domingo, 10 de dezembro de 2023

O tempo


 Já visitei lugares em que o tempo se estendia lentamente como o espreguiçar de uma chita e outros em que o tempo passava tão depressa como o seu salto. Infinito mistério, o do tempo, sem que se saiba onde começamos e onde acabamos com ele. E uma vez, numa falésia, um pôr do sol que durou mais do que o tempo previsto com o céu multicolor, o mar leitoso, refletindo as cores do céu e parado, sem se mexer, obediente ao momento. 

Isto para dizer que o tempo parece ser uma entidade independente e dependente em simultâneo, como certas pessoas, feitas de tempos, momentos aglomerados uns aos outros, sem ligação entre eles, mas mantendo uma coerência no discurso que têm sobre a sua história que é surpreendente. Parecem ser dependentes do tempo e independentes dele, como os políticos modernos. Nada de Reis David, tocando a lira poética exalando o tempo em sons, nada disso. O som assemelha-se mais ao de um tango, todo partido, em notas que dão reviravoltas súbitas, ora rindo, ora sofrendo, nunca poetando ... são sentimentos puros que caem lágrima a lágrima. São lágrimas tão visíveis, sejam de furor, sejam de amor. A poesia é para reis. 

Quereis as coisas bem estruturadas quando o tempo é louco? E de loucos!



Tecnicamente impossível

 




É certo que a criança tinha algum grau de Asperger, no entanto, não pude evitar rir quando, ao contar a lenda do galo de Barcelos, se sai com esta:

- E o juíz viu que era tecnicamente impossível o galo cantar.

E disse-lhe:

- Essa do tecnicamente impossível, tem graça.

Ligeiramente indignado ripostou;

- É tecnicamente impossível o galo cantar.

Ainda tive a tentação de lhe dizer que os milagres são falhas técnicas e acertos fora das técnicas, mas penso que não iria compreender. 

Estamos num mundo tecnologicamente avançado, ideal para o aparecimento de cada vez mais casos de autismo e de Asperger, como se o mundo, tal como está, chamasse as almas que com ele se assemelham. Não me admirava nada que assim fosse. Almas especializadas e onde a capacidade de simbolizar fosse encaixada numa falha técnica. Aquilo que não tem sentido, só pode ser uma falha... até o próprio "no sense" é um erro, algo que não corre bem no discurso que é uma sucessão de causas e de efeitos. 

Mas já nada me admira, desde que vi um ser que se dizia espiritual a ficar branco como a cal quando alguém acendeu uma fogueira sem que houvesse fogo de contacto. No fundo, não era espiritual. Porque também há os Asperger dos mundos espirituais, gente que, bem lá no fundo, se acha superior e que caminha sobre as brasas em que não acreditam. 

Também conheço um que se propunha a confeccionar ídolos de papel para vender e, qual não é o meu espanto, quando solta esta:

- Há quem acredite nestas coisas.

Subrepticiamente estava lá o "tecnicamente impossível". 

Foi com isto que tive de lidar por uns anos. Depois cansei-me de conviver com um leque tão baixo de possibilidades.  Apesar de tudo, uma criança com Asperger é mais genuína. 

Depois há os científicos que dizem que tudo no Universo é energia e que se as energias forem canalizadas em grande número, farão com que a imagem da Virgem chore lágrimas de sangue. É tecnicamente possível e, assim, e só assim, os milagres são aceites e até podem dar jeito. 

Chamo a isto o mistério da alma humana. Até que ponto é que não estamos rodeados de Asperger de várias espécies, desde os mais simples, como crianças, até aos mais eruditos que, não sendo crianças, são muito espertos e dizem roçar a possibilidade de desvendar o Mistério, tão próximos se sentem da verdade. Mas da verdade que é sempre tecnicamente possível, nunca da mentira ou do erro que é tecnicamente impossível. Normalmente chamam a isto a vitória da Luz sobre as Trevas, mas não serão apenas Asperger meio iluminados no sentido em que alcançaram a parte de fora do símbolo (a única que conseguem alcançar) deixando no ar uma vertigem de autoconvencimento invencível como o Gato da Botas que, bem vistas as coisas, era apenas esperto, expedito e com talento para se mover neste mundo, (nunca no outro) como o príncipe dele e todos os belos príncipes que perseguem e queimam na fogueira todos aqueles que não brilham com a luz que bem entendem ser a verdadeira. 

Também ouvi da boca de um que mal se começava a evoluir espiritualmente, naturalmente, a riqueza material aparecia. Esse era Cristão e devia imaginar um Cristo todo paramentado a fios de ouro. Olhei-o de boca aberta, e ainda tenho a boca aberta, a olhar para ele. Ele é o palácio e eu a burra. Ele era mais "apalaçado" do que o túmulo de Cristo e respectiva ressurreição.

Estes seres normalmente gostam de bruxas cegas porque dizem que prevêem o futuro, ou de bruxas simplesmente doidas que dizem umas coisas que depois podem ser aproveitadas. São os gatos das botas, versão "sanguessugas" e extraordinariamente evoluídos espiritualmente, assim se pensam. São os que "dominam" tudo à sua volta, os que sabem de que é que a casa gasta, de que é que este mundo gasta.

Houve aí uma fase em que chorei lágrimas sem fim, elas vinham de dentro, jorravam como uma fonte que nunca se acabava, sem que na altura entendesse o que se passava ou o porquê de tantas lágrimas, mas a resposta era bem simples: desilusão. Mas foi essa desilusão com esses seres que me fez ver o quão distante estava de tudo aquilo. Nunca foi uma desilusão com a minha própria ilusão, foi uma desilusão com a ilusão que criavam e foi por isso que se deu um corte ontológico, visceral. 

Hoje percebo que têm Asperger de adultos, que estão bem nesta época, que a merecem, que vivem nela e a saboreiam até ao tutano. Daí que não tenham criatividade alguma. São tecnicamente possíveis, juntam elementos como a Inteligência Artificial. Nunca erram. Nem levam pancada (como afirmou Pessoa) porque nunca iriam bater neles próprios, o máximo que conseguem fazer é a penitência, que cheira a catequese, a teias de aranha, a padres com taras e ao perdão imediato depois do terço. Um perdão tecnicamente possível. Instantâneo, até. 

Um dos elementos que gostam muito de juntar são as chamadas trevas que cada um carrega dentro de si. Adoram dizer que passaram pelas trevas, como heróis, e atiram à cara dos outros a urgência de o fazer como se, por um qualquer mistério insondável, soubessem quais são as trevas de cada um, pois pensado saber quais as deles, pensam saber as de todos. E movem-se bem nessas jogadas, quer sejam de bastidores ou directas. E mesmo que pisem o risco e espezinhem o Espírito Santo nessa corrida para a glória, lá vem a Santa Penitência que é como a água e lava tudo... e aparecem lavadinhos e penteadinhos como acólitos. 

Mas há tanto Mistério na Vida, tanto que penso ser um grão de areia neste cosmos imenso, a primeira bolacha do pacote que sabe sempre melhor do que as outras. Tão vivo é o Mistério que é sempre vivificado e tão longe está destas acrobacias de circo. Tão longe me sinto, como uma ilha. Sou só a distância que me separa do Mistério. 



sábado, 9 de dezembro de 2023

Mas também há...


Caiu-lhe a ficha, maionese, azeiteiro, a última bolacha do pacote e tudo mais um par de botas. Os portugueses são estranhos quando adoptam dizeres e estes estão na moda. Na verdade, os portugueses são estranhos e é por isso que pensamos neles. Dir-me-ão que qualquer povo é estranho. Evidentemente que sim, a única diferença é que os portugueses são estranhos para alguns portugueses que se dão ao trabalho de pensarem nos portugueses. E esses portugueses que se dão ao trabalho de pensar nos portugueses, ainda são mais estranhos e ainda conseguimos o prodígio de ter portugueses que pensam sobre os portugueses que pensam sobre os portugueses, estes últimos são estranhíssimos. Dir-me-ão que estou a exagerar. Não não estou. Há portugueses que pensam sobre os portugueses que pensam sobre os portugueses. É assim que pode nascer uma recenção crítica de uma obra de António Telmo, de António Quadros ou de Dalila Pereira da Costa. Penso (também não conheço tudo) que ainda não se atreveram a pensar sobre os portugueses que pensaram sobre os portugueses que pensaram os portugueses, mas esperem, estou enganada. Quando um português que pensou sobre os portugueses que pensaram sobre os portugueses lança um livro, inevitavelmente podem ser feitas críticas, positivas ou negativas, num jornal por exemplo e assim temos os estranhos portugueses elevados ao cubo, isto se excluirmos o estranho português normal que diz coisas como maionese, azeiteiro, a última bolacha do pacote e ainda tudo mais um par de botas, só porque está na moda. Só agora me caiu a ficha. Plim! Pim! 

