terça-feira, 31 de março de 2020
domingo, 29 de março de 2020
Animais
Outeirinho - Esgroviado
Matilde - Diva
Paxá - Nerd
Papoila - Melodramática
São todos emanações minhas. O lado oculto dos bichos é o nosso lado desoculto. Tenho um gato que é fadista mas esse é parasita. E um outro, o marradinhas, é uma espécie de bibelot carente com complexo de touro e a safira, pobrezinha, morde o meu nariz sempre que pode com a intenção secreta de me transformar em esfinge.
O copo de água
Tenho uma amiga holandesa que veio para Portugal há muitos anos e que aqui casou e teve os seus filhos. Um dia estávamos a conversar sobre a diferença entre os dois países e lembro-me de que uma das coisas que ela estranhou no início, quando tinha vindo para cá viver, foi o facto de se poder ir a qualquer estabelecimento, pedir um copo de água e de ele ser gratuito. Ainda hoje, frequentemente, se vê um jarrinho de água com copos ao lado para as pessoas se servirem nos estabelecimentos. Aqui, a água, não se nega a ninguém. A água das fontes. Lá na Holanda, dizia ela, isso não se encontrava, pois quem entrasse num estabelecimento tinha de pagar pelo copo de água. Ela estranhou bastante este hábito português. Numa canção popular portuguesa, a água assume o valor de tesouro, "só invejo de quem bebe/ a água de todas as fontes", canção que se dirige à "rama do olival", em tom coloquial, a uma árvore, a oliveira cujo azeite serviu durante muito tempo de combustível para se obter luz, tem propriedades medicinais e tendo sido com ele ungidos os reis, para além de servir de alimento. Mas se voltarmos ao copo de água depressa nos lembramos que ele assumiu o sentido de banquete. O copo de água dos noivos é, afinal, um banquete que é oferecido. Evidentemente que se trata de um eufemismo exagerado mas a verdade é que, mais uma vez, encontramos a associação "água-abundância-generosidade". Bem vistas as coisas a cornucópia de abundância tem todo um ar de búzios dos mares, em espiral e brotando alimentos, como uma fonte. Também por altura da Revolução dos Cravos as mulheres em Lisboa ofereciam copos de água a quem passava. A água não se nega a ninguém, nem mesmo aos revolucionários. A água é um tesouro. Mas o verdadeiro tesouro, aquele que a amiga holandesa nunca compreendeu, era a dádiva. O simples gesto de oferecer a quem precisa ou não precisa (estamos no campo da abundância, não da caridadezinha). Isso é uma coisa cultural que nos está no sangue. E vê-se, agora com o vírus, a forma como algumas empresas metamorfosearam a sua produção em objectos e líquidos necessários ao combate ao vírus. Isto enquanto o Trump anda às voltas com os empresários da terra dele a tentar encontrar um "acordo comercial" conviniente a ambas as partes. Por aqui, a generosidade, essa coisa estranha aos holandeses, foi colocada em primeiro lugar. Era em terras de Amesterdão que, até alguns tempos atrás, se podia respirar a sensação de liberdade. Amesterdão, à semelhança de Veneza doutros tempos (também tem canais de água), acolhia os apátridas, os desvalidos, os diferentes. Embora fosse generosa quanto aos costumes, não o era, pelos vistos, relativamente ao copo de água. O pequeno copo de água que, como um vírus, tem tendência a multiplicar-se, a espalhar-se a a tornar-se num banquete. Num banquete generoso. A Holanda tem muito que aprender relativamente a Portugal. Mas para isso, provavelmente, terá de fazer como a amiga holandesa que casou com um português. Com copo de água e tudo.
