domingo, 5 de janeiro de 2020

Num bonito dia de Sol


Às vezes sinto-me quase no "não-manifestado",  "condição" (é bem mais complexo do que uma condição) que aprendi com René Guénon. Criei um modo de estar que é o produto de uma separação quase radical entre o meu interior e os outros. Falo sempre com os outros segundo a conversa que querem ter. Não escolho temas. Há uma inadaptação ao mundo moderno, ou tal como está, ao nível social. É certo que temos a sorte de viver numa sociedade mais ou menos livre e tolerante. Quando digo esta última frase digo aquilo que o politicamente correcto quer ouvir. E não deixa de não ser verdade, porém, não é toda a verdade... E assim vou falando, meias verdades consoante o interlocutor. Há uns anos dei-me conta da diversidade de gente doida que havia (eu incluída), que só se acalma um pouco quando quer parecer que não está doida e fala de assuntos práticos ou sérios ou as duas coisas com uma compenetração profissional. Depois, à mínima coisa, plim! A loucura espreita, sai da caixinha surpresa, vestida ou nua, tanto faz, está lá. A nossa Ministra da Saúde é completamente passada. Aquela forma de falar foi esculpida em tecnocracia. A forma de se expressar tem vértices e arestas fininhas. Não há curvas na voz, nem sensualidade, nem naturalidade, sequer. Está doida. Varada mesmo. Mas todas as pessoas acham normal. Outra passada é a Cristina Ferreira, a apresentadora. Passou-se. Berra, berra, berra a perseguir audiências. Ninguém vê, mas eu vejo. É outra marada. E há mais. Muitos mais. Talvez menos estridentes, mas com o meu olhar que é um filtro, poucos estão num estado decente. É por esta forma de ver o mundo que o mundo não me devolve muitas amizades. Também esta inquietação ninguém aguenta. É uma inquietação varada e um quietismo em simultâneo assustador. Até eu estranho. Metade de mim está no não-manifestado. Não me manifesto porque como está tudo doido à minha volta penso que não vale a pena. Fico sossegada a ver. O "agir" parece-me idiota se for eu a tomar a iniciativa. É mais ou menos como dizer aos loucos: "Loucos, olhem para mim! Vou agir!" E eles encolhem os ombros e dizem que é mais uma doida. E talvez tenham razão. Esta não-manifestação não foi bem uma escolha, foi uma espécie de consequência. Uma consequência num mundo de doidos. Às vezes gosto de chocar e de dizer coisas como "todos são culpados até prova em contrário". A indignação é geral. Os loucos indignam-se. Estou a pôr em causa o Estado de Direito e ou qualquer coisa assim de muito grave. Mas a realidade é que, bem vistas as coisas, num mundo de doidos é assim que as coisas funcionam. A omissão nunca foi apanágio da verdade. É por dizer estas coisas que tenho poucos amigos. A loucura assumida é bem pior do que a dissimulada, dizem eles. "Somos loucos mas andamos vestidos, agora tu, toda nua, a andar na rua, p'ramor de Deus! Nem te aproximes. Péssima companhia". Outra coisa que contemplo a partir da minha não-manifestação é a pobreza mental e até mesmo emocional que me rodeia. Fico a pensar no que será que as pessoas pensam. Não de mim, porque de mim pensam mal, mas da vida. E quase que não pensam. Reagem por instinto. O instinto do que devem pensar. É assim. Eu também tenho as minhas coisas. A minha mãe achava extraordinário o meu gosto para as roupas dela. Num dia dizia que era lindo, noutro, a mesma peça de roupa era um horror. Dizia que não percebia como é que tinha mudado de opinião em tão pouco tempo. Também não lhe sabia explicar. Não era racional. Era um instinto reactivo à roupa. Se era paradoxal, paciência. Agora observo que a maioria das pessoas é assim com tudo. Excepto com o futebol, se tiverem uma equipa. Aí são coerentemente irracionais e pouco honestas. Querem lá saber da verdade. Mas bem vistas as coisas, mediante todo o resto, também não querem saber dela para nada, só que expõem uma incoerência com uma cadência quase horária de maneira extraordinária. Não é o vento que faz andar o catavento, é o catavento que anda porque quer. Foi assim que nasceu a minha desconfiança. Num bonito dia de sol. As afirmações taxativas dos outros parecem ecos distorcidos de uma outra coisa qualquer. E é isto, por hoje. E já é muito.

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