O estatuto dado à verdade é o mesmo que se dá a um passatempo. Incrédula observo este dilúvio que me rodeia. Por alguma razão misteriosa começou com um mar de lágrimas. Apercebi-me de que a relatividade tomava conta de tudo. Há catástrofes que não têm de vir dos elementos da natureza. A maioria das hecatombes vêm de dentro e, depois, a natureza que nos é exterior simplesmente acompanha com os seus gestos o que há muito se deu no âmago dos seres. A tragédia das perdições não está propriamente nos comportamentos. Esses, são como ventos, que vão e vêm. Está n'algo de mais profundo. Um corte, uma recusa no diálogo interior. Na recusa em pensar. Na vida vista como um passatempo em vez de uma demanda que, para o ser, é sempre interior e, quando se torna exterior e se confunde com coisas como "a carreira" ou a aquisição de "prestígio" se torna sempre numa sombra assustadoramente grande e viva com a dimensão da escuridão de um cosmos sem estrelas.
Pensei, porque me diziam, no início, que as minhas lágrimas eram de água salgada. Mas essas existem apenas quando há demanda nossa e circundante numa sintonia perfeita (ao contrário da demanda simplesmente exterior) como disse Pessoa sobre o mar salgado e a lágrimas de Portugal. Mas depois vi que não. Elas eram as lágrimas de um vulcão. De uma montanha ligada ao centro da terra. Elas eram lágrimas de fogo que atingiam tudo à minha volta. Vidas, pessoas, seres. Elas embatiam na ignorância com violência. Eram implacáveis. Atravessavam as paredes. Ouviam até por entre as paredes. Elas eram uma explosão que vinha de anos e anos de diálogos internos, de tentativas de perceber tudo o que me rodeava. Elas eram o resultado de que não tinha entendido o fundamental e, com elas, e apenas com elas e porque eram gotas de fogo e de luz iluminando tudo o que me circundava; isso, que era fundamental, aparecia agora iluminado e sempre tinha estado à minha volta sem o perceber: as pessoas eram profundamente ignorantes de si e de tudo. As pessoas não tinham imaginação nem sabiam o que isso era, a sua raíz. As pessoas eram, na sua maioria seres que vivam na escuridão e que tinham cegado, e ensurdecido e estavam paradas, inertes e sem vida. Era apenas o fogo das minhas lágrimas que conseguia iluminar o gelo à minha volta. Só ele. E também foi ele que iluminou, ou antes, retribuiu a luz dos poucos seres que a tinham. Dante, tão próximo dos suspiros de Camões. Depois, não houve mais gelo. Abriu-se um céu para além das nuvens de fumo. Azul. Leve. Perene. O céu nú. A verdade, cá em baixo parecia cada vez mais igual a um passatempo comprado num hipermercado. Os seres, pareciam ainda mais marcados pelos sulcos do engano e do desespero. Passei a dar-lhes a mão na proporção exacta dos seus desejos. A maioria nem se dá conta dessa mão, tão leve ela é. Esses só necessitam de si. Do que são. Outros, pressentem uma espécie de incómodo. Estranham o seu próprio vazio. Dura uns instantes. Uma sombra que passa pelo olhar. Os outros, muito poucos, de luz, são reflexos. E os grandes são como nós. Chispam luz pelas pelas palavras, pelos gritos, pela presença. Unidos. Únicos em si. Sabem o que é um passatempo e desprezam-no profundamente para baixo, e gozam-no na plenitude para cima. São grandes. Do tamanho do mundo. E não se vêem.
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