domingo, 8 de março de 2020
À lupa
Vieram cá a casa à procura da minha existência espiritual, mas não encontraram nada. Alguns livros, a casa minimamente arrumada, alguns animais, duas televisões acesas. Também não levitei, nem fiz milagres. Aqui, não, não temos nada de espiritual. Quanto muito um buda na mesinha do corredor e, na sala, dois ícones, um da virgem com o menino ao colo e um outro com S. Jorge a medir forças com o dragão, um cristo pregado numa cruz decorada com flores de barro, outro de pedra que trouxe de Santiago e que faz conjunto com o próprio Santiago, também de pedra. Na mesma divisão há ainda uma pequena imagem em metal de Shiva. Não há, por isso, indícios de espiritualidade, a não ser que queiram ver alguma coisa de espiritual nas minhas pinturas, mas isso também podem encontrar na natureza ou nos vasos com plantas e flores que estão na varanda. Está tudo quieto. Até os animais dormem, indiferentes a esses desconhecidos que entraram por aqui à procura de pistas. Para me acusar, claro. Mas nada. Uma casa perfeitamente normal, nada de irregular. Passei no teste, na revisão, na auditoria, no inquérito e tenho um registo imaculadamente límpido no que toca à espiritualidade. Os livros, como eles bem sabem, não indicam nada, quer os tenhamos lido ou não. Isto não é o Fahrenheit 451, é bastante mais sofisticado do que isso. Eles sabem que podemos ter uma colecção do Bíblias encadernadas ou não sei quantos tratados sobre metafísica ou sobre religiões que nada disso é indicador de espiritualidade. Assim como entraram, saíram, com as suas maletas as suas lanternas, as suas lupas e os seus gestos experimentados na busca de indícios. São uma espécie de polícia. Sinceramente, penso que são um pouco burros. Quando encontram alguém com um vestígio de espiritualidade, pegam nessa pessoa, levam-na, mesmo contra a sua vontade, e nunca mais regressa. Ninguém sabe o que fazem com essas pessoas. Desaparecem, simplesmente. E também não se sabe ao certo que tipo de indícios procuram. Talvez qualquer coisa anómala ou pouco natural como levitar ou transformar qualquer coisa noutra coisa. Não sabemos ao certo, mas o que é importante é que não tenham encontrado nada pois assim posso prosseguir com a minha vida normal e com a minha espiritualidade votada à clandestinidade e à invisibilidade.
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