 


quinta-feira, 30 de novembro de 2023

No dia em que voaste


Meu querido Fernando:

Neste dia de aniversário do teu vôo, escrevo-te a partir de um Portugal em ruínas. A gulodice de estrangeiros abastados, de estrangeiros desamparados e de muitos portugueses nascidos em berço de inveja e de cobiça estão a dar cabo do país. Isto sem contar com a classe política que não é classe nenhuma. Já não há classes sociais com base na função, há classe monetárias. Portugal desaparece a olhos vistos, engolido por seres que não o merecem. Nada fica de pé, nem as gentes, nem a natureza, nem a cultura, nem a memória, nem os símbolos e isto porque a desumanidade diz que as gentes não interessam, a cobiça diz que a natureza é dispensável, a ignorância abaldroa a cultura, o medo afasta a memória e o ódio vence o símbolo. É disto que Portugal é feito hoje, uma mescla inabalável e cujo estrangeiros pés descalços ora em cultura ora em educação, ajudam a calcar ainda mais todos estes defeitos. Até há alguns anos estávamos entregues aos bichos nacionais, agora juntaram-se-lhes os internacionais. E digo bichos porque o mundo está e é cada vez mais uma selva eufórica que mete medo e não cheira bem. Nada disto é xenofobia, meu querido Fernando, porque só há xenofobia quando culpamos os estrangeiros por tudo, não, não é isso, a culpa é de dois terços dos portugueses e de um terço dos estrangeiros que se deixaram encantar pelo pseudo-paraíso. Ora porque são ricos chateados de morte em busca da humanidade (aqui só a encontram pontualmente numa certa doçura que ainda temos), ou são pobres, desesperados de morte que encontram aqui a promessa de uma vida melhor (raramente encontram uma grande vida). Mas pior do que eles, somos nós que já nada esperamos de nós mesmos. Os portugueses estão adormecidos, para não dizer mesmo mortos para o sonho que os devia animar. E estão-no por vontade própria. Parecem estar possuídos por formas puras de autodestruição. Ainda há quem diga que a culpa é das ideologias sem perceber que a luta ideológica é a base da democracia que nos mina. Quando a democracia vive e subiste dessas guerras, a essência de Portugal que é o comunitarismo (jamais comunismo!) a par com o individualismo (como sinónimo de seres despertos para si e para os outros), essa essência, dizia, afasta-se subtilmente da festa, dando passos para trás e saindo pela porta da criadagem para não dar nas vistas. É isto que se passa, meu amor. É deveras triste assistir a tudo isto sem poder intervir, nem interferir. Se as vozes de burro não chegam ao céu, também a dos anjos não chegam a uma terra povoada por burros. E a burrice é quem mais ordena (já não há sequer povo). Quando os portugueses vão votar, vão a uma pastelaria do século XIX. Lá dentro não há ninguém sentado nas mesas, apenas fantasmas. E na montra têm à escolha bolos, alguns petrificados, outros podres, outros ainda irreconhecíveis como bolos. E lá apontam o dedo cadavérico para a sua escolha. Os fantasmas ainda tentam lançar farpas para os avisar, mas o pior cego é aquele que não quer ver. 

Desculpa meu querido. Sabes que de vez em quando és citado pelos políticos? Sempre que o fazem, sinto uma náusea. Se eles te tivessem lido, veriam que não são dignos de te citar, nem sequer as notas de rodapé que escreveste à margem do rio das tuas palavras. 

Vivo envergonhada com o meu país, mas ainda pior, revoltada. Só Deus sabe e ouve o quanto.  As massas podres avançam a passos largos. É um exército desalmado, louco e invencível. Só o meu grito os vence. Aquele que Deus e tu ouvem. 

Uma grande beijo,

Da sempre tua,

Cynthia 

terça-feira, 14 de novembro de 2023

O meu reino não é deste mundo...


 Quanto maior o custo de vida e menores os recursos financeiros para lhe fazer face, maior a corrupção. Desta feita, temos a nossa "democracia" entregue aos abutres e são eles os corruptos, os potenciais corruptos e os futuros corruptos em todos os partidos, isso é certo.
Temos o Bloco de Esquerda que enche a boca com a palavra democracia, mas que em termos ideológicos é mais radical que o Partido Comunista e nenhum deles está livre da corrupção a começar pela corrupção das ideias: vendem a alma ao diabo e daí a facilidade com que ambos se refiram a si próprios como democratas quando, não são. Se chegassem ao poder, sem ser como bengalas de outros partidos, acabavam com a democracia num piscar de olhos. Depois temos o centrão, rotundo, gordo e anafado, como o S que compõe o seu nome, a saber, PS e PSD, onde fervilham velhas raposas dos negócios e jovens vestidos de escuro com camisa branca e, claro está, mochila às costas para passearem o computador, todos eles, se não corruptos, circulam, porém, na linha ténue que separa o serviço público (" deixa-me rir... Esta história não é tua" - obrigada, Jorge Palma) e o abismo distópico da corrupção, de vez em quando caem alguns lá dentro. Temos uma Iniciativa Liberal , cujo mote é "Homem que é homem, é empresário", ou outro "Cresce, homem! Faz-te a ti mesmo". Ora sabendo nós do papel das empresas na corrupção, não advêm daí grandes esperanças. E temos também, a grande novidade de raposas oportunistas acompanhadas dos seus jovens que não o são menos aos quais é dado o ridículo nome de Chega. Outros que tais cujo o mote é "junta-te a nós, irritado de morte, e baila connosco. Dá uma oportunidade aos oportunistas" e os idiotas, alimentados a futebol, furor e Facebook (estes são os verdadeiros "efes"), são arrastados na onda de um pénalti do oponente que "foi ao lado", de maneira que o meu reino não é deste mundo. Só sei que está tudo mais caro e que quanto mais caro está, mais estes monstros  neste caso, de seis cabeças, sete se pensarmos no próximo presidente, cresce e dá voltas sobre si...

 "Aqui ao leme sou mais do que eu..." 

Fernando Pessoa, continuo a amar-te. Sem dúvida. As tuas palavras são o sal da vida. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Aos agora mui interessados

 


Aos que agora parecem muito interessados no que ando a escrever: Kali Yuga é aquilo que se passa. Ciclo final. Já digo isto há muito tempo. 

domingo, 1 de outubro de 2023

Vera Justiça



Mais palavras que nos embalem, neste doce fim de tarde e tornar tudo ainda mais sereno. As saudades que tenho daquele que falava francês e tocava nas flores e com ele doutro tempo e doutros tempos. A nostalgia é uma malvada. O mundo não muda porque não quer, bem lá no íntimo adora o desespero das gentes, a injustiça das gentes, a inglória trajactória por onde avança. O mundo por onde vai, não quer ser agradável, não quer ser sereno, vai por onde quer e como quer. É sua escolha última sem nunca saber se é a definitiva. Ouço música soul, daquela calma e tudo parece estar bem. Suavemente bem. É mais um momento entre tantos outros. E nado, nado à tona da água. Perguntaram-me se me sentia exilada. Desde que nasci, respondi, agora ainda mais neste "à tona da água", sem ceder um milímetro à amargura ácida e sem saber se é definitiva esta resiliência. Só os loucos não se sentem magoados nesta solitária época. Só os loucos estão felizes. A normalidade já não sorri. Anda séria e sisuda por dentro a olhar para o coração e a tentar que sangre menos. Tentar que o coração não sangre demais é estar à tona da água, a inspirar sofregamente cada pôr do sol, cada música soul que canta a suavidade do mundo quando este decide ser suave. Agora, neste preciso momento, não acreditamos em políticas nem em políticos, mas a amargura não desce, porque acreditamos em nós, na nossa falta de demência, na nossa total falta de ambição política. Ela é forte, é o nosso centro que nos ergue acima das eleições e das misérias distribuídas pelas bancadas do circo. Os ambiciosos são toscos face a esta vontade de demanda interna que nos faz flectir as pernas e saltar para fora de órbita quando queremos. E ver tudo a partir de cima, qual extraterreste daqueles que estão hoje nos desfiles de moda e falar uma língua que o mundo não reconhece quando não está calmo e suave. Quando pratico a justiça, pratico-a sem pensar no amanhã. Nunca há amanhã. Amanhã, o planeta está morto e vazio de seres. A prática da justiça não é um acto de fé, de esperança e ainda menos de caridade, é simplesmente respirar, à tona da água, esbracejando na eterna dúvida se nos afogamos ou não. É apenas o ar que se inspira, sem razão, sem pensamento, sem futuro porque toda a razão e todo o pensamento só agem para o futuro. A justiça está fora do tempo, é uma inspiração de uma matéria indefinida sem ser um salto de fé. E é disso que o mundo tem medo. Prefere, na sua acção, um futuro catastrófico à ausência de futuro. Prefere reagir a agir. Prefere a escravidão da reaçção à liberdade. Agrilhoou-se porque quis e não tenho pena, a pena é para quem pensa no futuro do mundo. Este coração sabe que sangra, apenas, e no futuro, não se vê, como a bruxa que não conseguiu ler as linhas das minhas mãos, afastando-as dizendo que não percebia nada. Não me levou um cêntimo. O que me ri quando saí da tenda. Nunca houve futuro em mim como não houve para o mundo, tal como está. Se a bruxa estivesse mais atenta, tinha visto na palma da minha mão esta música suave, que é só o sabor do tempo exacto e não apenas estas mãos de extraterrestre elegíveis. Vivo entre o mundo quando está suave e o não mundo. Este como está serve só para nadar e manter os sentimentos à tona da água para evitar que o coração sangre demais. Os políticos são demasiado reactivos para serem justos. A nossa suposta elite é miserável. De todos os quadrantes. E é um profundo acto de justiça afirmar isto, aqui donde vos vejo, por entre as estrelas. 

