segunda-feira, 23 de março de 2020

O vírus




Parece que os chineses saíram de casa e que foram, depois da epidemia, passear para os jardins. Foram para os jardins ver as flores, as árvores e os lagos com cisnes. Foi a reacção natural.
Constroem-se caixotes que fingem ser casas. A natureza não é nem para venerar nem para ser acompanhada nas suas formas. O distanciamento da arquitectura para com a natureza parece ser uma marca contemporânea. Perguntar-me-ão: "O que tem a ver a arquitectura com a pandemia?". Respondo: "Tudo".
O planeta é a nossa casa, o modo como a veneramos, cuidamos e a acompanhamos, é o modo como estamos no mundo. O problema do vírus é um problema de arquitectura. Achámos que a globalização do gosto, do espaço, era óptima e independente da natureza. O que o vírus mostra é que nada é independente da natureza. Ela apanha-nos quando quer e ultrapassa-nos se quiser. Substimá-la nas nossas obras é o acto mais estúpido e suicida que podemos ter. A globalização trouxe uma só cultura, um só sistema económico, uma só forma de estar perante a natureza (o mais separada dela possível), uma só forma de criar (os caixotes são todos iguais, sem telhas por onde a água desliza, sem jardins abertos aos olhos de quem passa, circundados por muros altos de chapa ou de tijolo, sem curvas como as da natureza).
Como já escrevi, a natureza não precisa dos homens para nada, segue o seu percurso porque tem de o seguir, mas nós, precisamos dela absolutamente. Acompanhá-la nas suas curvas, na sua diversidade (que é o contrário da globalização), no seu desenvolvimento, enfim, guardá-la como um tesouro que se aprecia e como fonte de sugestão de criação.
O público do que escrevo começou por ser constituído por filósofos com tendências pseudo-aristocratas (muitos deles recusando a aristocracia: contradição nítida) de "iniciação". Não passavam de burgueses relativizantes. Refugiei-me no povo com as mãos sujas de terra e de lixo. Os outros, permaneceram todos "altos-iniciados". O vírus sabe lá disso. A natureza, sabe lá disso. Toda a linguagem da natureza, por sua vez, lhes passa ao lado. Preferem bramir a espada e pensarem-se templários de um templo imaginário ou preferem justificar as viroses com os astros como se eles fossem responsáveis pelos micróbios que os atacam. Não são. A única responsabilidade é nossa por não sabermos venerar nem cuidar da natureza como se fosse um tesouro com tudo o que tem de benéfico e de perigoso. A modernidade persiste em gostar de caixotes e da aberração em termos estéticos porque não tem olhos para a natureza como modelo. A natureza é cega para os homens, como a justiça. Sempre houve epidemias e sempre haverá mas, graças às "globalização" de tudo, desde os sistemas sociais aos económicos, passando pelas formas de ver e de estar, as epidemias atingem todas as esferas humanas, sem olhar a excepções (até porque a globalização tende para a inexistência de excepções) e, quando esta é atingida, é totalmente atingida, do princípio ao fim.
A mentalidade dos caixotes na arquitectura é o contrário da casa e do planeta. Quando o quadrado é atingido, só lhe resta ser esfera. Circular. Como o jardim. Parece que os chineses foram passear para os jardins, depois da epidemia.

quarta-feira, 18 de março de 2020

No supermercado

(Auto retrato meu tirado há umas semanas atrás depois de colocar a echarpe na cabeça na casa da Catarina antes do início da explicação de matemática, só para a fazer rir - já devia ter idade para ter juízo) 