sábado, 28 de março de 2020
Teoria da Coronaspiração
No meu tempo de adolescência tive o gosto e a sorte de poder conviver com um actor embrenhado em teofismos da época. Onde aprendeu a "como saber mais sobre tudo do que os outros". A personagem, variava por teorias e por fases. Lembro-me da fase dos dinossauros dos quais todos nós descendiamos e de o ter ouvido contar com veemência a forma como a cauda, herdada dos dinossauros, tinha desaparecido no ser humano. Lembro-me também da fase da "Confederação Inter-galáctica" que decidia os destinos da humanidade, isto entre outras fases com que nos distraia na nossa associação nas horas vagas entre aulas e projectos. E foram muitas horas de "ensinamentos" pelas quais passamos (eu e os restantes que o ouviam) mas cedo percebi que não valia a pena contrariar quem mostrava certezas inabaláveis, sobre todo e qualquer assunto, e que reagia mal, às vezes até a simples perguntas que poderiam pôr em causa aquilo que na cabeça do actor (que não estava a representar) se tinha entranhado, e passei, por causa disso, a dizer que sim com a cabeça a tudo, a olhar interiormente para ele de forma condescendente, limitando-me a dizer de mim para mim que havia nele uma tendência (quase mórbida pela insistência) de tudo querer dominar, de tudo querer controlar, de maneira a que se sentisse uma pessoa com alguma importância no mundo. Aquela forma de estar era apenas uma maneira de compensar uma certa impotência no desenrolar da história. Nessa altura ainda não se falava muito de Teorias da Conspiração, mas havia já coisas muito semelhantes enchendo de "importância" quem tinha dado com o "gato", tornando essa pessoa mais esclarecida do que todas as outras. A Teoria da Conspiração mais em voga actualmente é a da Coronaspiração. Veio o vírus e logo se levantaram as vozes dos que "dominam" por inteiro a questão, fazendo questão de que todos saibam o quanto eles "dominam" o assunto, pairando acima da humanidade vulgar. Na verdade, nunca apresentam uma só prova em como o rei vai nú. Saíram para a rua a gritar que o rei ia nú mas o rei nem sequer está na rua, nem vestido, nem despedido. Como o gato da física quântica que nem está morto nem está vivo. Gastam páginas e páginas a avisar a humanidade (normalmente os amigos e os conhecidos mais próximos) querendo alertar para a situação, fazem um barulho estridente na rua, batem latas, e dizem tudo mas, apesar do alarido, o mundo segue o percurso que tem de seguir. As radicalizações estão antes de qualquer teoria da conspiração, elas apenas se servem delas para os seus propósitos. Nunca se percebe de facto como é que essa gente queria que o mundo fosse. Nunca escrevem nenhum manifesto. Dizem sempre "o que se está a passar" segundo a sua forma de ver o mundo, mas nunca dizem como é que as coisas se deveriam passar. Não só não têm coragem para isso como, no intimo, não sabem muito bem como é que seria o seu mundo "como deve de ser" e até que ponto estariam dispostos a sacrificar-se para o alcançar. Sugerem coisas, possuem um ódio difuso e não propõem absolutamente nada. Ou se propõem são de um conservadorismo sem pinga de imaginação, tanto da esquerda como da direita. A sua parca imaginação é canalizada para as Teorias. Nunca para a prática. São pessoas profundamente enfadonhas. Graças ao destino (esse grande malandro) fui vacinada muito cedo contra esse bando de frustrados à solta. Sei perfeitamente quais as perguntas que deveria fazer só para incomodar, mas não as faço porque a resposta é sempre irada e sem ponta por onde se pegue. Nunca têm paciência para os factos. Aliás, uma das suas características é a total ausência de paciência. Nem imaginação, nem paciência. O oposto da Arte que requer as duas.
sexta-feira, 27 de março de 2020
A China, os animais selvagens e o excesso de população
O problema é grande e já vem de trás, chama-se fome e a fome gera gostos excêntricos nos novos ricos da burguesia endinheirada emergente. A fome e a estupidez não são conspirações, são factos. Relativamente ao putativo domínio do mundo, por parte da China, nenhum chinês, com dois dedos de testa, o deseja. A braços sempre tiveram o gigantesco Império do Meio com vagas de fome sucessivas ao longo da sua história (habituaram-se a comer de tudo) e hoje, tal como os EUA, a Rússia, a Alemanha, a França, a Espanha, a Inglaterra, Portugal etc e etc, aquilo que a China procura no mundo são negócios. Este é o vector comum ao desejo de todos os países: exportações e negócios. Até nós não nos livramos da procura do lucro. Dominar o mundo é tentar dominar uma humanidade faminta e crescente. Dominar os negócios é apanágio de uma burguesia inculta nascida das garras da fome mas sem o saber da História como escudo. A forma como tratamos os planeta tem os seus custos. Esta é a única lição a retirar daqui, sejam chineses, espanhóis, americanos, brasileiros etc e etc. Qualquer país está na nau planetária e nenhum deles está livre nem da fome nem da estupidez humanas.