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Por ela


 

Não me trazem as ondas do mar, o teu sabor. O sal desta vida é demasiado intenso e apaga os perfumes outros que reservas em ti. Longe vão esses caminhos sem fronteiras, sem donos, esse espaço sem fim, essa curva no tempo tão imensamente esvoaçante. Todas as partes do corpo parecem sentir a Saudade. Procuramos novas do nosso amigo que é outro tempo e outra luz. Saudade, sempre com o seu manto longo, arrastando os nossos seres, olhando sempre mais além, sem que  consigamos adivinhar-lhe o rosto. Só a sentimos, agitada, tomando-nos, elevando-nos, e largando-nos com suavidade neste mundo frio.  A tristeza cai como uma noite imprevista. Somos selos e fomos selados pela Saudade. Não há segredo mais bem guardado e mais exposto do que o de a sentir em volta de nós, respirando, sorrindo, chamando. Se a sentimos viva é diáfana, se a sentimos morrer, é este frio do mundo tomando o seu lugar. Não alcançamos o seu percurso pelas estrelas neste mar de cristalinas rochas. Que lugar é esse, nela, no seu seu seio, bem no centro dela, animando-a para que nos anime e ela animando-nos para que não a esqueçamos. Que lugar este, para além dos limites do mundo agreste e frio, onde nos encanta com o seu mistério feito do mistério de todas as coisas? Que centro de nós atinge, que centro nela nos acolhe? Vem vê-la com o seu longo manto, com os seus cabelos em cascata e segue-a com o olhar em direcção ao futuro que é só dela. Adivinha-lhe os gestos e nos sonhos coloca-lhe uma grinalda de flores e ouro. E nos sonhos dança com ela, pela noite triste e imprevisível, até ser dia. Até ser o Dia. Faz tudo isto enquanto percorres essa noite fria e cala essa viagem e oculta essa dança ainda que o teu coração transborde dela, e seja ferida aberta e que não seja outra coisa.  Não durmas, dança e transforma o teu silêncio num brilho no olhar. Por ela, estás desperto.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

A lista de supermercado



O povo diz que é ter a cabeça na lua, mas não concordo. É ter a cabeça no sol. Há qualquer coisa de anómalo quando se passeia pelo supermercado com uma lista de compras numa mão e um carrinho para as levar no outro e, em simultâneo, pensar nos mistérios da vida, querer entendê-los, ali mesmo, por entre prateleiras com manteigas e peças de carne penduradas à espera de serem esquartejadas para um jantar qualquer. O pensamento divide-se entre o frigorífico e as estrelas com a mesma compenetração. Ainda muito cedo deu-se uma percepção da estranheza de se estar vivo à mesa de um restaurante e, desde aí, o quotidiano não mais foi comum, perdeu a inocência de ser apenas quotidiano e ganhou tonalidades que lhe são estranhas, como se houvesse uma invasão de extraterrestres que não permitisse mais a vida normal e o diálogo passasse a ser com outras vozes para além da senhora brasileira da caixa que sorri com gentileza e estende o talão escrito com palavras e números como se essa fosse uma proclamação firmemente impressa de uma verdade. Navegamos a olhar o sol e a nossa pele reflecte a terra que nos rodeia. Deixamo-nos embutir pela demanda visionária e pelo sonho e concluímos filosoficamente uma refeição quando contemplamos o pôr-do-sol, o grande acto mágico da natureza. Somos avatares de nós mesmos, como sombras triplas: a que somos, a que o sol projecta nesta areia fina e a outra que a terra faz de nós em direcção ao sol. Triplo eclipse onde algures, num qualquer ponto da geometria descritiva reside um quarto rosto que não vemos e que não se eclipsa. Tens a cabeça no sol, vives na lua e resides na terra. 


 

domingo, 17 de setembro de 2023

Diogo Vaz Pinto


https://sol.sapo.pt/2023/08/22/um-inedito-de-fernando-pessoa-num-tempo-em-que-seria-de-se-exigir-pao-para-os-vivos/ 

É absolutamente compreensível que haja um sentimento de indignação face ao problema do exercício de aproveitamento que se tem feito tanto com a obra como com a figura de Fernando Pessoa, no entanto, tanto a forma como o faz como as razões que Diogo Vaz Pinto apresenta para essa indignação são, no mínimo, bizarras. Parece o autor ter transbordado após a gota de água que foi a publicação numa revista de mais uns versos do Poeta, tornando-se esse acontecimento em notícia no jornal Observador e, enraivecido, coloca as mãos no teclado, sob o domínio de um espírito juvenil, revolucionário e vingativo e escreve um texto no jornal Sol, em pleno mês de Agosto, numa plena manhã no qual revela a sua fúria, perdendo as estribeiras e confundido tudo, a ver:

 

A notícia publicada pelo Observador sobre a publicação de um inédito do Poeta supracitado numa revista literária é referida como “espécie de publicidade” a essa mesma revista. Bem, se os jornais portugueses tivessem uma secção dedicada à publicitação gratuita de notícias sobre revistas literárias isso queria dizer que haveria potenciais leitores de revistas literárias e potenciais leitores de livros. Que todos os males fossem estes.

Em seguida, Diogo Vaz Pinto cita Cesariny, o mesmo que escreveu “Tanto Pessoa já enjoa” e que, embora este se queixe da falta de espaço para a diversidade, sempre teve o seu lugar assegurado no salão do meio literário entrando pela porta, tantas vezes facilitista, do surrealismo. Parece-nos sim, que esse autor sofria de uma certa inquietação própria dos talentosos inseguros. Indica o escrevinhador do artigo, após este breve apontamento sobre a indignação de Cesariny, e esta parte é muito importante como veremos, que Zenith aponta para o facto de estes versos de Pessoa em causa,  na sua forma, corresponderem a um determinado formato poético vindo da Pérsia não sem antes ser esta pequena composição de Fernando Pessoa apelidada pelo cronista de Verão como “breve e banal”, adiantando que o Observador nem reproduz nem se pronuncia sobre os versos em questão talvez para não estragar a surpresa comparando esta atitude às séries de streaming que alimentam espectadores passivos. Talvez tenha alguma razão, mas não parece ser grave a existência de uma notícia sobre uma publicação de uma Revista. E eis, então, que o especialista em poesia lança uma lança.... em África quando nos remete para um poema (?) escrito pelo mexicano Fabio Morábito e que segundo o seu juízo literário bem poderia passar como tendo sido escrito por Pessoa através de um dos seus heterónimos e passamos a citar o brilhante “poema”: “Pedem-me sempre poemas inéditos./ Ninguém lê poesia/ mas pedem-me poemas inéditos./ Para a revista, o jornal, a performance,/o encontro, a homenagem, o sarau:/ um poema, por favor, mas inédito./Como se soubessem de cor o que escrevi./ Como se estivessem cheios da minha poesia/ e precisassem agora de algo inédito./ A poesia é sempre inédita, disse o poeta no poema,/ mas eles ignoram-no porque não lêem poesia,/ só pedem poemas inéditos.” Gostaríamos de afirmar que este poema de Fabio Morábito é prosa e não poesia e nem sequer tem grande qualidade. E gostaríamos de perguntar a Diogo Vaz Pinto qual seria o heterónimo de Pessoa de sua escolha para o contemplar com esta prosa que de verso só tem a forma? Não encontramos nenhum, nem sequer aquele que à primeira vista seria o mais adaptado: Álvaro de Campos, fervente em pouca água, mas que nos leva na sua vertigem em espirais até ao céu. Poder-se-ia dar o caso de encontrar tal mexicano por entre os  semi-heterónimos e figuras criadas pelo poeta aos quais se pudessem atribuir estas linhas, mas o mesmo se passaria com as quadras de Aleixo ou alguns versos de Sophia de Mello Breyner. A Grandeza de Pessoa é evidente e variada. E se “A poesia é sempre inédita”, não percebemos a indignação à volta destas linhas de Pessoa. Perante os versos mexicanos, os versos portugueses do nosso grande poeta, são, segundo Diogo Vaz Pinto, uma desilusão e prossegue numa sumptuosa descrição do comportamento que se tem face aos grandes mestres da poesia para que o efeito teatral de apresentação de uma nova “tortura diária do lugar-comum (...) nos provoque agora a sensação de uma epifania qualquer”. Não contente com isso, ainda nos fala da poesia de Pessoa como utilizando recorrentemente a organização de “um percurso recomplicado por meio de uma  série de abstracções, produzindo um efeito de profundidade e uma espécie de melodia e sageza no tom, sem chegar a dizer nada, apenas glosando um mote há muito empalhado... " sendo isto  "...um dos efeitos retóricos mais comuns na mais estafada das poesias. O problema só se põe devido à monumentalização da Obra e da própria figura de Fernando Pessoa”. É, natural, dizemos, nós, pois a obra de Fernando Pessoa é monumental e a sua figura, impõe respeito: sacrificar a vida pela obra é, de facto, obra! Quanto à técnica que o cronista tenta descrever de forma rebuscada e que se resumia apenas em psíquico-labiríntica (muito à imagem do próprio cérebro, aliás) e ao facto de referir a sua banalidade e a sua falta de conteúdo, diremos apenas que é a opinião do cronista, em dias de hoje, diluída em tantas outras neste imenso turbilhão de colecções de 15 minutos de opinião.