Hoje lá fui ao supermercado meio vazio. Estava na fila, com a devida distância de segurança entre mim e o senhor à minha frente e, para além dela, um carrinho a abarrotar com garrafas de água entre nós. Ouço a voz de uma senhora atrás de mim: "Você não está a cumprir a distância de segurança!". Estava visivelmente zangada. Eu nem a tinha visto porque estava virada para a frente e ela a dois metros atrás de mim. Pedi desculpa (hábito idiota quando não as devo pedir, mas faço como o meu cão Paxá que, desde que nasceu, fez questão de sublinhar que não queria problemas com ninguém, nem com humanos, nem com animais, afastando-se mal vê que a coisa pode correr mal), dei dois passos para o lado para ficar ainda mais longe dela. Entretanto abriram outra caixa. Era a minha vez, e eis que a moralista, altamente preocupada com a saúde pública, dá um passo para a frente, finta-me, vai para a caixa que tinha acabado de abrir, passa à minha frente (esquecendo-se por completo da "distância de segurança"), e coloca as coisas no tabuleiro. A rapariga da caixa ainda me chamou mas encolhi os ombros  e disse-lhe que não tinha importância. Um casal abordou-me, indignado,  com a atitude da mulher, e perguntou-me se tinha visto o que a senhora tinha feito. Disse que sim e que era assim. A senhora, só dizia: "Como é que é possível? Como é que é possível?" Respondi para dentro : "O mundo está cheio de moralizadores que são os primeiros a provocar e a agredir e depois cantam do púlpito e dizem não sabem nada, não viram nada, nem as pessoas que acabaram de agredir". Evidentemente, a senhora saiu e desapareceu, mesmo perante a consternação das testemunhas (nestes casos é bom ter testemunhas). Enfiei-me no carro e fui dar uma volta maior só para ver o verde e o mar, isto enquanto o Conselho se Estado decide o que há-de fazer connosco. Há quem acredite que "o mundo não vai mais ser o que era", mas a julgar pela atitude das pessoas, umas comprando tudo o que vêem sem pensar nos outros, outras a nem sequer saber respeitar uma fila, o mundo, depois disto, vai continuar a ter moralizadores a cantar no alto púlpito (deviam ter sido padres), e outros, parvos, que aprendem com os cães a não ter problemas com ninguém para não piorar a situação. A aprender com os cães, apesar de tudo, vamos melhor do que a aprender com certas pessoas, que cantam bem, mas não convencem. A história das nossas vidas está cheia desses exemplos, de pessoas profundamente egoístas sob a capa do altruísmo.

quinta-feira, 12 de março de 2020

O exílio


Ter uma casa cheia de livros e com material para trabalhos manuais é uma bênção nestas alturas. Que fazem as pessoas dentro de quatro paredes para além de se agarrarem à televisão e aos computadores? Não faço a mínima ideia. Parar. Já vivo nos prazeres do exílio há tanto tempo que não noto grande diferença. Está tudo tranquilo há muito. No entanto, é necessário ter inteligência e sensibilidade para se viver no exílio. É isso que é pedido, acima de tudo. Sem isso, o caos aparece instantaneamente. Devia existir um acompanhamento para os exilados inexperientes. Para que não sofram, nem façam sofrer. E, de seguida, poderem, enfim, parar. E estar bem. E aprender a falar consigo próprios, muito mais do que com os outros. Todo o exílio é profundamente interno, o externo é apenas um reflexo. E tem duas regras: não se estar sozinho e aprender a estar-se só.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Os punks