Animais de companhia
Há um grande número de pessoas no nosso país que a única coisa, e a mais acertada, que podem fazer, é ficar em casa. E ficar em casa mantendo-se sãos, física e mentalmente, sabendo que a única coisa que podem fazer é ficar em casa nessas condições. Por aqui o Paxá, que nunca quer problemas com ninguém, deixou-se adormecer, extenuado, com as patas em cima da Matilde. O cansaço superou a mania que ele tinha de "não incomodar a Matilde", sua mãe (com a dona não faz cerimónia). O meu gato Casemiro (fadista de renome aqui no bairro por passar os dias a miar) está traumatizado porque deve ter caído mal. Perdeu o pio, continua coxear independentemente de ter despejado um xarope e seis comprimidos anti-inflamatórios e da veterinária não lhe ter achado nada. Parece que o fadista deixou de cantar o fado e se concentrou no aspecto psicológico da queda, coxeando sem razão aparente embora seja verdade, e os gatos até sabem umas coisas, que o volume de festas aumentou desde que apareceu traumatizado e talvez queira prolongar a causa e o efeito. Os bichos até dão boas fábulas como a do gato das botas que tornou o dono rico, embora fosse sol de pouca dura porque, uma vez rico, ninguém mais soube dele. As peripécias animalescas têm muito interesse mas é apenas sob o ponto de vista dos donos dos animais. É um pouco como aquelas mães que falam compulsivamente dos filhos que são sempre os melhores do mundo e melhores que os outros filhos de todas as mães. É que a virose deixa doente quem tem o bicho e pode enlouquecer quem o não tem, o que vai dar no mesmo. Deste modo, convém resguardarmo-nos em casa tentando ficar o mais sãos possível.
quinta-feira, 26 de março de 2020
Diário da pausa
Por aqui parece que houve uma procura às ferramentas, tintas, parafusos, a mais ou a menos, nunca saberemos, e assim se deu uma explosão de bricolage; outros arrumam o que andavam para arrumar e até descobrem livros dos quais nem se lembravam, objectos escondidos. Memórias. Memória de si. Isto parece uma canção dos anos sessenta em que as viagens que pareciam exteriores eram sempre interiores. E pusemo-nos todos nessa estrada por não nos podermos pôr em estrada nenhuma. Há quem passe o dia à procura do culpado e quem circule pelas conspirações com um ar ágil, como quem dá um passeio descontraído, por entre vírus de laboratório, chineses malditos a quererem subjugar o mundo, (até já se esqueceram dos muçulmanos terroristas, tal é a fúria), ou por uma intervenção dos Estados Unidos na colocação do vírus no mercado de animais vivos na cidade chinesa donde ele veio. Há um pouco de tudo para quem não quer andar pelas suas memórias ou pelo bricolage. O tempo passa na mesma, e o inimigo, digam o que disserem, é o vírus. As estrelas dizem-me que morremos todos na mesma e que alguns, até lá, precisam de inimigos para se sentirem vivos, doutra maneira estariam mortos para o mundo. Mas este vírus quase que diz em surdina para nós voltarmos para dentro, para pegar em livros ou trabalhar com as mãos. Três castas antigas para um terço da população mundial fechada em casa. Os sacerdotes, virados para dentro, os leitores, mesmo que ainda assim procurem compreender os meandros do poder ( casta real ou guerreira) e os outros, artesãos que não perdem tempo com essas coisas e se dedicam a concertar e a reinventar com as mãos aquilo que os rodeia. Talvez agora se achem as vocações que andavam escondidas. Os restantes desesperam por uma razão ou por outra. O monstrengo gira sempre três vezes. Há os que treslêem as minhas palavras e que a seguir patinam vitoriosos nas suas interpretações. Não passa de patinagem artística no gelo da insegurança. Bem vistas as coisas num só dia podemos ser tudo e atravessar as castas com agilidade, de manhã se lê, à tarde se pinta os muros do castro construído no quintal e de noite, a viagem para dentro e fica assim o monstrengo desenrolado, do avesso e não se pense que está derrotado porque o dia nem precisou de inimigos e passou em paz.
