Num dos muitos diálogos que tive o desprazer de ter quando ainda estava no Facebook, caí no erro de dizer que, de quando em vez, lançava o I Ching e logo um músico-poeta que pertencia a um grupo de filosofia que se encontrava em fase de desintegração, como era costume, e sem eu lhe pedir, disse de imediato a sua opinião: que se tratava de auto-sugestão. Nascido com e do Taoísmo, este Livro das Mutações, com milhares de anos, foi assim resumido numa penada por quem se achava digno de um grupo de filosofia. Foi mais um contributo para me afastar de certos meios. Comparar este Livro de Mutações a um simples lançamento de búzios, porque foi isso que aconteceu, é não entender nada daquilo que nós ainda estamos a tentar entender graças ao grau de complexidade que este Livro comporta. Já não falo dos estudos feitos, e são vários calhamaços, em torno deste tema que é muito mais do que uma simples imagem de alguém que, centrado sobre si mesmo, em época juvenil, quer saber como lhe vai correr o futuro. Até porque, neste livro, o futuro está sempre em movimento, como tão bem disse o Mestre Yoda da Guerra das Estrelas.
Tive várias experiencias com este livro e, das mais impressionantes foi a da saída, por quatro vezes consecutivas, do mesmo hexagrama e da mesma mutação (que redirecciona para outro hexagrama). Tive esta e muitas outras experiências cujas probabilidades são de uma para 64, o número dos hexagramas. A história da auto-sugestão parte do princípio de que não é a mente que faz mover a matéria, ao contrário do que à primeira vista pode dar a entender. Quando o filósofo-músico teceu o seu comentário, quis dizer que, consoante o hexagrama que saísse, assim eu me comportaria, ou seja, o acaso do exterior iria ditar o meu comportamento. É tudo ao contrário. Com milhares de anos, com a sabedoria chinesa aprimorada ao longo desses anos, nada poderia ser menos verdadeiro. Quando se lançam as moedas, há uma ligação mental e corporal com as moedas e, ainda assim, não é tudo. A nossa mente pode estar mais ou menos ligada ao eixo do mundo, da vida, do nosso ser. Se estiver pouco ou nada ligada, o resultado irá ser exactamente produto desse afastamento, se se encontrar mais em sintonia com esse eixo, o resultado irá estar mais de acordo com esse eixo fundamental que liga o céu e a terra e é por isso que lançar uma moeda do I Ching não é um acto tão simples como se pensa. A cara ou coroa, o Yin ou o Yang, dependem do nosso estado interno. A ideia de "auto-sugestão" serve a quem vive num mundo de sugestões como aquele com que se divertem certos seres que se pensam iluminados no Facebook, julgando-se assim mestres, orientadores ou simplesmente predadores de ideias alheias ; o mundo filosófico e esotérico em Portugal está cada vez mais povoado desses seres nauseabundos incapazes da criatividade plena, mesmo que dedilhem uma guitarra. Também já inventei muitas músicas para o gravador e não me sinto superior por isso e não me atrevi nunca a dizer, nem no início, que o I Ching era uma mera auto-sugestão: uma cultura milenar merece mais respeito do que isso. O I Ching, perece-me ser um fenómeno com várias vertentes, desde a física, passando pela mental, até à espiritual. Não sendo uma oração, nem uma meditação, requer, porém, alguma coisa disso e não é um sistema fechado, mas sim, muito mais aberto do que fechado, daí chamar-se o Livro das Mutações e não o Livro das Repetições, até porque, segundo a Tradição, nada se repete, não só porque na natureza não há repetições (isso é para o mundo dos geómetras e dos matemáticos que não conseguem ultrapassar o número, mesmo quando lhe dão uma carga simbólica: o grande perigo destes é não apreenderem a Unidade), como porque "a água de um rio só passa uma vez pelo mesmo sítio" e daí que o Universo esteja disposto em Cascata como indicou Solazaref o que, aliás, pudemos constatar... e, tendo constatado esse facto, nele tudo corre para e nessa cascata sem fim que é o avesso corporal porque "descarna" os eventos e o Todo revelando a sua Luz fluindo. Mas, voltemos ao I Ching. A sintonia com o eixo irá aproximar a nossa escuta das palavras do I Ching, não da certeza dos eventos futuros, mas sim, de uma maior preparação para os mesmos. Não são os eventos em si que são descritos, é a nossa preparação para eles que é relatada o que, à boa maneira chinesa, parece paradoxal: como nos podemos preparar para aquilo de que não temos a certeza? Se tudo é mental, a resposta reside aí. Para atingir esse grau de preparação para o que mentalmente irá acontecer e que se derramará na plena existência desse acontecimento é necessária essa sintonia com o eixo. E essa é a mais difícil de conseguir. Este é um dos graus mais complexos do I Ching. O mais simples, acessível e funcional é ir escutando as palavras do Sábio (personagem que aparece frequentemente no I Ching), sem questionar muito, mas ouvindo-o com o coração. Isto remete para a relação mestre-discípulo: sem questionar muito, ou seja, confiando nas suas palavras que são apenas um eco de uma das nossas facetas e que aparecem descritas no Livro. Já Guénon dizia que o Mestre é uma mera projecção do Discípulo pelo que se depreende que, não há coisa mais difícil do que se ser Discípulo. No Oriente, ser-se Discípulo é já um estatuto, ao contrário do que se passa nos nossos meios esotéricos onde a palavra Mestre é logo solta da boca para fora sempre que alguém mostra alguma erudição (como se esta fosse garante do que quer que seja...), devemos, aliás, ter mais mestres por metro quadrado do que discípulos, o que é pena porque é no Discípulo que se encontra o Mestre. Evidentemente que não poderemos deixar de falar na ambivalência dos símbolos e na sua multi-significação. Se era assim no Ocidente antigo, era assim também no Oriente arcaico. Um símbolo nunca tem só um significado, nem nunca é apenas só positivo ou negativo. Isto se for, de facto, um símbolo e não um sinal. Só agora, numa época de eruditos que se pensam mestres é que se assiste à leitura dos símbolos de forma dogmática, senão mesmo fanática, muitos deles formatados por uma religiosidade nervosa, assoberbados por um espírito de "missão", essa sim, quantas vezes, produto de auto-sugestão...