No meu tempo de liceu havia três tribos da moda. Os punks, os "surf' e os neo-romanticos, assim chamados pela forma de vestir que incluía punhos de renda. Lembro-me de gostar mais desta última por uma questão estética. Os "surf" usavam cores berrantes, rosa-choque, verde-alface, laranja gritante. E lembro-me que os punk, que nunca chegaram propriamente a acabar, eram os mais estranhos. Cheguei a assistir a um encontro "punk" numa discoteca. Era uma "trip" total. Com crinas, napas e metais agarrados ao corpo, tinham o aspecto de terem sido atropelados por um comboio e de terem sido electrificados ao mesmo tempo que acontecia o desastre e daí, os seus cabelos em pé, as olheiras profundas e um aspecto enjoado. Nessa discoteca, sem mais nem menos, atiraram-se todos uns para cima dos outros aos empurrões, tropeçaram em si próprios e uns nos outros como se fossem uma espécie de zombies voluntários ao som de uma música pirotécnica para qualquer ouvido. A proposta para pertencer aos zombies foi logo posta de parte. Tinha ouvido demasiado Gershwin na infância para me conseguir adaptar àquilo. Mas percebo que há quem goste. Os surfistas, por seu lado, eram, talvez, leves demais. Sorrisos, paz e ondas. Pouco mais do que isso. Os neo-românticos tinham rendas e uma certa nostalgia do passado o que me agradava. Alguns dos meus primeiros desenhos nasceram com essa moda nas personagens. Uma franja comprida, olhos pintados, laços de rendas, e casacos compridos com cornucópias. Moderno e antigo misturados. Os "surf" berrantes foram desaparecendo até se tornarem mais suaves, os neo-românticos desapareceram nas ruínas da sua própria nostalgia. Os punks prosseguiram na sua senda porque o mundo tinha e tem condições para os acolher. Estavam bem para o mundo tal qual ele se encontrava e continuam a estar. O submundo esotérico não é muito diferente. Bandos de gente cuja napa colada à alma lhes dá uma aura de serem "muit'a bons", olhar hipnótico que revela capacidade de liderança, palavras de metal que aparecem como as únicas verdades irredutíveis e indestrutíveis, crinas bem levantadas que mostram a sua resistência aos embates e o hábito de se atirarem uns para cima dos outros aos encontrões e tropeções para mostrarem a todos e a si próprios que alcançaram uma "pedra" tal que já nada os atinge. O seu anjo há-de ter o papel de uma estrela da música punk quando entra no palco, imprimindo o ritmo aos seus gestos sob a configuração de "missão". O som é ensurdecedor, a missão, profundamente estúpida e o resultado perpétua-se no tempo como um asteróide alucinado e desfigurado a atravessar o espaço. Os punks estão para lavar e durar. Em todos os planos.

terça-feira, 10 de março de 2020

Sim



Primeiro chamaram-me num crepúsculo
Disse que não
Depois, num instinto mais forte
Voltaram a chamar-lhe
Não disse que não, nem que sim
Depois em revelação
Mais uma vez, me chamaram
Disse que sim
E depois
Pegaste em mim
E ascendeste
Às nuvens
Ao céus
Aos abismos
Às estrelas
Aos instantes
À poesia
À arte
Ao sonho
À verdade
Mais tarde,
Passei a levar-te comigo
Sempre
Em cada flor, vejo o teu rosto
Em cada palavra, o poema que és
Em cada gesto meu
Há um teu
E todos os fantasmas se dissiparam
E as almas passaram a ser leves
E as nossas unidas
Num sopro de luz
E as benção da vida
À nossa volta
E se o pássaro canta
Em nós canta
E se o peixe nada
No nosso ser habita
E a memória diluiu-se em coisa nenhuma
E fica a claridade da manhã
Pela tarde, pela noite
Pelo sol
Pela lua
E ficamos suspensos no tempo
Como uma respiração desnecessária
E flutuamos no espaço
Como uma dança
Com dragões e estrelas
E constelações diamantinas
Não sabia que o universo era tão grande
Tão grande
Não sabia que estava tão próximo
Não sabia que era assim
Como as notas do piano
Como os poemas que viajam por nós
Primeiro disse que não
Depois, nem que sim, nem que não
Depois levaste-me para tão longe
Para o outro lado de todas as coisas
Para o lado mais oculto
Mais suspeitado
Mais invisível
Onde ficámos presos à liberdade
Reféns dela
Diluídos nela
Ilimitados nela
Visivelmente felizes nela
Invisivelmente felizes nela
E, esse não
Esse nem sim, nem não
E esse sim
Eram afinal toda a liberdade
Que ao pé de ti é possível
E onde o sorriso atinge dimensões
Inadmissíveis
Somos inadmissíveis
Para alguém que não seja como nós.


(Cynthia Guimarães Taveira)