quarta-feira, 25 de março de 2020
Os astros
Depois de ter recebido uma mensagem de alguém que dizia que iriam morrer muitas pessoas como morrem muitas no mundo, fiquei intrigada. Neste momento há uma pandemia como sempre houve, disso sabemos, mas a verdade é que se podem evitar mortes. Se estivermos no comando de um avião e se pudermos evitar que ele caia, parece-me óbvio que o façamos. Atribuir essa acção aos astros ou aos deuses, em termos práticos, é irrelevante. Atribuir a morte ao destino, também o é. Se tudo está escrito, a nossa acção é irrelevante. Isto faz-me lembrar o filme Laurence da Arábia no qual uma personagem é salva por Laurence e mais tarde acaba por morrer, sendo essa morte atribuída ao destino. Laurence tinha tentado contrariar o destino. O mesmo fazem os médicos e as enfermeiras. Se são assistidos por anjos ou demónios isso é matéria a ser atribuída aos "mestres" do oculto. Normalmente, fazem como o jogador João Pinto: "prognósticos, só no fim do jogo". A parteira de Hitler terá sido assistida por um anjo ou por um demónio? A criancinha teve de crescer primeiro para se ver. Evidentemente que os "mestres" do oculto preferem dizer que tudo está escrito, que as coisas, no final, contribuem para a "ordem cósmica", sejam elas comandadas por demónios (os anti-destino na visão de alguns) seja por anjos (os do lado do destino, segundo os mesmos). Se as coisas fossem tão a preto e branco (para resultar num cinzento pardo no final) o mundo estava mais do que explicado. Mas não são. Segundo a tradição, alguns cumprem o destino, porque é essa a sua condição. Outros há porém, que por estarem de alguma maneira ligados ao centro, estão para além do tempo e a esses é concedida a providência que é superior ao tempo e ao destino (dizer que a providência faz parte do destino é negar a dimensão extra-temporal e, por isso, extra-astral ou universal). Os defensores de que só há destino dizem frequentemente que existe o livre arbítrio dentro de determinadas balizas e que, mais tarde ou mais cedo, o destino se acaba por cumprir. Negar isso seria também um pouco idiota. O que nos incomoda são os "prognósticos" depois do jogo. A justificação para tudo com o destino e a redução do homem à dimensão espaço-tempo colocando de lado a sua dimensão extra temporal que o pode atravessar, como um raio e mudar o destino. A fronteira entre o tempo e o extra-tempo daqueles que tentam salvar vidas é um verdadeiro mistério. Depois de salvarem uma vida podemos sempre dizer que era o destino mas nunca saberemos se esse destino foi o produto de uma intervenção do extra-tempo, para lá até dos anjos. A dimensão extra-temporal pode dar-nos a ilusão (ou a impressão) de que se tratou do destino mas, na verdade, pode estar além dele. Os anjos e os demónios (ou as marionetas e os fantoches) estarão sempre na esfera do destino mas o mistério da vida e da morte, no seu íntimo, sabe Deus quantas vezes pertence à sintonia absoluta do ser humano com aquilo que está para além do tempo. Quando isso acontece, já não se trata de anjos e demónios. Trata-se de arte. A verdadeira transmutadora dos seres. A arte pode servir-se de anjos e de demónios mas tem os seus alicerces na Vontade/Desejo, verdadeira força que encaminha todo o Universo. Ela, ora contraria, ora utiliza os anjos e os demónios. Qualquer atitude de "superioridade" que vá no sentido de que se "domina" ou que se "conhece" tudo o que se passa tem o nome de "soberba". Na verdade, alguns são fantoches, outros marionetas e outros ainda, muito mais do que isso. Os vaidosos, porém, são só vaidosos. O destino pode sossegar mas também pode adormecer. Nunca saberemos quantas vezes as trovas do Bandarra se repetiram na História. No passado e no futuro. Ninguém esteve vezes suficientes no passado para poder saber isso. Ninguém esteve suficientes vezes no futuro para o saber também. Os ciclos são espantosos mas a espiral ainda o é mais e o seu impulso (ou mola), pertence à esfera extra temporal e dessa muito poucos dão testemunho. Em rigor, nem o chegam a dar. São mais do que testemunhas, estão no centro.