Indigna-se também, e une-se a Alexandre O'Neill nessa indignação, com o culto ao Poeta, mais prolixo e duradouro do que o próprio acto de ler os seus poemas, cita-o nessa união, mas cujo tom é mais o de um lamento sobre esse culto do que propriamente a crítica a Pessoa que é inexistente nessa citação. Que se diferencie, por favor, o culto ao poeta da qualidade da poesia, algo que Diogo Vaz Pinto não faz, utilizando o culto para diminuir a obra do cultuado, chegando mesmo a afirmar algo, isso sim, anedótico, que o culto “torna impossível ler e avaliar com algum critério a infinidade de textos que escreveu, tantos tão desnecessários que deveria haver mais cuidado sempre que se cede à tentação de dar mais outro à estampa”. Contemplamos assim, nestas palavras, aquela pena antiquíssima, não tanto como a noite, mas, ainda assim, com considerável idade, que escreveu o Índex e mais tarde, fénix renascida, passou pelas mãos da Censura, apenas pintando os “papéis com tinta” com aquilo que era conveniente na altura. Estas novas gerações parecem ter nascido com um ditador sempre pronto a saltar... Enfim, alonga-se mais ainda, Diogo Vaz Pinto, como pioneiro na denúncia da bastardia de Pessoa, evoca Negreiros cuja contemporaneidade a Pessoa lhe permitiu a rebeldia de abrir os reposteiros de veludo pesado e vitoriano e arejar a casa da poesia. Se Negreiros abriu um reposteiro, Pessoa abriu o outro e a vanguarda entrou pelo avarandado em forma de raio de luz iluminando a Tradição... que se encontrava calmamente sentada a beber chá e a fazer acontecer tudo à sua volta,  mas isto são outros tantos que Diogo Vaz Pinto desconhece, e, ao evocar Negreiros, alonga-se na sua tontura “despessoada” (todos aqueles que têm falta de Pessoa) e afirma que os gestos de reconhecimento tapam a obra dos poetas e também as vergonhas de um país (para isso cita O´Neill) que não soube reconhecer o poeta enquanto era vivo e toma nos braços Pessoa como vítima da ferocidade com que alguns se açambarcam com “bolsas, viagens, congressos...”. O´Neill indigna-se, e bem, com os abutres, não com o poeta. Mas, despessoado como é, Diogo Vaz Pinto, aponta imediatamente a “esterilidade dos inéditos que ainda vão surgindo” e a “dificuldade em se estabelecer uma linha entre o que é dele ou não (no facebook isso acontece com todos, dizemos nós), aquilo que é material novo (estamos cá para investigar, dizemos nós), velho (velhos são todos os poemas e escritos, já têm uns aninhos, observado por nós), requentado, ou mais algum borborismo sem o menor interesse...” para o cronista, claro, afirmado por nós. Quanto ao requentado, fez-nos lembrar um professor universitário que tivemos que se mostrou muito irritado por andarmos a ler Mircea Eliade, acusando-o de estar ultrapassado (a velha mania compulsiva  das ciências antropológicas de se pensarem como ciências exactas), levando-nos a perguntar-lhe se Platão também estaria ultrapassado. Poesia requentada, por vezes, é como o vinho do Porto... em repouso em velhas arcas de madeira, mais tarde descoberta como rubis no fundo da terra. E conclui com Eugénio de Andrade que se mostra incomodado com a incapacidade de Pessoa ser ele próprio. É isso que lhe dá a graça, dizemos nós e ainda andamos à procura de alguém que seja igual a si próprio.

Por fim, a grande mágoa revela-se, aberta em penas de pavão: “... quem paga o preço são os poetas vivos, e sobretudo os jovens, que têm de contender e reger-se por esta forma de astrologia e de veneração do brilho cada vez mais distante de astros mortos.” Espantoso! Enterremos definitivamente os mortos depois de os matarmos outra vez, retiremos-lhes o brilho para que os jovens possam tomar o seu lugar porque este é um mundo cão, competitivo, destronador de antigos e distantes astros, um mundo que se quer novo, asséptico e sem ponta de História por onde se lhe pegue. Afirma o cronista solar, encadeador de outros sóis, em pleno Agosto, numa linda manhã de Verão, que nos deixamos influenciar pelos estrangeiros. Deduz-se que são muitos os estrangeiros que apreciam a obra de Pessoa e que só por causa disso o veneramos, porque somos naturalmente imbecis, se pensássemos pela nossa cabeça nunca veneraríamos Pessoa. Temos pois, a vanguarda das vanguardas, o paradoxo nacional e juvenil contemporâneo na sua glória: gostar de nós é não gostar de um dos nossos maiores poetas! Espantoso. É a nova geração em pleno, de boné poético colocado ao contrário na cabeça, com gestos de Rap e danças amacacadas. Pessoa? Esse “grafomaníaco que era menos de inventar do que se fazer passar, traficar, falsificações e cópias, redundâncias ao infinito...” Yah! Este Yah é nosso porque nos encontramos a ler Rap.

Ora, segundo este cantor de novos poetas a haver, o poema de Luís Filipe Parrado publicado na referida revista e que se encontra à esquerda (a esquerda não deve ser por acaso) das linhas de Pessoa é muito mais curioso e versa assim: “Nos seus poemas/ os poetas dizem muitas vezes/ que o mais importante,/ o que marca uma verdadeira diferença/entre o antes e o depois/ é o apelo da beleza e do terror,/ o ímpeto de rasgar o véu da carne/para chegar ao osso./Aí, onde dói./ Aí, onde o excesso de luz cega./ é o que dizem os poetas./ muitas vezes. /Nos seus poemas./ Mas, para além de Homero/ e de Borges, diz-me tu, / que outros poetas cegos conheces?”. Temos más notícias, isto não é poesia, de poesia, e mais uma vez, só tem a forma. O urinol de Duchamp já entrou na meia idade e, desde ele, a arte é arte quando, das duas uma, ou o autor diz que é arte ou quando está presente num espaço de exibição de arte e é por isso que as artes plásticas estão como estão, uma desgraça. O mesmo se passa aqui, não é por ter a forma de um poema que é poema, mas a modernidade diz que é. A antiguidade diz que não. E andamos nisto. Estou em crer que Diogo Vaz Pinto aprecia muito prosa, pela amostra dos dois poemas que escolhe transcrever, beneficiados com a sua crítica benigna, o mexicano e este português. Em comum: não são poesia. Como já estava muito à esquerda e, não vá o diabo tecê-las, conclui a sua opinião com um exemplo do que se passou na época de Estaline, quando uma geração de poetas foi “delapidada” por causa deste hábito irresistível de venerar os mortos. Assim, os pratos da balança ficam equilibrados. Os Russos também fizeram o mesmo. Nada como os estrangeiros para nos apoiarem... e, mesmo no fim, deixa-nos um apelo escrito pelo russo Maiakovski que acaba assim: ”Abandonem de uma vez por todas a veneração por meio de jubileus, centenários, a homenagem por meio de edições póstumas. Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os Vivos!”. Pois, o Rei morreu, viva o Rei! Mas isso é numa monarquia... com Reis (um pouco diferente de meros presidentes, porque quanto há lugar para todos nos retratos reais e na memória do povo, algo que a Democracia actual desconhece). Viva a Revolução!

Então, vamos dar uma olhadela a essa “decepção” que são os versos de Pessoa e que incomodou tanto Vaz Pinto, rezam assim:

 

A ave canta livre onde está presa.

O servo dorme e o sonho lhe é surpresa,

Liberta-te, mas nega a liberdade.

Poder e não querer, eis a grandeza.

