quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A professora

 


Olá Fernando, mais uma vez.


Escrevo-te para te dizer que hoje ouvi a professora dizer que até não desgostava da tua poesia, mas que eras um anormal, um desequilíbrado.
Nada como um poeta das nove às cinco, provavelmente estendendo o dígito ou passando o cartão para marcar o ponto. Um poeta certinho, sem tempestades. Um poeta da bonança dos bairros periféricos de uma cidade perfeita.
Cansa-me esta gente que tenta conciliar a suposta normalidade com a arte. Parecem carneiros a dar o grito do Ipiranga quando se encontram cercados.
Se não entendem a anormalidade da arte, não entendem a normalidade dela. E muito menos a sua enormidade.
Queriam um poeta menos bêbado, um não-fumador e papéis A3 imaculados e brancos, talvez completamente brancos e lisos sem o incomodo das letras, sem a mancha do texto.
Ainda não perceberam que a tua poesia e os teus escritos não são para gostar. Não são um gelado no Verão. São um banquete que conduz a uma brusca paragem de digestão.
A indegestão das palavras mostra que nem uma vida chega para as digerir.
Queriam o quê? Um formulário breve de "como se deve viver"? Uma observação clara do óbvio enfeitada com borboletas e passarinhos? Queriam o quê? Amar perdidamente sem perdição alguma? Que ensinem, então,  a matemática toda e pensem assim ter encontrado Deus nos números. Mas que Ele, seja analfabeto e não saiba o perfume das letras.
Estes monstrengos que rodopiam três vezes para ficarem no mesmo lugar são o maior susto da civilização. O bicho-papão autêntico, em pessoa, invadindo as salas de aula. O maior castigo em forma de "ensino obrigatório". O grande trauma da competição para ver "quem é mais normal". A brejeirice encarnada nos assépticos do "gosto e não gosto", substituindo o pensamento.

 Só no fim, bem lá no fim, se pode encontrar o verbo "gostar", naquele momento da retoma da paragem digestiva, naquele momento em que a má disposição se acalma um pouco e, ainda de rastos, voltamos a respirar e nos damos conta de que, por momentos, deixámos de existir, quando entendemos que não entendemos nada da nada, que não sabemos nada, que não somos nada, excepto ilhas rodeadas de dúvidas. O "gosto", é para esses anormais.


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