segunda-feira, 23 de março de 2020
Ao esotéricos salivantes
O lado oculto do vírus é que ele não tem lado oculto nenhum. Sempre os houve, e pestes e epidemias. Também não há mistério nenhum no lixo que há no planeta, nem no sistema económico global, nem tampouco nas consequências economicas, sociais e no ambiente provocadas por uma paragem na actividade produtiva dos homens, nem sequer na maldade natural dos homens (os muçulmanos fanáticos continuam a atacar em Moçambique), nem na bondade dos homens que consegue a solidariedade em tempos de crise. Não há um olhar mais profundo, mais agudo ou mais "esotérico", sobre tudo isto. Nunca vi acontecimentos tão distituidos de mistério (o mistério é sempre sublime). A superstição "esotérica" ou pseudo-cientifica relativamente aos astros no que se refere ao que se passa é tão infantil como uma criança atribuir a culpa do choque à electricidade depois de ter sido avisada vezes sem fim para não colocar as mãos na tomada eléctrica. Um dia, perguntaram a um médico chinês ou tibetano, muito velhinho, qual era a origem das doenças e ele explicou que havia duas: umas tinham origem na mente, outras nuns bichinhos muito pequeninos (os vírus ainda não estão classificados como bichos mas são como se fossem). E disse tudo. O que temos são as duas, o bicho, no que toca às epedimias, e a outra, mental, que conseguiu, pela sua capacidade doentia de tudo tentar igualizar, que este se propagasse mais depressa e com consequências, por isso mesmo, mais rápidas e maiores. A crise gerada pela especulação imobiliária também foi gerada por um homem-bicho que acabou preso. As fissuras começam sempre por baixo no edifício, são pequenas no início, depois levam ao desabamento. O único mistério que haveria aqui seria o de um milagre, mas esses, só acontecem quando querem e onde querem e são sublimes. Isto nada tem de sublime e se por acaso se aprender alguma coisa com isto, isso também nada tem de sublime nem de misterioso. Há crianças que aprendem a não colocar a mão na tomada depois do choque, há outras que não. Não é "misterioso", é aprendizagem pura e simples. Os mistérios são para eleitos e não para uma humanidade infantil.
O vírus
Parece que os chineses saíram de casa e que foram, depois da epidemia, passear para os jardins. Foram para os jardins ver as flores, as árvores e os lagos com cisnes. Foi a reacção natural.
Constroem-se caixotes que fingem ser casas. A natureza não é nem para venerar nem para ser acompanhada nas suas formas. O distanciamento da arquitectura para com a natureza parece ser uma marca contemporânea. Perguntar-me-ão: "O que tem a ver a arquitectura com a pandemia?". Respondo: "Tudo".
O planeta é a nossa casa, o modo como a veneramos, cuidamos e a acompanhamos, é o modo como estamos no mundo. O problema do vírus é um problema de arquitectura. Achámos que a globalização do gosto, do espaço, era óptima e independente da natureza. O que o vírus mostra é que nada é independente da natureza. Ela apanha-nos quando quer e ultrapassa-nos se quiser. Substimá-la nas nossas obras é o acto mais estúpido e suicida que podemos ter. A globalização trouxe uma só cultura, um só sistema económico, uma só forma de estar perante a natureza (o mais separada dela possível), uma só forma de criar (os caixotes são todos iguais, sem telhas por onde a água desliza, sem jardins abertos aos olhos de quem passa, circundados por muros altos de chapa ou de tijolo, sem curvas como as da natureza).
Como já escrevi, a natureza não precisa dos homens para nada, segue o seu percurso porque tem de o seguir, mas nós, precisamos dela absolutamente. Acompanhá-la nas suas curvas, na sua diversidade (que é o contrário da globalização), no seu desenvolvimento, enfim, guardá-la como um tesouro que se aprecia e como fonte de sugestão de criação.
