segunda-feira, 6 de abril de 2015

No primeiro limite



Escrevo sempre a correr... corro para a frente com as palavras. Há uma forma de urgência nítida nesta pressa. Às vezes penso que escrevo a correr para que as palavras não se percam pelo caminho, outras, penso que o faço para as apanhar melhor, ou antes, para elas me apanharem melhor, como se de surpresa. Não sei onde está a verdade. Mas talvez a verdade de um momento único fique nelas. Aquele momento em que foram assim juntas pela primeira vez. O mais perto da origem possível. Nunca pensei que elas fossem algo de tão vivo, tão prontamente a serem vertidas. Sempre houve um lado de mim oculto que escrevia sem que desse por isso. E se nós tivéssemos, cada um, alguém que escreve, ou vá escrevendo pela vida, dentro de si? Um redactor invisível do jornal que tem a forma da nossa consciência? E um dia, um dia, ele surge, quase como se impondo na aparente monotonia dos números que foram saindo sem que tivéssemos dado por isso. Escrevo como um jornalista que trouxesse novidades de uma alma velha, sabendo que não há novidades e que todas as almas são novas a partir da antiguidade de tudo o que visivelmente nos cerca.  Ando pelas ruas do infinito procurando, sem que dê conta, de todos os factos sentidos, de todas as imaginações suficientemente aparatosas para o escaparate da consciência, mas a notícia no mundo sou eu, contemporânea das noticias que todos são. A sincronicidade é uma aparente troca do mesmo jornal contendo lá dentro uma consciência diferente. O tempo investe-nos da legitimidade da novidade e, no entanto, todas as novidades são a prova da antiguidade do mundo, de nós. Ausento-me nessa correria das palavras. Quem chega à meta são elas e não eu. Não estou em parte nenhuma dessas pistas a que concorro e vejo-as, às palavras, subir ao pódio, medalhadas e ouvindo o hino delas próprias. Espanto-me com a distância de tudo isto, mas sei, que foi a velocidade que  criou essa distância e apenas ela porque as palavras são uma incriação criativa ou criadas e, por isso, incapazes de se criarem a elas mesmas, incriativas, por isso.  Às vezes penso que escrevo numa espécie de primeiro limite do ser (porque há outros), como um sonho que tive um dia: corria a tal velocidade que a alma se soltou. Há no tempo um mistério indefinido capaz de alterar o espaço. Como há no tempo das palavras o mistério da sua manifestação. As palavras não são uma manifestação do tempo porque o tempo não se manifesta, é apenas um veículo, uma cápsula para tudo. No limite do ser há, como que mil canetas, e todas as faces são as possibilidades de um anjo que pode passar, cair, por vezes, ou até ficar.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

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