Morro de tédio aqui. Todas as aldeias são cortinas na janela
com olhos do lado de dentro. Todas escutam e exigem em surdina. Todas as
aldeias são o perpétuo descontentamento de serem apenas olhos com cortinas
rendadas, de bonitos rendados, de tão bonitos rendados, rendados lindos,
vendando os olhos...
Morro de tédio na aldeia do mundo... morro devagar,
obedecendo às cortinas, aos olhos por detrás das cortinas. Todas as aldeias
estão desertas. Todas são apenas uma emergência. Todas são silêncios à espera
que os sinos dobrem: pelo fogo, pela morte.
Todas são iguais, todas são o mundo.
Todo o mundo é um vasto tédio, infame quase, dessacralizado,
ossificado, coisificado.
Só um corvo espreitou hoje. Voo directo em direcção a mim.
Sei bem que não era um corvo. Era um símbolo apenas. Até os símbolos ficam
apenas no tédio das aldeias vindos direitos a nós. Todos os símbolos são meros
espelhos de nós. Todas as aldeias nem símbolos chegam a ser: são um desenrolar
cansativo das virtudes e dos defeitos humanos.
Toda a paisagem é uma tela em branco. Serve só para isso no
seu silêncio. Todos os mestres, Albertos Caeiro morrem, por isso Fernando
Pessoa o matou tão cedo. Todas as paisagens não são novidade no branco que são.
Todas elas são um novo início, um perpétuo e entediante novo início. Todas as telas em branco somos nós, no nosso
tédio criativo. Todo o tédio criativo é feito para calar as paredes demasiado
brancas, toda a escrita é escrita para calar as não palavras. A eternidade do
mundo consiste nisto. O amor, é impossível. Porque preenche demais, porque
frustra a criação. O amor quere-se sempre pela metade... metade dele chega,
porque quando vem inteiro mata. Ninguém quer amar porque ninguém quer morrer. Todas
as aldeias são o tédio do amor pela metade. Todo o mundo fica pela metade, é
sempre um gomo da laranja única, do fruto que não se prova. Nada se prova, no
fundo, nas aldeias. Tudo é provado como
provação, nada é provado como amor. Todas as aldeias do mundo e todo o mundo
que é aldeia, é a tela branca do início... na eternidade que imita,
paralelamente a ela.
Todos os gritos são iguais às aldeias no tédio que são. Todas as palavras escritas são apenas um
grito disfarçado de generosidade. A opção certa de não gritar e ir escrever é
tão entediante como as aldeias. Toda a arte é um cocktail. Um tchim-tchim feito
no tédio para não se morrer de tédio. O que interessa é não morrer: nem de
tédio, nem de amor. E o mestre morre para que isso seja possível, morrendo em
nós é porque é nascido em nós, numa profunda e entediante incorporação que é a
morte dele para que todos os inícios sejam possíveis no desenrolar cósmico, e
tendo tédio não possamos morrer, e tendo amor não possamos morrer. Todas as
aldeias são a morte aparente da aldeia que já está morta, da paisagem pré-fabricada
que nos eleva à nova criação. A criação
existe para calar o mundo que fala demais e cria de menos numa espécie de
equilíbrio entediante.
(Mas extra a tudo isto tu vieste e disseste-me que o amor
mata e revigora. É só de ti que tenho saudades. Tão transbordantes como do
amor que me deste. É só de ti que sei dizer alguma coisa que não seja um tédio.
É só no que me deixaste que posso conviver comigo. É só nessa prova de amor
irrefutável, que guardei como um laço, que ousei um dia, dizer, que existes. És
só tu que és a eternidade. É só a ti que guardo, que calo e não entrego, para
não matar ninguém. )
(Cynthia Guimarães Taveira)