O público do que escrevo começou por ser constituído por filósofos com tendências pseudo-aristocratas (muitos deles recusando a aristocracia: contradição nítida) de "iniciação". Não passavam de burgueses relativizantes. Refugiei-me no povo com as mãos sujas de terra e de lixo. Os outros, permaneceram todos "altos-iniciados". O vírus sabe lá disso. A natureza, sabe lá disso. Toda a linguagem da natureza, por sua vez, lhes passa ao lado. Preferem bramir a espada e pensarem-se templários de um templo imaginário ou preferem justificar as viroses com os astros como se eles fossem responsáveis pelos micróbios que os atacam. Não são. A única responsabilidade é nossa por não sabermos venerar nem cuidar da natureza como se fosse um tesouro com tudo o que tem de benéfico e de perigoso. A modernidade persiste em gostar de caixotes e da aberração em termos estéticos porque não tem olhos para a natureza como modelo. A natureza é cega para os homens, como a justiça. Sempre houve epidemias e sempre haverá mas, graças às "globalização" de tudo, desde os sistemas sociais aos económicos, passando pelas formas de ver e de estar, as epidemias atingem todas as esferas humanas, sem olhar a excepções (até porque a globalização tende para a inexistência de excepções) e, quando esta é atingida, é totalmente atingida, do princípio ao fim.
A mentalidade dos caixotes na arquitectura é o contrário da casa e do planeta. Quando o quadrado é atingido, só lhe resta ser esfera. Circular. Como o jardim. Parece que os chineses foram passear para os jardins, depois da epidemia.
Constroem-se caixotes que fingem ser casas. A natureza não é nem para venerar nem para ser acompanhada nas suas formas. O distanciamento da arquitectura para com a natureza parece ser uma marca contemporânea. Perguntar-me-ão: "O que tem a ver a arquitectura com a pandemia?". Respondo: "Tudo".
O planeta é a nossa casa, o modo como a veneramos, cuidamos e a acompanhamos, é o modo como estamos no mundo. O problema do vírus é um problema de arquitectura. Achámos que a globalização do gosto, do espaço, era óptima e independente da natureza. O que o vírus mostra é que nada é independente da natureza. Ela apanha-nos quando quer e ultrapassa-nos se quiser. Substimá-la nas nossas obras é o acto mais estúpido e suicida que podemos ter. A globalização trouxe uma só cultura, um só sistema económico, uma só forma de estar perante a natureza (o mais separada dela possível), uma só forma de criar (os caixotes são todos iguais, sem telhas por onde a água desliza, sem jardins abertos aos olhos de quem passa, circundados por muros altos de chapa ou de tijolo, sem curvas como as da natureza).
Como já escrevi, a natureza não precisa dos homens para nada, segue o seu percurso porque tem de o seguir, mas nós, precisamos dela absolutamente. Acompanhá-la nas suas curvas, na sua diversidade (que é o contrário da globalização), no seu desenvolvimento, enfim, guardá-la como um tesouro que se aprecia e como fonte de sugestão de criação.
O público do que escrevo começou por ser constituído por filósofos com tendências pseudo-aristocratas (muitos deles recusando a aristocracia: contradição nítida) de "iniciação". Não passavam de burgueses relativizantes. Refugiei-me no povo com as mãos sujas de terra e de lixo. Os outros, permaneceram todos "altos-iniciados". O vírus sabe lá disso. A natureza, sabe lá disso. Toda a linguagem da natureza, por sua vez, lhes passa ao lado. Preferem bramir a espada e pensarem-se templários de um templo imaginário ou preferem justificar as viroses com os astros como se eles fossem responsáveis pelos micróbios que os atacam. Não são. A única responsabilidade é nossa por não sabermos venerar nem cuidar da natureza como se fosse um tesouro com tudo o que tem de benéfico e de perigoso. A modernidade persiste em gostar de caixotes e da aberração em termos estéticos porque não tem olhos para a natureza como modelo. A natureza é cega para os homens, como a justiça. Sempre houve epidemias e sempre haverá mas, graças às "globalização" de tudo, desde os sistemas sociais aos económicos, passando pelas formas de ver e de estar, as epidemias atingem todas as esferas humanas, sem olhar a excepções (até porque a globalização tende para a inexistência de excepções) e, quando esta é atingida, é totalmente atingida, do princípio ao fim.