 

Não é necessário estudar muito Fernando Pessoa para se compreender que, mais uma vez, se trata de um poema iniciático. Vivemos, cantando presos na nossa prisão, que é corpo e terra, somos servos com a capacidade de sonhar e o sonho pode ser uma porta para a Libertação (vide o que é a libertação em termos iniciáticos), atingida a liberdade esta só é total se a nossa vontade prevalecer para além dessa mesma liberdade. Curiosa é a utilização da ave e a tal forma em estilo persa, sabendo-se de cor a importância das aves nessa cultura arcaica à qual Camões não foi indiferente e também curioso é o papel dos sonhos na Iniciação tão bem estudado por Henri Corbin. E diríamos que este é apenas o primeiro véu a ser retirado destes versos. A Grandeza reside na Vontade e a liberdade, abaixo dela nunca se perde. A Vontade é condição sin qua non (as minhas desculpas a Diogo Vaz Pinto pelo latim que é antigo) não há iniciação. A iniciação é grandeza. Vai um pouco na esteira daquilo que é dito por alguns budistas “Se vires Buda no caminho, mata-o!”. O mesmo princípio, Tradicional. A Iniciação é, aliás, Tradição e, das duas uma, ou andamos nesta terra para sermos jovens e experimentalistas até aos noventa anos de idade ou, a determinada altura do percurso de vida, tal como aconteceu com Almada Negreiros, damo-nos conta de que há mais. Este poema diz-nos que há mais. Eis a grande reviravolta na vida, maior e com mais grandeza do que aquela que há em qualquer Revolução. Revolucionários há muitos. Iniciados, poucos. 


sábado, 16 de setembro de 2023

O lobo mau


 Cada vez mais, está o mundo povoado de pequenas guerrilhas relativamente às quais o grande declínio da humanidade é perfeitamente indiferente. É por isso, Professor Marcelo, que é cada vez mais difícil governar. As marchas de luta são dispersas e extremamente cirúrgicas, uns lutam por melhores salários, outros por casas, outros por médicos, outros pelo clima, outros por outro treinador de futebol e os governantes só tem duas opções: ou ficam indiferentes ou, caso as eleições estejam próximas e em jogo, lá vão, quais bombeiros demasiado gordos para andar habilmente, tentar apagar pequenos fogos a troco de alguns votos. É assim aqui, é assim em todo lado onde haja democracias. O grande papão que é o declínio da própria espécie nem sequer é lembrado ou questionado acerca da sua existência. Torna-se, portanto, um pouco doloroso acordar todas as manhãs pois metade do corpo agradece por estar vivo (o lado egoísta) e a outra metade (o lado altruísta) olha em volta, assusta-se, leva as mãos ao rosto e diz: “Oh, não!” e o primeiro instinto é o de voltar a adormecer. E, durante o resto do do dia, andamos coxos, a não ser que se encarem as coisas como sendo perfeitamente normais dentro de um contexto de queda geral. Quando vamos a cair de uma grande altura, parte de nós sabe que ainda está vivo, e parte de nós adivinha o destino final. Sabendo isto, até se pode sorrir e dizer o quão são detestados os seres humanos no estado em que se encontram. Depois? Depois é só viver e fingir que se obedece aos mega-estímulos que nos rodeiam: ser educado, atencioso, acenar que sim, em concordância absoluta quando se fala com alguém que se encontre numa qualquer guerrilha, praticar algumas boas acções que ficam connosco, sem publicidade, não votar de uma ou de outra forma:  ou nem sequer pôr os pés nas urnas ou aproveitar o domingo soalheiro para um passeio, passar pela urna e escrever algo como: não me apetece votar. Estivemos lá, mas não estivemos. O alheamento profundo é, nesta época histórica, necessário e conveniente se quisermos viver com sanidade mental. O estado morto-vivo é a grande glória da sobrevivência é, aliás, o estado normal de qualquer ser vivo que esteja em queda livre: ainda não morreu, mas está lá perto. Chamo a isto o alheamento superior, depois há o dos loucos que ou caem na depressão e drogas concomitantes, ou no seio de uma qualquer guerrilha ou ainda na alegria genuína (ou loucos são genuínos) de se pensar que vivemos no melhor dos mundos, na melhor das épocas e que no tempo da outra senhora e do outro senhor era bem pior porque não tínhamos nem água em casa, quanto mais água quente! São os chamados loucos por conforto e estão habilitados a fazer publicidade à Conforama. É isto que se arranja neste momento. Se se observar bem, aqueles que nos rodeiam estão sempre num ou noutro espectro e até podem saltitar, da depressão à guerrilha, da guerrilha ao conforto, normalmente até é este o percurso, mas também há casos em que são capazes de viver em simultâneo em dois ou três planos desses tipos de alheamentos, são os bi-polares e os tri-polares.  O alheamento superior, por seu lado, pode descer ao nível de qualquer outro alheamento que lhe esteja abaixo, por quanto tempo for necessário, isto se estiver a morrer de tédio. O tédio é o grande problema do alheamento superior. Convenhamos, é superior, mas não é perfeito. Tem as suas coisas, os seus humores e pode ser impaciente por não ver melhorias em nada. Também tudo isto é normal e faz parte do declínio. Qualquer alheamento, por muito superior que seja não escapa à queda, a essa grande onda, a essa grande boca do lobo mau, escancarada com todos nós a escorregar pela sua goela, em queda livre. E Jonas a rir-se, cá fora, à espera de alguém que saia para lhe dar um grande abraço.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

O estranho caso da filosofia expectante


 Dei-me conta do estranho caso da filosofia expectante quando subi ao monte e ali fiquei a viver. Sob aquele ângulo, era possível ver as coisas de outra maneira. Digamos que a filosofia nunca foi uma mulher jovial, mas, contemplada dali, parecia ainda mais velha. Não uma velha qualquer, mas daquelas que nunca casaram ou enviuvaram muito cedo e muito cedo também se deram contam de que estavam no mundo um pouco solitárias, por opção ou por destino. Como elas, a filosofia tinha duas tendências, ou a de se sentar nos cafés ou a de ficar em casa, isolada dos seus semelhantes e rodeada pelas suas dezenas de gatos, ou seja, ou tinha pensamentos que trocava e divulgava através de seres humanos que se pré-dispunham a uma convivência social e a falar sobretudo uns para os outros, ou encarnava em filósofos solitários, rodeados pelas suas dezenas de pensamentos, num labirinto de cabeças e caudas onde vivia feliz, mas alheada do contacto social. Nunca foi jovem nem jovial, a filosofia e sempre foi altamente desconsiderada sempre que desaparecia. O que mais me espanta, vista daqui, é que, embora não sendo jovial, ela conserva uma memória perdida dessa juventude traduzida na capacidade de ser expectante. É isso, aliás que a anima, senão encarnaria em gente vulgar, a duas dimensões e só se preocuparia com a lista para o supermercado. O que espera, então a fiosofia? encontrar a sabedoria. É assim que se auto-define e o filósofo é uma espécie de amante cortês que deseja “tornar-se no objeto amado”. Para isso, anula-se um pouco (nunca demais) e deixa que essa filosofia, envelhecida pelo passar do tempo, tome conta dele. Com ela vem em primeiro lugar, essa expectativa, essa sim, sempre jovem e fresca, de encontrar a virtude da sapiência. Há pessoas que conseguem estar assim a maior parte da vida, porque aquilo que têm em comum com a filosofia é exatamente essa capacidade de criar expectativas. A fiosofia e os filósofos foram feitos uns para os outros. Estão bem uns para os outros, como se costuma dizer, quando as coisas não correm muito bem. E com a fiosofia as coisas nunca correm muito bem. Podem parecer que correm, quando saem em formato de livro e brilham ainda provindas do calor da forja, ou podem parecer correr bem, nas trocas de ideias entre filósofos sentados na mesa da santa tertúlia (esta é uma santa muito especial para os filósofos), mas depressa se vê que há algo de artificial nas suas atitudes. Como algumas velhas, sentadas à mesa do café ou encerradas na rotina caseira, repete-se muito. Embora aquilo que a anime seja a expetativa, a noção de devir, esbate-se a pouco e pouco, com o passar dos anos. É por isso que a filosofia é velha e não jovem. Os jovens não tem expectativas, movem-se pelo devir fora com a certeza de que vão encontrar alguma coisa. A filosofia, sofre de alguma insegurança e, por isso, ou precisa dos outros na sua mesa de café ou precisa dos gatos espalhados pela sala, pelo quintal e pelos telhadas. Não sabe estar só. O lugar da solidão não é o da filosofia, por mais que os filósofos se digam incompreendidos ou desacompanhados, estão sempre acompanhados ou pelos seus pensamentos ou pelos pensamentos dos outros. São velhas carentes. A sabedoria, por seu lado, é tão jovial que se entretém sozinha sem necessitar de ninguém e está embutida no devir. Aquilo que os filósofos mais almejam é exactamente aquilo que não são. E pressentem, nervosos, que se encontrarem alguma vez a sabedoria ficarão inevitavelmente condenados à morte. É por isso, que, daqui do alto do monte contemplo com estranheza estes estranhos casos de filosofia expectante e, sobretudo, a sua longevidade. É admirável conseguir passar tantos anos sem fazer coisa nenhuma a não ser pensar para si própria ou para os outros. É do alto dos montes que se tem uma melhor visão sobre o que se passa lá em baixo. Felizmente, Camões também escreveu: “Portugal é um outeiro”, mas Camões era um poeta, não o filósofo perdedor de tempo. E, com os poetas, a sabedoria mantém excelentes relações ao passo que não conhece nenhum filósofo, nem sequer para trocar algumas cartas. Algumas dessas cartas são muito conhecidas. Até pelo povo miúdo que parece viver sempre apenas entre duas dimensões. Mas não vive. Vive apenas alheado da filosofia porque isso é coisa para doutores. Mas canta por esses campos, a poesia viva que brota do seu coração. E canta bem, como os pássaros. É por isso que Portugal é uma país de poetas, não de filósofos e se algum português é filósofo é porque meteu a pata na poça. Às vezes fica tão lamacenta que se torna areia movediça, e de lá não sai. Aliás, esse é o problema da filosofia: não tem saída.

