E, eis que três pescadores entraram pela galeria adentro tendo um deles exclamado para os outros: "Isto sim, é arte". Já me habituei a esta dicotomia entre intelectuais e gente aparentemente simples. Os intelectuais não apreciam, nem percebem o que pinto e os "simplórios", mais genuínos, e com as memórias ancestrais ainda activas, possuem o gosto específico, espontâneo e sem filtros de qualquer espécie e soltam uma exclamação positiva, absolutamente verdadeira. Daquela vez foram três pescadores, mas, já antes deles, e sem contar com as crianças, tinham sido canalizadores, empregadas domésticas, transeuntes que passavam na rua, numa das muitas mudanças que fiz. Paravam e gostavam, simplesmente. No fundo, só as almas antigas, camufladas em profissões ditas menores e muito longe da nossa intelectualidade cosmopolita reconhecem aqueles símbolos que os fazem despertar subitamente para a realidade verdadeira que consigo trazem. A minha desconfiança para com os intelectuais provém muito de ter observado neles a capacidade de dizerem gostar tantos dos "horrores" modernos, como das obras modernas sem qualquer Graça e, em simultâneo, afirmarem a genialidade dos antigos mestres de pintura. À minha pintura, quanto muito, chamam-na de "bizarra", quando não coisas piores e isto quando se resolvem destacar do total silêncio para o qual, a maioria dos intelectuais se remete, como se fosse proíbido pronunciarem-se sobre o que faço. Esses mesmos intelectuais têm súbitos ataques de paixão pelos simplórios sempre que estes lêem um livro. E espantam-se, e maravilham-se, no seu jeito paternalista: "Ai, que bom! Tão simples e lê!" Quase como se os simplórios fossem candidatos a um lugar na intelectualidade, ainda que muito nos começos... A mim, o que me espanta são esses intelectuais dúbios na questão do gosto que, por serem tão flexíveis, acabam por gostar mais do prestígio do que de qualquer outra coisa. Na verdade, o que me espanta é que os intelectuais leiam e não aprendam nada, nem de integridade, bem de beleza, algo que os simplórios trazem com eles naturalmente. Mas, como o mundo anda às avessas, o melhor é encolher os ombros e deixar os intelectuais no seu posto, felizes consigo próprios, mesmo que não entendam nada do que é, verdadeiramente, a ancestralidade, e lendo-a às toneladas. Os três pescadores andavam à pesca da força, da beleza e da sabedoria. E quando a encontraram, como bons e experientes pescadores que eram, reconheceram-nas imediatamente. E isto, muito provavelmente, sem ler. Mais difícil do que o armazenamento de palavras e de livros por parte dos intelectuais, é esvaziarem-se eles de tudo o que pensam saber. Talvez só assim se deixem de um paternalismo quase ofensivo e produto da inversão a que se assiste. Evidentemente que o paternalismo é conveniente para se manter um terminado estatuto. Sabendo, (mesmo que a negando por causa dos dividendos políticos da Revolução Francesa) da existência de hierarquia, utilizam-na a seu belo prazer sem saber que qualquer pescador se encontra hierarquicamente acima de qualquer intelectual actual que se limita a ser um seguidor de estímulos externos e não internos. É uma boa jogada, esse aproveitamento da hierarquia que negam e recusam, só que não engana quem lhes está hierarquicamente acima, por mais livros que mostrem ao público e por mais escritos que revelem a sua suposta cultura. Temo bem que a minha pintura acabe por ser um teste que apenas os mais simplórios conseguem passar. E não há nada de simples no que pinto. O luxo simbólico que vive da memória do futuro é algo só desvendado aos ricos em Espírito. Mesmo que sejam pobres em letras, o seu Espírito está activo. E não há jogadas. É algo instantâneo. Tão natural que toca o sobrenatural ou tão sobrenatural que toca o natural. Depende do ângulo de visão. É uma questão de linguagem. Uma linguagem inacessível ao entulho intelectual português que se afastou da ancestralidade, embora a destaque como coisa muito nobre e importante. Não se decidem, na verdade: querem uma igualdade com toda a força e resistente a toda a prova e da qual eles próprios são a referência que contradiz essa mesma igualdade. "Ele, até lê... é quase como eu...".
Pela minha parte posso dizer, logo eu que não acredito minimamente na igualdade: "Ele vê! Ele é como eu!".
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