https://sol.sapo.pt/2023/08/22/um-inedito-de-fernando-pessoa-num-tempo-em-que-seria-de-se-exigir-pao-para-os-vivos/
É absolutamente compreensível que haja um sentimento de indignação face ao problema do exercício de aproveitamento que se tem feito tanto com a obra como com a figura de Fernando Pessoa, no entanto, tanto a forma como o faz como as razões que Diogo Vaz Pinto apresenta para essa indignação são, no mínimo, bizarras. Parece o autor ter transbordado após a gota de água que foi a publicação numa revista de mais uns versos do Poeta, tornando-se esse acontecimento em notícia no jornal Observador e, enraivecido, coloca as mãos no teclado, sob o domínio de um espírito juvenil, revolucionário e vingativo e escreve um texto no jornal Sol, em pleno mês de Agosto, numa plena manhã no qual revela a sua fúria, perdendo as estribeiras e confundido tudo, a ver:
A notícia publicada pelo Observador sobre a publicação de um inédito do Poeta supracitado numa revista literária é referida como “espécie de publicidade” a essa mesma revista. Bem, se os jornais portugueses tivessem uma secção dedicada à publicitação gratuita de notícias sobre revistas literárias isso queria dizer que haveria potenciais leitores de revistas literárias e potenciais leitores de livros. Que todos os males fossem estes.
Em seguida, Diogo Vaz Pinto cita Cesariny, o mesmo que escreveu “Tanto Pessoa já enjoa” e que, embora este se queixe da falta de espaço para a diversidade, sempre teve o seu lugar assegurado no salão do meio literário entrando pela porta, tantas vezes facilitista, do surrealismo. Parece-nos sim, que esse autor sofria de uma certa inquietação própria dos talentosos inseguros. Indica o escrevinhador do artigo, após este breve apontamento sobre a indignação de Cesariny, e esta parte é muito importante como veremos, que Zenith aponta para o facto de estes versos de Pessoa em causa, na sua forma, corresponderem a um determinado formato poético vindo da Pérsia não sem antes ser esta pequena composição de Fernando Pessoa apelidada pelo cronista de Verão como “breve e banal”, adiantando que o Observador nem reproduz nem se pronuncia sobre os versos em questão talvez para não estragar a surpresa comparando esta atitude às séries de streaming que alimentam espectadores passivos. Talvez tenha alguma razão, mas não parece ser grave a existência de uma notícia sobre uma publicação de uma Revista. E eis, então, que o especialista em poesia lança uma lança.... em África quando nos remete para um poema (?) escrito pelo mexicano Fabio Morábito e que segundo o seu juízo literário bem poderia passar como tendo sido escrito por Pessoa através de um dos seus heterónimos e passamos a citar o brilhante “poema”: “Pedem-me sempre poemas inéditos./ Ninguém lê poesia/ mas pedem-me poemas inéditos./ Para a revista, o jornal, a performance,/o encontro, a homenagem, o sarau:/ um poema, por favor, mas inédito./Como se soubessem de cor o que escrevi./ Como se estivessem cheios da minha poesia/ e precisassem agora de algo inédito./ A poesia é sempre inédita, disse o poeta no poema,/ mas eles ignoram-no porque não lêem poesia,/ só pedem poemas inéditos.” Gostaríamos de afirmar que este poema de Fabio Morábito é prosa e não poesia e nem sequer tem grande qualidade. E gostaríamos de perguntar a Diogo Vaz Pinto qual seria o heterónimo de Pessoa de sua escolha para o contemplar com esta prosa que de verso só tem a forma? Não encontramos nenhum, nem sequer aquele que à primeira vista seria o mais adaptado: Álvaro de Campos, fervente em pouca água, mas que nos leva na sua vertigem em espirais até ao céu. Poder-se-ia dar o caso de encontrar tal mexicano por entre os semi-heterónimos e figuras criadas pelo poeta aos quais se pudessem atribuir estas linhas, mas o mesmo se passaria com as quadras de Aleixo ou alguns versos de Sophia de Mello Breyner. A Grandeza de Pessoa é evidente e variada. E se “A poesia é sempre inédita”, não percebemos a indignação à volta destas linhas de Pessoa. Perante os versos mexicanos, os versos portugueses do nosso grande poeta, são, segundo Diogo Vaz Pinto, uma desilusão e prossegue numa sumptuosa descrição do comportamento que se tem face aos grandes mestres da poesia para que o efeito teatral de apresentação de uma nova “tortura diária do lugar-comum (...) nos provoque agora a sensação de uma epifania qualquer”. Não contente com isso, ainda nos fala da poesia de Pessoa como utilizando recorrentemente a organização de “um percurso recomplicado por meio de uma série de abstracções, produzindo um efeito de profundidade e uma espécie de melodia e sageza no tom, sem chegar a dizer nada, apenas glosando um mote há muito empalhado... " sendo isto "...um dos efeitos retóricos mais comuns na mais estafada das poesias. O problema só se põe devido à monumentalização da Obra e da própria figura de Fernando Pessoa”. É, natural, dizemos, nós, pois a obra de Fernando Pessoa é monumental e a sua figura, impõe respeito: sacrificar a vida pela obra é, de facto, obra! Quanto à técnica que o cronista tenta descrever de forma rebuscada e que se resumia apenas em psíquico-labiríntica (muito à imagem do próprio cérebro, aliás) e ao facto de referir a sua banalidade e a sua falta de conteúdo, diremos apenas que é a opinião do cronista, em dias de hoje, diluída em tantas outras neste imenso turbilhão de colecções de 15 minutos de opinião.
