domingo, 29 de março de 2015

Cantiga portuguesa



Às vezes, em Portugal, parecemos burros emparelhados, em si mesmo sendo ensimesmados, andando com a neura do destino sorrindo para que se não diga que se perdeu o tino. E vamos balouçantes, dando a mão pelo caminho, tocando as dores para melhor senti-las, a rir da ferida remexida como quem não é outra coisa senão a mágoa, de recorte nítido, lágrima num olho caindo lenta, sorriso multiface no grande copo de vinho. Às vezes em Portugal, tornamos quieta a alma, por fora assim como quem dá um presente para vestir, e bordamos nas horas vagas os não pensamentos um a um, senão aqueles que são da casa, do quintal e da compra do champô. Toda a quietude manifesta, se se contempla o mar em festa, é suspeita de um lago parado, lá por dentro como um fado, e só a memória quase se nota.  Às vezes somos pouco, por nem saber do mais que somos, galos, galinhas e um porco, fazem do existir um livro morto. Se se nos ilumina o olhar é porque uma criança passou isso e devagar, e só porque alguém versou. Nas cantigas que sustemos, das antigas e das menos, há essa língua que sabemos, grande e imensa no que lembra do que somos e do que temos. Às vezes somos roupas estendidas em degraus, outras  nus d’alma, de repente pelo vento arrebatados e aí, sim,  quase naus.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

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