domingo, 10 de setembro de 2023

A Beleza


Os cavalos avançam naquela praia. A forma como correm é em si mesma uma mensagem de liberdade. As crinas ao vento e aquele focinho comprido que, de vez em quando, inclinam para baixo numa expressão mista, entre a submissão e a rebeldia. Uma corrida desses cavalos é poesia pura, neles encontramos os nossos próprios movimentos, mais até do que nos pássaros, estes mais constantes. Mas os cavalos assim, velozes e com movimentos súbitos parecem traduzir a nossa instabilidade, a nossa inquietação e o nosso profundo prazer na liberdade. E há tanta beleza neste mundo que conhecemos por tão breves anos em absoluta consciência. Devia haver uma educação pelo silêncio e pela contemplação, mais até do que por aquelas modas que há hoje de colocar as crianças a meditar. O silêncio e a contemplação são muito mais acessíveis do que uma meditação herdeira de uma técnica ascética e complexa. Uma educação em que se dê a mão em silêncio só interrompido para chamar a atenção para as coisas lindas deste mundo. Uma paragem do movimento da alma, em que esta se une à paisagem estática e eterna. Pequenos gestos são maiores do que grandes teorias. Nem nos damos conta da importância deles e ainda bem. É por isso que, por vezes, nos lembram de qualquer coisa de que não nos lembramos. Podem ser as coisas mais inocentes e pequenas que fizemos naturalmente, mas que marcaram alguém que nos lembra delas. São paragens profundas no movimento da alma onde esta mergulha e daí retira uma verdade qualquer, daquelas vívidas, inseparáveis do ser. Lembro-me de passear por um centro comercial com Dalila Pereira da Costa e da sua paragem em frente a uma montra com serviços de porcelana. Parou, olhando para o padrão dos pratos e das chávenas como se olhasse para um tesouro. “Que lindo!”, disse, mas com tal alegria e maravilhamento que não mais me esqueci do serviço de mesa. A educação pelo belo parece-me mais importante do que a educação pela revolução. O belo não necessita de rebeldia, apenas de rendição. A rebeldia vem mais tarde, contra o inestético. Uma sociedade que não reconheça o belo está condenada a desaparecer e a nem sequer ter um vislumbre da sua perpetuidade. Desaparece como um mau sonho que se quer esquecer. A beleza é uma exteriorização da alegria do mundo. Não há volta a dar quanto a isto. Continuamos a admirar a escultura antiga, a arquitectura antiga e os ecos que nos deixam de uma outra época para onde viajamos sem querer, neste crepúsculo que nos rodeia. A beleza estende-se a tudo, tem uma capacidade enorme de ser a grande viajante do cosmos, de tocar com os seus dedos os recantos mais escondidos, de embalar as almas mais atormentadas. É a grande senhora do universo. A grande educadora, a grande conservadora e inovadora. A sua dança é maior do que a de Kali. É feita do ouro mais incorruptível e do cristal mais puro. Sabendo isto, as coisas são mais fáceis e as casas exalam a paz que as almas têm. E então, e só então, o espírito desce.


quarta-feira, 6 de setembro de 2023

sábado, 2 de setembro de 2023

A distopia da disruptividade



Depois de apresentar a sua pintura que consistia numa cara que ocupava toda a tela, feita com pinceladas irregulares, com um olho de cada cor e uns traços que esquartejavam a cara em locais perfeitamente aleatórios,  a pintora afirmou que seguia o seu próprio caminho, que adorava quebrar as regras e construir novas ideias. Em suma, o lugar comum de todos os que desejam ser artistas, mas não o são porque aquele dom estranho, que nada procura e tudo inventa, não lhes foi dado, para além de que um artista não anda à procura de novas ideias, isso andam os cientistas quando querem resolver alguma questão mais ou menos particular do universo que nos acompanha e que já tem em si todas as ideias de que é capaz. Mas insiste-se em ser-se artista porque se pode. E poder é querer e querer é poder. De maneira que a caratonha mal pintada, inestética e tosca lá foi vendida por alguns trocos a quem reconheceu na caratonha a sua própria fealdade de espírito. A arte, ou é assim, ou é interventiva e sem graça nenhuma. Anda o neo-Bordalo nessa vida de intervenção, de ativismo, seja contra as Jornadas papais ou contra as Touradas animais (que as humanas não interessam para nada), e eis a declaração, o protesto, a chamada de atenção que poderia ser feita de qualquer outra maneira: tanto dá colocar uma passadeira no chão com notas de euros, como passear nu no Rossio com um cartaz a dizer que o Papa vai nu por ser humilde e desapegado, o resultado é o mesmo: nulo. Todos juntos, estes artistas, embora se pensem únicos e muito originais, fazem parte um um movimento global, ao qual se poderia dar o nome de “distopia da disruptividade”, todos querem quebrar regras, colocar as “coisas” em “questão”, chamar a atenção para aquilo a que todos acham injusto, ter voz ativa e política nos centros de decisão, bater-se por uma causa, roçando, com mais ou menos vigor, as chamadas ideologias, digo mais ou menos, porque querem ter novas ideias embora nunca se consigam distanciar da utopia ideológica por completo. São distópicos e utópicos em simultâneo. Tanto a palavra distopia como a palavra disruptividade, estão na moda e são, de facto, acção concreta e não ideia fechada em livros poeirentos por encontrar numa qualquer biblioteca. São, estes artistas, verdadeiros ditadores, apoiados no poder da vontade e na vontade de poder.

Aquelas séries inglesas que se passam nas grandes propriedades, com a classe dos serventes a viver em baixo e a classe aristocrática a viver em cima são autenticas aberrações para os distópicos disruptivos. E se alguém conseguir ser a casa toda, e tê-la dentro de si, isso ainda é pior. Alguém que tenha a casa toda. passa com o pano do pó pelas madeiras retorcidas por aquele que aprendeu com outro, mais velho, o ofício de esculpir a madeira, trata dos tecidos com toda a atenção e vai polir as pratas até que todo o salão resplandeça nelas, isto num minuto, porque no outro, já fala com os agricultores que tem sobre a sua alçada nos seus domínios, resolve crises e participa nos partos dos bezerros, antes de se vestir, com a ajuda do criado de quarto, para o jantar, normal e de família, jantar esse que foi confeccionado por si com receitas vindas do fundo dos tempos acrescentadas com novidades improváveis dos maiores chefes da cidades das luzes. Alguém que tenha a casa toda dentro de si, a qualquer momento, a qualquer hora, terrenos limítrofes inclusive, é o verdadeiro escândalo silencioso e solitário neste mundo de analfabetos em arte. A casa toda dentro de si, com os retratos ao longo da escadaria, os gessos trabalhados dos tectos, as flores cuidadosamente escolhidas e dispostas em grandes jarrões tornando a casa num jardim invisível é absolutamente incompreensível para estes artistas modernos poderosos que não conhecem o espaço de liberdade numa casa toda. Possuem apenas uma fração da realidade e, cegos que são, nessa fracção intuem toda a realidade. Possuem todos a mesma linguagem, os mesmos argumentos, a mesma vontade de destruição dos velhos valores que desconhecem por completo e têm por isso um inimigo invisível, mas que os leva a estarem todos no mesmo barco nessa luta distópica e disruptiva em nome de uma utopia indefinida e maior. O belo não tem lugar, o equilíbrio não tem lugar, a história não tem lugar, o ambiente não tem lugar, a harmonia é o maior pavor, invisível, porque não a veem, mas suficientemente pressentida para se armarem cavaleiros inovadores e lutarem contra ela. O grande susto deles, é o belo. Torcem o nariz quando o veem e colocam-no num silêncio distanciado, numa urna parada no tempo, jamais desenterrada porque se fosse, isso seria largar os fantasmas malditos de um tempo sem ideologias nem ideias novas. Nascer com a casa toda dentro de si e percorrer os seus andares, desde a cave mais funda onde o vinho descansa até ao sótão mais alto onde as memórias se acumulam é estar demasiado perto de toda a realidade. E estes novos artistas, que não o são, detestam a realidade, debatem-se contra ela com todas as suas forças e nem sequer são vanguardistas porque se repetem uns aos outros como gritos de um bando de gralhas que passam e varrem tudo à sua passagem. Ficamos dentro desta solidão desta casa cheia de tudo, onde, para lá da sua extensão se ergue a grande ditadura. Mas a nossa casa é cheia de tesouros, daqueles sem fim, que se desdobram e se erguem à nossa passagem, e se revelam sempre novos, dependendo da luz que é sempre outra que não a de ontem. A perpétua novidade do antigo que pisca os olhos, enamorada, à eternidade. Maggie Smith, numa dessas séries inglesas, pergunta, espantada: “O que é um fim-de-semana?”, isto porque nunca tinha trabalhado. Os criados perguntariam o mesmo, porque trabalhavam todos os dias. Ter a casa toda dentro de nós, é isto. O fim de semana disruptivo não existe. E a distopia não é necessária a quem vive na utopia. A casa é o espaço da verdadeira liberdade, longe da escravatura de se querer ser qualquer coisa, ou de se querer ter poder para o que seja e o caminho para ela é só um: nascer já assim. 