Indigna-se também, e une-se a Alexandre O'Neill nessa indignação, com o culto ao Poeta, mais prolixo e duradouro do que o próprio acto de ler os seus poemas, cita-o nessa união, mas cujo tom é mais o de um lamento sobre esse culto do que propriamente a crítica a Pessoa que é inexistente nessa citação. Que se diferencie, por favor, o culto ao poeta da qualidade da poesia, algo que Diogo Vaz Pinto não faz, utilizando o culto para diminuir a obra do cultuado, chegando mesmo a afirmar algo, isso sim, anedótico, que o culto “torna impossível ler e avaliar com algum critério a infinidade de textos que escreveu, tantos tão desnecessários que deveria haver mais cuidado sempre que se cede à tentação de dar mais outro à estampa”. Contemplamos assim, nestas palavras, aquela pena antiquíssima, não tanto como a noite, mas, ainda assim, com considerável idade, que escreveu o Índex e mais tarde, fénix renascida, passou pelas mãos da Censura, apenas pintando os “papéis com tinta” com aquilo que era conveniente na altura. Estas novas gerações parecem ter nascido com um ditador sempre pronto a saltar... Enfim, alonga-se mais ainda, Diogo Vaz Pinto, como pioneiro na denúncia da bastardia de Pessoa, evoca Negreiros cuja contemporaneidade a Pessoa lhe permitiu a rebeldia de abrir os reposteiros de veludo pesado e vitoriano e arejar a casa da poesia. Se Negreiros abriu um reposteiro, Pessoa abriu o outro e a vanguarda entrou pelo avarandado em forma de raio de luz iluminando a Tradição... que se encontrava calmamente sentada a beber chá e a fazer acontecer tudo à sua volta, mas isto são outros tantos que Diogo Vaz Pinto desconhece, e, ao evocar Negreiros, alonga-se na sua tontura “despessoada” (todos aqueles que têm falta de Pessoa) e afirma que os gestos de reconhecimento tapam a obra dos poetas e também as vergonhas de um país (para isso cita O´Neill) que não soube reconhecer o poeta enquanto era vivo e toma nos braços Pessoa como vítima da ferocidade com que alguns se açambarcam com “bolsas, viagens, congressos...”. O´Neill indigna-se, e bem, com os abutres, não com o poeta. Mas, despessoado como é, Diogo Vaz Pinto, aponta imediatamente a “esterilidade dos inéditos que ainda vão surgindo” e a “dificuldade em se estabelecer uma linha entre o que é dele ou não (no facebook isso acontece com todos, dizemos nós), aquilo que é material novo (estamos cá para investigar, dizemos nós), velho (velhos são todos os poemas e escritos, já têm uns aninhos, observado por nós), requentado, ou mais algum borborismo sem o menor interesse...” para o cronista, claro, afirmado por nós. Quanto ao requentado, fez-nos lembrar um professor universitário que tivemos que se mostrou muito irritado por andarmos a ler Mircea Eliade, acusando-o de estar ultrapassado (a velha mania compulsiva das ciências antropológicas de se pensarem como ciências exactas), levando-nos a perguntar-lhe se Platão também estaria ultrapassado. Poesia requentada, por vezes, é como o vinho do Porto... em repouso em velhas arcas de madeira, mais tarde descoberta como rubis no fundo da terra. E conclui com Eugénio de Andrade que se mostra incomodado com a incapacidade de Pessoa ser ele próprio. É isso que lhe dá a graça, dizemos nós e ainda andamos à procura de alguém que seja igual a si próprio.
Por fim, a grande mágoa revela-se, aberta em penas de pavão: “... quem paga o preço são os poetas vivos, e sobretudo os jovens, que têm de contender e reger-se por esta forma de astrologia e de veneração do brilho cada vez mais distante de astros mortos.” Espantoso! Enterremos definitivamente os mortos depois de os matarmos outra vez, retiremos-lhes o brilho para que os jovens possam tomar o seu lugar porque este é um mundo cão, competitivo, destronador de antigos e distantes astros, um mundo que se quer novo, asséptico e sem ponta de História por onde se lhe pegue. Afirma o cronista solar, encadeador de outros sóis, em pleno Agosto, numa linda manhã de Verão, que nos deixamos influenciar pelos estrangeiros. Deduz-se que são muitos os estrangeiros que apreciam a obra de Pessoa e que só por causa disso o veneramos, porque somos naturalmente imbecis, se pensássemos pela nossa cabeça nunca veneraríamos Pessoa. Temos pois, a vanguarda das vanguardas, o paradoxo nacional e juvenil contemporâneo na sua glória: gostar de nós é não gostar de um dos nossos maiores poetas! Espantoso. É a nova geração em pleno, de boné poético colocado ao contrário na cabeça, com gestos de Rap e danças amacacadas. Pessoa? Esse “grafomaníaco que era menos de inventar do que se fazer passar, traficar, falsificações e cópias, redundâncias ao infinito...” Yah! Este Yah é nosso porque nos encontramos a ler Rap.
