terça-feira, 12 de fevereiro de 2019
Ovo, galinha e cisne
A leitura de temas esotéricos orientais tem, aqui no Ocidente, apressado e ambicioso, um efeito semelhante ao que os adubos químicos fazem aos morangos: aumentam o seu volume e peso, mas retiram-lhes o perfume, a cor e o sabor, ou seja, fazem vista mas perdem a essência. É assim que nos damos conta da frequente atitude adoptada como veste de "impassibilidade". Sim, a mesma que possuí o cisne, alvo e deslizante sob o movimento das águas. Ser que é deveras Ser, depois dessas leituras orientais, não reage e das duas uma, ou age ou não age, a não reacção é o que o torna (sob esta perspectiva deformada) superior. Pode não agir e já chegou a um estado, digamos, quase celeste, pode agir e já chegou a um estado, digamos, próximo dos deuses, não pode é reagir. Reagir é menor, é baixo, é não estar nem ser elevado.
Faço em seguida uma citação de parte de um texto meu (o que, segundo a perspectiva apressada ocidental, me coloca imediatamente no patamar do egocentrismo, isto para quem se esquece de que, se fôr necessária uma auto-citação, provavelmente, talvez haja um qualquer puzzle - mencionado neste blogue no texto da Rosalina e do Puzzle - que esteja a ser descrito, pelo menos) e a citação é retirada de um outro texto, também deste blogue, sobre três pinturas de minha autoria publicado no dia 14 de Maio de 2018 (os caça-egos já devem estar loucos a esta hora com tantas autocitações) e diz assim:
"O cisne como o que consegue não sentir nem frio nem calor, uma certa pureza inocente nas suas alvas penas, cuja curvatura do pescoço é suave e o seu deslizar pelas águas turbulentas do mundo mais suave e sereno ainda… o local, por excelência, onde se descobre que o sol é negro e que o verdadeiro sol é interior ou anterior à criação deste mundo turbulento a partir da volatilidade das águas, turbulentas e instáveis, às quais se sobrepõe o cisne deslizante, quase imperturbável na sua forma externa… um paraíso acessível. Talvez até demasiado acessível… Se assim o é, porque é que a figura o “domina” de alguma forma? Por vontade dupla de se fundir com ele e de o transcender, de estar para além dele (mundo crepuscular, lembro, onde os opostos convivem em fusão – o Regime Nocturno ou Místico lembrado por Gilbert Durand na sua obra “Estruturas Antropológicas do Imaginário”, dando este “Regime” o nome a um capítulo inteiro subdividido em vários. Um Regime, ou um estado apelativo, com intenções de permanência eterna, mas, ainda assim, demasiado acessível. Lembro a Confraria a que pertenceu Hieronymus Bosch, esse grande pintor e também visionário, cujo animal escolhido para a assinalar era um cisne que, estranhamente, acabava num prato, uma vez por ano, e comido pelos confrades numa celebração… estranho rito este, associado a este sereno animal, capaz de deslizar em ritmo permanente nas águas, símbolo de impermanência. A ambiguidade ritual é extrema, integrando o animal no corpo ao ser comido e, em simultâneo, uma espécie de “corte” com o símbolo, muito semelhante, aliás, ao “partir da cruz” de que foram acusados os Templários… talvez porque, até o próprio símbolo seja algo a transcender, tal como aquilo que o símbolo simboliza."
Temos então aqui vários elementos: a galinha (a acção), a reacção (o ovo) e a não reacção (o cisne) que está acima disso tudo. Também podemos trocar o ovo com a galinha, o que vai dar no mesmo pois não se sabe quem nasceu primeiro se o ovo ou a galinha. Um belo trio. É belo, sim senhor, mas, segundo o que foi escrito no primeiro parágrafo, não está correcto porque de acordo com a leitura do dito e mencionado, agir é muito superior a reagir, ficando assim então algo semelhante a: a galinha (não açção), o ovo (acção), o cisne (não reacção). Isto constitui um grande problema. Dei por mim a consultar a descrição de René Guénon (esse tradicionalista pesado e mal encarado) e ele afirma na obra "A Grande Tríade", no Capítulo "a Dupla Espiral" o seguinte: " Podemos falar da dupla acção de uma força única (...), ou seja de duas forças produzidas pela polarização de esta e centradas sobre os dois polos e que por sua vez produzem, pelas acções e reacções que resultam da sua própria diferenciação, o desenvolvimento das virtualidades compreendidas no "Ovo do Mundo", desenvolvimento que compreende todas as modificações dos «dez mil seres.»", acrescento que estes dez mil seres são um símbolo extremo oriental da própria Humanidade. Acrescento igualmente que o ovo, a forma oval, para ser produzida necessita de dois centros de duas circunferências que, naturalmente, se transformam em polos, e sendo o ovo o símbolo das virtualidades e do seu potencial desenvolvimento já se poderá ver a acção e a reacção como produtoras do desenvolvimento da própria Humanidade que um dia, se Deus quiser há-de ser cisne... para ser comido num banquete. Estraguei tudo com isto do banquete.
Posto isto, há vários níveis de acção, de reacção e de não reacção ao contrário do que é comum afirmar-se. Assim a pseudo não reacção é uma reacção. Uma reacção torna-se mais verdadeira porque pelo menos não é pseudo, ou seja, não tomou uma atitude, ou seja, não produziu uma acção a partir de fora só porque se leu um qualquer livro que veio de fora. A reacção pode ser tão verdadeira como a não reacção do cisne. Mas se o cisne é para comer então é porque alguma coisa acabou e de novo, após a morte do cisne, vem um novo "ovo do cisne", símbolo do "Ovo do Mundo", com esses dois polos, onde, provavelmente, as acções e as reacções são elaboradas num plano um bocadinho mais acima, o que torna as não reacções do plano abaixo completamente dependentes das acções e reacções do plano que lhe está acima e que passou a existir depois do canto e da morte do cisne. Os antigos confrades, quando serviam o cisne à mesa do banquete sabiam muito bem o que estavam a fazer. Estavam a iniciar outro ciclo. E é exactamente, segundo os planos em que se encontram, que os hermetistas se encontram também e conseguem comunicar uns com os outros. Mas o que estou para aqui a escrever? Algo de inútil e repetitivo. Camões, já o tinha escrito há séculos: "E sabei que, segundo o amor tiverdes, tereis o entendimento dos meus versos". É por isso que nem o Oriente é tão fácil assim, nem o Ocidente tão difícil assim. Reagir é tão normal como não reagir ou agir. Depende do ângulo, e do triângulo, do Vento e do Amor.
Cynthia
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