domingo, 8 de março de 2020

À lupa



Vieram cá a casa à procura da minha existência espiritual, mas não encontraram nada. Alguns livros, a casa minimamente arrumada, alguns animais, duas televisões acesas. Também não levitei, nem fiz milagres. Aqui, não, não temos nada de espiritual. Quanto muito um buda na mesinha do corredor e, na sala, dois ícones, um da virgem com o menino ao colo e um outro com S. Jorge a medir forças com o dragão, um cristo pregado numa cruz decorada com flores de barro, outro de pedra que trouxe de Santiago e que faz conjunto com o próprio Santiago, também de pedra. Na mesma divisão há ainda uma pequena imagem em metal de Shiva. Não há, por isso, indícios de espiritualidade, a não ser que queiram ver alguma coisa de espiritual nas minhas pinturas, mas isso também podem encontrar na natureza ou nos vasos com plantas e flores que estão na varanda. Está tudo quieto. Até os animais dormem, indiferentes a esses desconhecidos que entraram por aqui à procura de pistas. Para me acusar, claro. Mas nada. Uma casa perfeitamente normal, nada de irregular. Passei no teste, na revisão, na auditoria, no inquérito e tenho um registo imaculadamente límpido no que toca à espiritualidade. Os livros, como eles bem sabem, não indicam nada, quer os tenhamos lido ou não. Isto não é o Fahrenheit 451, é bastante mais sofisticado do que isso. Eles sabem que podemos ter uma colecção do Bíblias encadernadas ou não sei quantos tratados sobre metafísica ou sobre religiões que nada disso é indicador de espiritualidade. Assim como entraram, saíram, com as suas maletas as suas lanternas, as suas lupas e os seus gestos experimentados na busca de indícios. São uma espécie de polícia. Sinceramente, penso que são um pouco burros. Quando encontram alguém com um vestígio de espiritualidade, pegam nessa pessoa, levam-na, mesmo contra a sua vontade, e nunca mais regressa. Ninguém sabe o que fazem com essas pessoas. Desaparecem, simplesmente. E também não se sabe ao certo que tipo de indícios procuram. Talvez qualquer coisa anómala ou pouco natural como levitar ou transformar qualquer coisa noutra coisa. Não sabemos ao certo, mas o que é importante é que não tenham encontrado nada pois assim posso prosseguir com a minha vida normal e com a minha espiritualidade votada à clandestinidade e à invisibilidade.

sexta-feira, 6 de março de 2020

O Espírito Barroco



O horror ao vazio é uma das características do espírito barroco, no entanto, para quem nasceu fadado com esse espírito, existe uma diferença fundamental entre o excesso e o essencial. Ainda que tudo no barroco pareça excessivo, para que o seu espírito viva, é afinal, essencial. Tudo está onde deve estar. Na época actual confunde-se excesso com essencial, coisa que o barroco não faz nem nunca fez. O excesso de fantasmas dos outros que já trazem uma vida interior, em princípio, sobrelotada é absolutamente dispensável. Alguém que treme à nossa frente só porque mencionámos qualquer coisa que para essa pessoa faz parte da sua rede de sincronias é alguém sobrelotado em si mesmo querendo extravasar o que há a mais de si para cima de nós, dando-nos um destaque que verdadeiramente não temos a não ser no seu próprio mundo. É assim que as viroses se espalham. O vírus é sintoma do espírito também. Assim, morrer e desaparecer, em linguagem simbólica, pode ser muito mais interessante do que morrer e aparecer. O aparecimento só faz ruído e enche a pintura barroca com o desnecessário. Estraga a pintura, por assim dizer. Ainda para mais, como não há morte, a qualquer momento o nosso próprio fantasma pode fazer as visitas que quiser, onde quiser e a quem quiser. A nossa época não lida bem com esse tipo de liberdade porque essencialmente, segundo a voz geral, temos todos que andar na linha. Se é para morrer, que andemos, quais cisnes, por entre os outros e os seus fantasmas. Como se fosse uma lei, uma obrigação. Ao ser uma obrigação dignificada por outros já é uma pseudo-morte, por mais que o cisne sereno finja que está presente... Na época actual detestam-se pessoas livres porque elas conseguem dar destaque a alguém que não sejam elas próprias. O devido destaque e não essa mistura promíscua de sintomas de sintonias "afantasmadas" que pendem sempre para o lado mais desnorteado. E preciso ter muita coragem para morrer e desaparecer, e voltar como fantasma sempre que nos apetece. Um fantasma que assombra, que faz estremecer, que questiona e que, sobretudo, estrague o espectáculo de vedetismos, esses sim, desalmados, que derramam os seus próprios fantasmas em cima do palco para cima dos outros. O espírito barroco aceita os seus fantasmas. Mas apenas aqueles que pertencem à sua pintura. Os outros, estão a mais. O espírito barroco, é, em si mesmo, essencial. Uns nascem com ele. Outros não.