                                                           



 

sexta-feira, 14 de julho de 2023

O Tempo


 

Bem sabemos que as Idades do mundo, quanto à divisão dos seus ciclos e ao número de anos, têm várias leituras, no entanto, em termos gerais e abstratos, podemos conceber a Idade do Ouro com a duração da totalidade do perímetro de uma circunferência, a Idade da Prata, com a duração do perímetro de três quartos de circunferência, a do Bronze, com a de meio perímetro e a do Ferro, com um quarto dele. Chego a pensar que se o tempo, assim apresentado, é um grande ciclo (evidentemente integrado em ciclos ainda maiores), nós humanos, como microcosmos, teremos essas Idades em nós. E, ainda mais complexo do que isto, sabendo que o tempo não existe, é mera percepção, então, todas essas Idades vivem em simultâneo dentro de nós, o que explicaria algumas angústias e depressões cuja causa é a incapacidade de percepção vívida destas coisas. O adormecimento para esta possibilidade é uma das características da Idade do Ferro. Parece haver uma espécie de determinismo difícil de quebrar. A dialética, quando não mesmo oposição, entre o destino e a vontade, fica sem efeito se vistas as coisas assim, ambos se cumprem alegremente, o destino, como micro-realidade, a vontade como macro-realidade. 

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Perguntas bem

 


Perguntas o que é isso de linhagens espirituais invisíveis, e perguntas com justiça, mas a única resposta está exactamente no facto de haver linhagens espirituais invisíveis. São linhagens porque abarcam e nas quais embarcam pessoas com uma espécie de raiz comum, são invisíveis porque ninguém as vê, quer nos propósitos, quer nos meios de actuação, quer nos resultados. Poderia acrescentar que há também uma espécie de eternidade que as acompanha, não só porque atravessam as Eras como porque se estendem a diversos reinos ou planos. A Tradição à qual pertencem obriga a que quem a elas pertence, mais tarde ou mais cedo, as encontre e reconheça a sua linguagem invisível. É tudo tão invisível que não crês, mas vê bem, elas não são uma questão de crença, são uma questão de Princípio, desse modo, a transparência é a cor do manto que as cobre e o reconhecimento dos resultados situa-se na esfera do sorriso, não noutra. 

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Olhem bem

 


É verdade que temos mais conforto, televisores, telemóveis, computadores, etc e tal. Mas falta-nos o encanto e o encantamento. Temos constantemente um ambiente hostil ou à beira da hostilidade. A maioria de nós vive com medo ou camufla-o com uma facilmente detectável falsa felicidade. Tive um vislumbre de pessoas Vivas há uns anos, ao ponto de dizer (por sentir a distância entre os zombies e eles), que via "pessoas vivas". Esta forma de vida é como aquele filme de terror que mostra um nevoeiro denso e perigoso a avançar lenta, mas implacavelmente. A quem me disser que vivemos bem, que estamos muito melhor, que todos somos mais felizes,  ergo a minha taça de memórias que nunca poderão beber, e bebo à Vida escondida enquanto os incrédulos se deixam cair no abismo. Nada faz tremer essa taça, nada a destrói, ela é feita do sangue e das lágrimas dos Vivos. Guardo-a e bebo-a a sós com Deus. O estado de alma geral é lamentável. O Mistério e o Segredo Dele são a única coisa válida no meio deste nevoeiro mortal. Tornaram-se sombras de humanos, mas o meu reino é feito de Luz. Vario entre a compaixão e o desprezo e nenhum de vós me faz variar destes sentimentos que nutro pela humanidade actual. Sei que muitos não têm culpa e que muitos deviam ter a vergonha estampada na cara. Olhem bem para o que se passa. Olhem bem. 

terça-feira, 4 de julho de 2023

A ressaca selectiva

 


Percebi, pelas notícias, que andam pegados por causa do memorial das vítimas da escravatura. É natural porque o fundo não é totalmente verdadeiro. Para fazer memoriais não se deve ser selectivo. Não se deve esquecer a escravatura "made in África", ou aquela feita pelos índios, nas américas, aqueloutra feita na Índia, onde os escravos intocáveis nem vislumbravam a liberdade, as histórias caladas na China, os mártires da Rússia do Czar e do comunistlmo, os da América Latina comprados pelos cartéis, os escravos do feudalismo, os escravos das religiões, os escravos da família, a escravatura dos animais e muitos mais que a nau Catrineta teria para contar. O memorial do convento da desgraça foi sempre a grilheta da humanidade arrastada pela História. Tanto quanto sabemos as vítimas são vítimas, também elas de selecção, sem que possam apontar os vizinhos resistentes na rua do infortúnio por já se encontrarem noutro plano. E quanto aos escravos actuais, deles não há memória por não lhes ter sido dada a honra de entrarem para a História se é que alguma vez entrarão, ou porque a memória é fraca, cada vez mais, ou porque são tão invisíveis que os ressacados seletivos nem se dão conta de que existem ou existiram. É natural que não se entendam nesta coisa dos memoriais muito "in" porque se combate a injustiça com injustiça. 

sábado, 17 de junho de 2023

A Educação

 


