Passei pela tua biblioteca mas
passei sem que visses porque a tua biblioteca estava toda nos teus gestos, na
tua certeza e na tua dúvida. Passei como se estivesse lá estado anos mas foram
apenas segundos daqueles outros feitos na escuridão das estrelas. Por estar tão
escuro não me viste passar mas os meus olhos iluminaram tudo como faróis e, por
cada estante, por cada prateleira tudo vi, quase o mundo inteiro: histórias que
havias lido e absorvido quase como se fossem tuas, crenças, pontos de vista e filosofias,
tentativas de alcançar uma escada e por quantas escadas passaste.... as tuas
leituras navegavam-te embora pensasses ser o contrário. Passei apenas na tua biblioteca porque tu
pensavas que ela eras tu. E fui ver. Mas eram apenas as tuas roupagens, algumas
bonitas, outras de seda apenas porque a seda basta. Sei que não estavas lá
enquanto com olhos iluminados decifrava até algumas escritas antigas que tinhas
para lá guardadas. A razão pela qual não estavas lá é porque nunca chegaste a
reparar que, enquanto estavas lá, dois olhos de luz iluminavam até aqueles
recantos mais improváveis e secretos que tinhas entre um livro e outro, uma
carta, um postal, outras vidas...
Como sei que são todas essas
palavras que te navegam a não o contrário, nunca lá estive, a não ser nestas
palavras que te navegam. És igual a um livro distante escrito por ninguém. Ouço a tua voz como se te lesse, mas não estás
onde pensas que és escrito. Ninguém te escreve só os teus livros foram escritos
para ti como enredos vagos das vidas que tiveste. Quando alguém não foi escrito não pode ser
lido.
Quando me fui embora da biblioteca
que te pertence deixei-te um papiro, maior e mais grosso do que os papiros
comuns, feito de terra. Era tão grande que atapetava a tua sala toda mas era
invisível e tu não o vias. Nele estavam inscritos símbolos. Todos os símbolos
que te compunham e que não eram, no entanto, a escrita de ti, por enquanto.
Sabia que, daí para a frente, os pisarias um a um, sem que desses por
isso. Sabia que os gastarias nos teus
passos desconhecendo que o fazias e desconhecendo-os andarias às cegas por um
universo que só era paralelo porque não o conhecias. Sabia de onde tinha vindo esse papiro e
porque o tinha deixado lá. Navegado que
eras pelas palavras não saberias do solo que pisavas sem querer. O solo donde tinhas brotado, a réstia de uma
memória que poderia tornar possível a escrita de ti próprio. Não o fiz por mal
nem por bem. Era a única forma que havia encontrado para te dizer que não eras
lido, apenas pisado por ti próprio quando atravessavas a sala em busca de um
novo volume, de uma nova referência, de uma nova consulta. Também sabia que, quanto mais pisasses esse
papiro, feito de terra, mais fortificado e denso se tornava o solo da tua
memória. A tua biblioteca é, hoje em
dia, provavelmente, a biblioteca mais estranha do mundo porque esse solo que
calcas, passo a passo, vai-te tornando cada vez mais invisível nos símbolos que
és por tão gastos que ficam e mais visível na aglomeração de massa onde te
susténs. A densificação da terra dada pelo teu corpo, pelo teu peso e pela tua insistência em a pisar trouxe a
subtileza dos símbolos, evaporados a pouco e pouco, que te compõem. Se fosse ao
contrário nenhuma alquimia era possível. Quanto mais densos os símbolos mais
coisificados e caídos se tornam, mas se a densidade da massa for acompanhada
pela subtileza invisível do que te compõe, aí, poderei ir vendo a obra a
fazer-se. A obra da tua própria revelação. As palavras que te navegam não podem
navegar-te em terra, só em mar e, quanto maior a densidade da terra que vais
pisando, menos essas palavras que compõem os teus livros te navegarão.
Quando um dia pegares num livro
para seres tu a navegá-lo, finalmente, não olhes para mim dizendo que fui eu
que to ofereci. A única coisa que te ofereci foi esse tapete de papiro feito de
terra onde te pisaste. Se quiseres podes
ler-me o livro em que pegas porque finalmente acredito em ti.
(Cynthia Guimarães Taveira)
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