sexta-feira, 17 de abril de 2015

A biblioteca mentirosa



Passei pela tua biblioteca mas passei sem que visses porque a tua biblioteca estava toda nos teus gestos, na tua certeza e na tua dúvida. Passei como se estivesse lá estado anos mas foram apenas segundos daqueles outros feitos na escuridão das estrelas. Por estar tão escuro não me viste passar mas os meus olhos iluminaram tudo como faróis e, por cada estante, por cada prateleira tudo vi, quase o mundo inteiro: histórias que havias lido e absorvido quase como se fossem tuas,  crenças, pontos de vista e filosofias, tentativas de alcançar uma escada e por quantas escadas passaste.... as tuas leituras navegavam-te embora pensasses ser o contrário.  Passei apenas na tua biblioteca porque tu pensavas que ela eras tu. E fui ver. Mas eram apenas as tuas roupagens, algumas bonitas, outras de seda apenas porque a seda basta. Sei que não estavas lá enquanto com olhos iluminados decifrava até algumas escritas antigas que tinhas para lá guardadas. A razão pela qual não estavas lá é porque nunca chegaste a reparar que, enquanto estavas lá, dois olhos de luz iluminavam até aqueles recantos mais improváveis e secretos que tinhas entre um livro e outro, uma carta, um postal, outras vidas...
Como sei que são todas essas palavras que te navegam a não o contrário, nunca lá estive, a não ser nestas palavras que te navegam. És igual a um livro distante escrito por ninguém.  Ouço a tua voz como se te lesse, mas não estás onde pensas que és escrito. Ninguém te escreve só os teus livros foram escritos para ti como enredos vagos das vidas que tiveste.  Quando alguém não foi escrito não pode ser lido.
Quando me fui embora da biblioteca que te pertence deixei-te um papiro, maior e mais grosso do que os papiros comuns, feito de terra. Era tão grande que atapetava a tua sala toda mas era invisível e tu não o vias. Nele estavam inscritos símbolos. Todos os símbolos que te compunham e que não eram, no entanto, a escrita de ti, por enquanto. Sabia que, daí para a frente, os pisarias um a um, sem que desses por isso.  Sabia que os gastarias nos teus passos desconhecendo que o fazias e desconhecendo-os andarias às cegas por um universo que só era paralelo porque não o conhecias.  Sabia de onde tinha vindo esse papiro e porque o tinha deixado lá.  Navegado que eras pelas palavras não saberias do solo que pisavas sem querer.  O solo donde tinhas brotado, a réstia de uma memória que poderia tornar possível a escrita de ti próprio. Não o fiz por mal nem por bem. Era a única forma que havia encontrado para te dizer que não eras lido, apenas pisado por ti próprio quando atravessavas a sala em busca de um novo volume, de uma nova referência, de uma nova consulta.  Também sabia que, quanto mais pisasses esse papiro, feito de terra, mais fortificado e denso se tornava o solo da tua memória.  A tua biblioteca é, hoje em dia, provavelmente, a biblioteca mais estranha do mundo porque esse solo que calcas, passo a passo, vai-te tornando cada vez mais invisível nos símbolos que és por tão gastos que ficam e mais visível na aglomeração de massa onde te susténs. A densificação da terra dada pelo teu corpo, pelo teu peso  e pela tua insistência em a pisar trouxe a subtileza dos símbolos, evaporados a pouco e pouco, que te compõem. Se fosse ao contrário nenhuma alquimia era possível. Quanto mais densos os símbolos mais coisificados e caídos se tornam, mas se a densidade da massa for acompanhada pela subtileza invisível do que te compõe, aí, poderei ir vendo a obra a fazer-se. A obra da tua própria revelação. As palavras que te navegam não podem navegar-te em terra, só em mar e, quanto maior a densidade da terra que vais pisando, menos essas palavras que compõem os teus livros te navegarão.
 
Quando um dia pegares num livro para seres tu a navegá-lo, finalmente, não olhes para mim dizendo que fui eu que to ofereci. A única coisa que te ofereci foi esse tapete de papiro feito de terra onde te pisaste.  Se quiseres podes ler-me o livro em que pegas porque finalmente acredito em ti.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

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