terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A descida, o falso e o verdadeiro Inferno


Numa das raras entrevistas dadas por Dalila Pereira da Costa que se encontra no YouTube a propósito de Guerra Junqueiro, diz a autora a determinada altura que Portugal se encontra no momento presente numa descida aos Infernos.
Há um elemento nessa descida que é comum a alguns relatos de pessoas que por algum tempo estiveram mortos clinicamente, entre cá e lá. Falam eles duma espécie de revisão em imagens de toda a sua vida. Esta experiência é muito semelhante a uma outra, iniciática, na qual essa revisão é feita em vida por memórias que assaltam o neófito, aquele do "não há morte" do poema Iniciação de Fernando Pessoa - se não há morte não se pode matar aquilo que não há, isto em resposta aos apologistas da frase "é necessário matar a morte", aquilo que existe é antes uma passagem pela morte, o que é diferente, uma passagem por aquilo que se julgava haver mas não há... Aquilo que há é uma passagem.
Essas memórias do passado que assaltam o neofito aparecem como se fossem uma espécie de mensagens com uma característica nova das memórias comuns. O passado é iluminado pelo sentido dele. Ou seja, dentro de um contexto maior tudo aquilo que não fazia qualquer sentido ou era tido como algo sem importância ganha uma dimensão cósmica. A amplificação é acompanhada pelo sentido e pelas consequências e tudo aparece nos seus devidos lugares num enorme enredo simbólico que é sempre a forma de comunicação das verdades transcendentes e metafísicas.
O Inferno é muito imaginado mas raras vezes vivido. Pode ser um fogo que queima eternamente. Pode ser uma autoflagelação sem fim. Pode ser um período de silêncio circunspecto. Pode ser o arrependimento. Na imaginação cabe tudo para o imaginar. Na realidade, por outro lado, há pontos de contacto entre aqueles que por ele passaram, sendo um deles o papel da memória que revigora os instantes e revela verdadeira dimensão dos pequenos e grandes gestos. Poderemos como pátria optar pelas primeiras formas imaginárias e nesse caso essa descida tem apenas o valor de um sonho do quotidiano em que os pequenos horrores e os medos são revividos em forma de experiência, ou antes de experimentalismo, no qual o símbolo desce a tal ponto que passa a sinal re-equilibrando apenas a nossa parte emocional, e se for este o caso, não poderemos falar propriamente de uma descida iniciática. Ou podemos, por outro lado, como pátria em movimento descendente iniciático, ver surgir essas imagens da vida vivida como mensagens plenas de significado reintegrando-nos na esfera transcendente, unificando-nos, e identificando-nos, algum modo, com esse passado à luz de toda a sua dimensão simbólica, uma espécie de anjo que nos assiste para além dos nossos pequenos egoísmos ou das nossas emoções. Se for este o caso, então poderemos chamar, por esse indício existente da memória revigorada, (porque há outros) uma descida iniciática que corresponde a este movimento descendente de Portugal.
Dada a qualidade actual dos seres humanos, muito mais virados para a lágrima fácil do que para qualquer outra coisa, resta-me a esperança de que pelo menos haja alguma elite neste país que o faça verdadeiramente embora saiba que a sua transmissão em nada seja entendida senão por essa mesma elite.
Para se poder fazê-lo há que ter presente vários factores: uma extrema sensibilidade, uma inteligência apurada, uma curiosidade sem fim, uma vontade transcende e toda a ajuda do alto. O único capaz de ler o coração da pátria .

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