A Suécia colocou um travão na digitalização nas escolas devido ao perigo de os alunos ficarem "analfabetos funcionais". É muito conhecida a relação dos leitores com os seus livros. São objectos pessoais, com história, com cheiro, com carícias e momentos. Os livros quase ganham o estatuto de gente. A educação em Portugal está toda mal e o facto de o Estado colocar a pata em todos os momentos escolares é o descalabro. A educação encontra-se pelas ruas da amargura porque responde numericamente a uma Europa burocrática que necessita de números para se manter à tona num mundo de grandes potências económicas. Tudo se tornou uma razão económica. Temos estatísticas que nos dizem que a população "não é renovada", por um lado e, por outro, nunca o planeta esteve tão povoado. Temos uma Europa envelhecida "encostada" ao Estado social, por um lado, por outro, temos verdadeiras potências e pró-potências com elevada taxa de juventude, de maneira que estar vivo num determinado país significa estar a lutar por um qualquer espaço que é o mesmo que dizer "recursos". O espaço é um recurso e os países só sobreviverão se o seu número populacional o justificar... a par disto temos todos os movimentos separatistas da Alemanha, Bélgica, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Chipre, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Itália, Macedônia do Norte, Moldávia, Países-Baixos, Portugal (Açores), Reino Unido, República Checa, Rússia, Sérvia, Suécia, Ucrânia ... é longa a lista e a questão dos recursos chama-se "sonho de autossuficiência", sonho impossível neste mundo globalizado. A Europa nasce do Aço e do Carvão e o seu baptismo foi e Economia. Desta feita, dessa fada traiçoeira que fadou o bebé, não se livra. E a educação em Portugal foi, a pouco e pouco, sendo engolida pela economia de maneira que, num mundo competitivo tecnologicamente, convinha criar seres preparados para essa tecnologia para não se ficar atrás nessa competição. Resultado: "analfabetos funcionais". Este analfabetismo funcional não se deve apenas à digitalização nas escolas, deve-se à ideia de um mundo competitivo em termos tecnológicos e competitivo relativamente aos recursos, sejam eles, água, alimentos ou energia, é esta a base de tudo, inclusivamente da desgraça em que se encontra a Educação, pois é devido a isto que são necessários os números para enviar à Comunidade Europeia, cuja única preocupação é sobreviver, no meio de todos os obstáculos: envelhecimento da população, grandes potências económicas, taxa de juventude de alguns países, luta pelos recursos no mundo, tecnologia de ponta, esta última servindo para tudo, desde a saúde às armas (que são o oposto da saúde). Ora, um português, antes de ser europeu, é português. Pela família, cultura e língua. Só depois descobre a Europa, o mundo e, se tiver oportunidade, o espaço sideral. Isto de estudar Antropologia é uma enorme desvantagem pois esta parece tender no sentido inverso do percurso do mundo. Esta disciplina ensina-nos que os jovens, na puberdade, na maior parte das culturas, eram introduzidos na sua cultura, no seu espaço, na sua História. Se pensarmos bem, vimos que não é mal pensado. A formação era, noutros tempos, humanística, e a tecnologia ficava remetida aos planos práticos. Entrar e pertencer a uma comunidade era um processo humanístico, sobretudo. Mas os iluminados modernos, inverteram o processo e o plano tecnológico, tornou-se prioritário na educação, sendo que este plano é global e não local. É o mesmo que começar a educação de uma criança explicando-lhe tudo sobre o espaço sideral, sem lhe dar a conhecer a sua própria comunidade, a história da mesma, a sua língua, etc. O analfabetismo foi quase substituído pela palavra literacia. Ler letras não é o mesmo do que compreendê-las. Mas donde vem a capacidade de compreender as letras? Da cultura humanística, a mesma que foi colocada de parte e que começa por introduzir os seres na sua própria comunidade (dando-lhes um sentimento de segurança e de pertença, já agora) para mais tarde, sabendo de onde são oriundos, poderem partir para o restante mundo e cosmos e saberem assim para onde vão. O analfabetismo é mau, mas o analfabetismo cultural é muito pior. Agora, com a inteligência artificial, a grande tentação irá ser a de delegar a memória e a cultura em máquinas e, os seres humanos, correm o risco de ficar reduzidos às tarefas básicas de "carregar ou não no botão", isto se não lhes for implantado um chip à nascença, algo que já se passa quase de certeza. Na Suécia, deram-se conta de que as crianças carregavam bem nos botões, mas que não sabiam nada. Eram funcionais a não saber nada. Lembro-me de já ter alertado para os riscos deste tipo de educação cegamente obediente aos números. Há "exames nacionais" com perguntas iguais para todos e com respostas previamente estipuladas. Só assim, dizem, há democracia porque todos têm de responder da mesma forma e às mesmas perguntas. Só um ceguinho é que não vê que isto é uma autêntica ditadura cultural dentro de um país. Uma criança de uma aldeia transmontana vive numa realidade diferente do que uma criança na capital do país, não tem, nem deve responder da mesma forma, nem tem ou deve saber as mesmíssimas coisas. A cultura, só se torna geral, mais tarde, quando já nem nos damos conta de que é cultura. Os professores tornaram-se apenas numa ponte obediente a um Ministério que obedece a uma Europa que obedece às exigências competitivas do mundo e isto não é ambiente para que quem quer que seja possa aprender. É a base que está errada. Profundamente errada. O ensino está assente numa ideia de competitividade, mesmo que não esteja visível e quando aprender começa assim, com a palavra competitividade, os resultados são escabrosos, como aliás se nota. Uma das piores palavras do mundo que enchem a boca de todos os políticos, e que a dizem com um sorriso, como se fosse a melhor coisa do mundo, é a palavra competitividade: ela está ligada ao jogo e está ligada à guerra. Pelo jogo, temos o entendimento imediato de que a vida é um jogo, coisa que não é, e pela guerra, temos o entendimento de que a vida pode ser aniquilada em nome dos recursos. A nossa civilização desceu até à animalidade mais primária: os cãezinhos brincam (têm sentido lúdico) em idades juvenis, e até mais tarde, e quando crescem, lutam pelos recursos. É este o plano em que nos encontramos e o plano que faz mover o mundo, por muito que ouçamos Mozart, Haydn ou Beethoven. De maneira que, o que está por detrás do recuo, por parte da Suécia, na digitalização das escolas, é apenas e tão só, um problema antropológico. O mesmo problema que sempre tivemos: o de sermos bestas, humanos, deuses ou anjos...  

terça-feira, 13 de junho de 2023

Parabéns, Fernando.

 


Meu querido:

Escrevo-te hoje, dia 13 de Junho, para te dar os parabéns. Passam 135 anos desde o dia em que nasceste e todos devíamos celebrar o teu nascimento. Porque és, de facto, único. Ultimamente tenho andado a pensar em ti e na distância que vai de ti a este mundo actual. Conseguiste a proeza de gerar Literatura, de quem hoje se pode dizer que o faça? Conseguiste a proeza de seres um mistério vivo. Quem hoje o é? Tu que te afirmaste como sendo nada, à parte de todos os sonhos do mundo, terias de conviver com esta civilização de gente imbuída do espírito de que são tudo, um sonho vivo e sobretudo, muito importantes. Adivinha-se já a crítica, não é? Todos conhecem a tua imagem e poucos te lêem. Todos reconhecem o teu chapéu, os teus óculos e a tua expressão entre o triste, o sério e o ensimesmado. Sabes porquê? Porque estamos na época das projecções de imagem. Primeiro começou, este hábito, com as fotografias, depois com o cinema e agora, todos podem tirar uma foto ou gravar um vídeo instantaneamente e colocar a coleção de imagens em ecrãs para todos verem. E é o que fazem. Sistematicamente. Projectam imagens de si próprios como se isso fosse crucial para se sentirem vivos e para serem dados como vivos. Das palavras, da consciência e da alma, pouco sabemos. Sabemos apenas das imagens, a maioria delas vazia, sem nada a reter senão elas mesmas. Tu que te preocupaste com as palavras como espelho da consciência, estranharias tudo isto. Todo este mundo de fantasmas sem consistência. E, aqueles que se preocupam com a alma, também são estranhos. Muito estranhos. Unem-se em grupos e almoçam ou jantam juntos. Dão muita importância às refeições. Tu que comias ovos estrelados solitariamente, devias estranhar estes banquetes daqueles que se preocupam com a alma. E retratam-se a comer, ou no fim das refeições para mostrarem a todos que são amigos. Tu, que tão poucos amigos tiveste… deverias estranhar o tempo dedicado ao convívio como coisa maior do que qualquer obra. Também creio que se hoje existisses, ninguém te entenderia na mesma. Pensariam que serias um ser estranho, longe do burburinho visual e das duas uma, ou te tomavam como guru, ou te invejariam de tal forma que te ignorariam. Se te tomassem como guru isso seria porque hoje todos precisam de orientação, de alguém que lhes diga qualquer coisa, que os distraia, que os anime e que os façam ganhar esperança não se sabe bem em quê… podemos questionarmo-nos se as pessoas querem sabedoria, ou se querem “evoluir espiritualmente, ou se querem salvar o mundo, ou se querem apenas andar por aí a distraírem-se com alguém que os distraia. Na verdade, não vejo ninguém tão ocupado como tu andaste, assim inquieto, com a tua obra que é maior. Talvez as pessoas me intriguem como a alma humana te intrigou a ti. Muitos ou dizem ou julgam-se estando numa demanda. Mas demanda de quê? Se lhes perguntarmos diretamente, saberão responder? O problema é falar com as pessoas de maneira que elas entendam, embora o entendimento possa ser um mau entendimento, ou um bom entendimento ou apenas parcial. Sabes como ando? Com a alma calada. Ela que me é tão exterior, parece-me que não está interessada em palavras. Assemelha-se a um lago tranquilo. Não sei se já alguma vez estiveste assim. Sem palavras por as pressentir inúteis. Mas quem disse que as palavras têm de ser úteis. Se fossem sempre úteis ninguém falaria no estado do tempo que é indiferente às palavras. Só gosta de danças da chuva. Lembras-te de pedires à Lídia para se sentar contigo à beira-rio? Parece que Lídia se sentou à beira-lago, olhando o mundo como um espelho de uma outra realidade, invisível e sobreposta. Como aquela ilha que escreveste estar próxima e distante. E mesmo assim, Lídia fica imóvel, numa quietude estranha, tão parecida com a do lago que se fundem. Talvez saiba que por mais que agitasse o lago com qualquer pedra que lançasse, este voltaria à sua forma estática e impassível e poupa-se, assim, a movimentos da alma demasiado complexos. O mundo permanece em queda livre e nessa queda é estático como um lago. E Lídia, acompanha esse movimento que é um não-movimento. Não se quebra porque o abismo não tem fim. Por isso, estranho esta quietude. Parece quase irracional. Até um voo picado de uma ave tem mais sentido, porque procura alimento, ou simplesmente sentir o ar a percorrer-lhe as penas. Se calhar é a vida bucólica que a torna assim. Não tem estradas para atravessar, apenas caminhos para percorrer, numa sucessão de paisagens indiferentes à sua presença. Mas hoje é o dia do teu aniversário e celebro-te com saudade. Ter saudades de um poeta é a glória deste mundo, tal como está. Mesmo que sejam umas saudades silenciosas, sem palavras, mas tão fortes que produzam um qualquer som no universo. As saudades têm essa capacidade. E da Saudade, nem se fala. Essa, altera mesmo o cosmos. Dá-lhe uma tonalidade fascinante, e une os tempos desunidos. Talvez a queda se transforme em voo e procure então as cúpulas em vez dos absimos. Talvez se lance de repente para cima e talvez as palavras surjam como estrelas.

 

Um grande beijinho

Da sempre tua,

 

Cynthia