neófitos imberbes destas andanças e que normalmente tendem para a multi-dispersão na multi-sugestão que é o próprio mundo. No misticismo, como em tudo, podemos encontrar um lado inferior e um lado superior, convergente e inseparável da aproximação ao mundo da Iniciação, embora seja, ainda e apenas, uma aproximação. A passagem de um universo místico para o universo iniciático é a mesma que existe da passividade para a acção. O êxtase desaparece, a saída de si, esfuma-se, e passa-se, ao invés, a “estar em si”. Isto tem sido muito pouco compreendido, mas até Dalila, uma mística, faz referência a essa diferença. Será como a possibilidade de nos apercebermos de todas as cores do arco-íris num simples azul vertido sobre um amarelo que desaparece. Isto a propósito do desprezo que certas figuras têm demonstrado para com a obra de António Telmo. Normalmente são figuras de dois tipos: ou sobrepõem a razão a tudo e depois colocam uma cereja em cima do seu bolo racional, chamada Deus, muito ao estilo de Descartes, ou são aqueles que, tomaram a floresta pelo todo e que, ao largarem o êxtase, passaram a “sair de si para si” dando-nos a sensação de exteriormente “estarem em si”. O produto não é muito diferente do de Descartes, a diferença está no facto de nunca ultrapassarem o mundo da tecelagem, o de Penélope, o do Devir, num entrecruzar de fios, de símbolos, de contextos ou bases, infinitamente, sem que cheguem a ultrapassar alguma vez o próprio símbolo. O seu mundo é o mesmo mundo lunar de sempre, apenas a forma como se apresentam, com vestes luminosas e seguras, é diferente. Observando esses seres de perto, e confrontando-os com uma transformação directa, a sua reacção é de pânico, ou de incómodo, tal qual aponta Guénon no início, no quarto parágrafo, do seu livro “Os Símbolos da Ciência Sagrada” quando diz: “Para muitos católicos, a afirmação do sobrenatural só tem valor teórico, e ficariam muito pouco à vontade se tivessem de constatar um facto milagroso. É o que se poderia chamar de materialismo prático, de materialismo de facto; não seria este muito mais perigoso ainda do que o materialismo reconhecido, precisamente porque os atingidos por ele não têm mesmo consciência disso?”. Poderia acrescentar ainda, e passados alguns anos da escrita desta ideia, que existem por aí, muitos católicos disfarçados de pagãos e cuja reacção não é nada diferente perante o mesmo facto. O apadrinhamento do mundo interior do outro é coisa rara e quando existe, ou é feito com vista ao “discipulado”, normalmente cego e superficial, ou é feito com vista a um “mestrado”, fazendo “nossas” a palavra do “mestre” que adoptámos. Esta última acção também ocorre muito e serve a deturpação das mensagens exemplarmente até porque um Novo Mestre, só é legítimo com um Antigo Mestre, mas só é Novo Mestre, se trouxer alguma novidade, acrescentar um ponto (que nunca lá esteve) à história, ou se aproveitar uma visão parcelar do Antigo Mestre. Isto também se passa muito. Depois há, como dissemos atrás, aqueles que rejeitam o mundo interior do outro. Neste caso concreto de António Telmo. Nem o consideram Mestre de coisa nenhuma (e aí estão certos) nem o consideram sequer um aprendiz válido (e aí estão errados). Digamos que o tentam afastar e minimizar porque, ao invés de Iniciados, são aqueles que, embora não estando “fora de si”, em êxtase, passaram a “sair de si para si”, dando-nos a sensação de “estarem em si”, mas na verdade, estão continuamente presos aos fios de Penélope, tecendo os dias e as noites, enquanto Ulisses anda em aventuras solares que não lhe dizem respeito. O mundo solar é criativo, por excelência, embora venha muitas vezes disfarçado com a camuflagem bélica. Na verdade, António Telmo era uma figura incómoda como se ele próprio fosse um fenómeno que incomodasse a ordem pré-estabelecida de um padrão ou de uma mentalidade inalterada ao longo do tempo. Alguns lhe apontaram essa capacidade de fazer “tremer” quem dele se aproximava, não entendendo que a presença de algumas pessoas é naturalmente assim e não produto de iniciações contrafeitas como são as martinistas e que dão a mesma sensação, mas apenas por via da sugestão. Esse tremor, verdadeiro e mudo, sem ser produto de qualquer olhar ou gesto, é o mesmo que existe na própria terra, que vive e pulsa e só é captável e emitido por aqueles que se vão aproximando do seu centro.

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