Ora, segundo este cantor de novos poetas a haver, o poema de Luís Filipe Parrado publicado na referida revista e que se encontra à esquerda (a esquerda não deve ser por acaso) das linhas de Pessoa é muito mais curioso e versa assim: “Nos seus poemas/ os poetas dizem muitas vezes/ que o mais importante,/ o que marca uma verdadeira diferença/entre o antes e o depois/ é o apelo da beleza e do terror,/ o ímpeto de rasgar o véu da carne/para chegar ao osso./Aí, onde dói./ Aí, onde o excesso de luz cega./ é o que dizem os poetas./ muitas vezes. /Nos seus poemas./ Mas, para além de Homero/ e de Borges, diz-me tu, / que outros poetas cegos conheces?”. Temos más notícias, isto não é poesia, de poesia, e mais uma vez, só tem a forma. O urinol de Duchamp já entrou na meia idade e, desde ele, a arte é arte quando, das duas uma, ou o autor diz que é arte ou quando está presente num espaço de exibição de arte e é por isso que as artes plásticas estão como estão, uma desgraça. O mesmo se passa aqui, não é por ter a forma de um poema que é poema, mas a modernidade diz que é. A antiguidade diz que não. E andamos nisto. Estou em crer que Diogo Vaz Pinto aprecia muito prosa, pela amostra dos dois poemas que escolhe transcrever, beneficiados com a sua crítica benigna, o mexicano e este português. Em comum: não são poesia. Como já estava muito à esquerda e, não vá o diabo tecê-las, conclui a sua opinião com um exemplo do que se passou na época de Estaline, quando uma geração de poetas foi “delapidada” por causa deste hábito irresistível de venerar os mortos. Assim, os pratos da balança ficam equilibrados. Os Russos também fizeram o mesmo. Nada como os estrangeiros para nos apoiarem... e, mesmo no fim, deixa-nos um apelo escrito pelo russo Maiakovski que acaba assim: ”Abandonem de uma vez por todas a veneração por meio de jubileus, centenários, a homenagem por meio de edições póstumas. Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os Vivos!”. Pois, o Rei morreu, viva o Rei! Mas isso é numa monarquia... com Reis (um pouco diferente de meros presidentes, porque quanto há lugar para todos nos retratos reais e na memória do povo, algo que a Democracia actual desconhece). Viva a Revolução!
Então, vamos dar uma olhadela a essa “decepção” que são os versos de Pessoa e que incomodou tanto Vaz Pinto, rezam assim:
A ave canta livre onde está presa.
O servo dorme e o sonho lhe é surpresa,
Liberta-te, mas nega a liberdade.
Poder e não querer, eis a grandeza.
Não é necessário estudar muito Fernando Pessoa para se compreender que, mais uma vez, se trata de um poema iniciático. Vivemos, cantando presos na nossa prisão, que é corpo e terra, somos servos com a capacidade de sonhar e o sonho pode ser uma porta para a Libertação (vide o que é a libertação em termos iniciáticos), atingida a liberdade esta só é total se a nossa vontade prevalecer para além dessa mesma liberdade. Curiosa é a utilização da ave e a tal forma em estilo persa, sabendo-se de cor a importância das aves nessa cultura arcaica à qual Camões não foi indiferente e também curioso é o papel dos sonhos na Iniciação tão bem estudado por Henri Corbin. E diríamos que este é apenas o primeiro véu a ser retirado destes versos. A Grandeza reside na Vontade e a liberdade, abaixo dela nunca se perde. A Vontade é condição sin qua non (as minhas desculpas a Diogo Vaz Pinto pelo latim que é antigo) não há iniciação. A iniciação é grandeza. Vai um pouco na esteira daquilo que é dito por alguns budistas “Se vires Buda no caminho, mata-o!”. O mesmo princípio, Tradicional. A Iniciação é, aliás, Tradição e, das duas uma, ou andamos nesta terra para sermos jovens e experimentalistas até aos noventa anos de idade ou, a determinada altura do percurso de vida, tal como aconteceu com Almada Negreiros, damo-nos conta de que há mais. Este poema diz-nos que há mais. Eis a grande reviravolta na vida, maior e com mais grandeza do que aquela que há em qualquer Revolução. Revolucionários há muitos. Iniciados, poucos.