A mentalidade dos caixotes na arquitectura é o contrário da casa e do planeta. Quando o quadrado é atingido, só lhe resta ser esfera. Circular. Como o jardim. Parece que os chineses foram passear para os jardins, depois da epidemia.
quarta-feira, 18 de março de 2020
No supermercado
(Auto retrato meu tirado há umas semanas atrás depois de colocar a echarpe na cabeça na casa da Catarina antes do início da explicação de matemática, só para a fazer rir - já devia ter idade para ter juízo)
Hoje lá fui ao supermercado meio vazio. Estava na fila, com a devida distância de segurança entre mim e o senhor à minha frente e, para além dela, um carrinho a abarrotar com garrafas de água entre nós. Ouço a voz de uma senhora atrás de mim: "Você não está a cumprir a distância de segurança!". Estava visivelmente zangada. Eu nem a tinha visto porque estava virada para a frente e ela a dois metros atrás de mim. Pedi desculpa (hábito idiota quando não as devo pedir, mas faço como o meu cão Paxá que, desde que nasceu, fez questão de sublinhar que não queria problemas com ninguém, nem com humanos, nem com animais, afastando-se mal vê que a coisa pode correr mal), dei dois passos para o lado para ficar ainda mais longe dela. Entretanto abriram outra caixa. Era a minha vez, e eis que a moralista, altamente preocupada com a saúde pública, dá um passo para a frente, finta-me, vai para a caixa que tinha acabado de abrir, passa à minha frente (esquecendo-se por completo da "distância de segurança"), e coloca as coisas no tabuleiro. A rapariga da caixa ainda me chamou mas encolhi os ombros e disse-lhe que não tinha importância. Um casal abordou-me, indignado, com a atitude da mulher, e perguntou-me se tinha visto o que a senhora tinha feito. Disse que sim e que era assim. A senhora, só dizia: "Como é que é possível? Como é que é possível?" Respondi para dentro : "O mundo está cheio de moralizadores que são os primeiros a provocar e a agredir e depois cantam do púlpito e dizem não sabem nada, não viram nada, nem as pessoas que acabaram de agredir". Evidentemente, a senhora saiu e desapareceu, mesmo perante a consternação das testemunhas (nestes casos é bom ter testemunhas). Enfiei-me no carro e fui dar uma volta maior só para ver o verde e o mar, isto enquanto o Conselho se Estado decide o que há-de fazer connosco. Há quem acredite que "o mundo não vai mais ser o que era", mas a julgar pela atitude das pessoas, umas comprando tudo o que vêem sem pensar nos outros, outras a nem sequer saber respeitar uma fila, o mundo, depois disto, vai continuar a ter moralizadores a cantar no alto púlpito (deviam ter sido padres), e outros, parvos, que aprendem com os cães a não ter problemas com ninguém para não piorar a situação. A aprender com os cães, apesar de tudo, vamos melhor do que a aprender com certas pessoas, que cantam bem, mas não convencem. A história das nossas vidas está cheia desses exemplos, de pessoas profundamente egoístas sob a capa do altruísmo.
quinta-feira, 12 de março de 2020
O exílio
Ter uma casa cheia de livros e com material para trabalhos manuais é uma bênção nestas alturas. Que fazem as pessoas dentro de quatro paredes para além de se agarrarem à televisão e aos computadores? Não faço a mínima ideia. Parar. Já vivo nos prazeres do exílio há tanto tempo que não noto grande diferença. Está tudo tranquilo há muito. No entanto, é necessário ter inteligência e sensibilidade para se viver no exílio. É isso que é pedido, acima de tudo. Sem isso, o caos aparece instantaneamente. Devia existir um acompanhamento para os exilados inexperientes. Para que não sofram, nem façam sofrer. E, de seguida, poderem, enfim, parar. E estar bem. E aprender a falar consigo próprios, muito mais do que com os outros. Todo o exílio é profundamente interno, o externo é apenas um reflexo. E tem duas regras: não se estar sozinho e aprender a estar-se só.
quarta-feira, 11 de março de 2020
Os punks
No meu tempo de liceu havia três tribos da moda. Os punks, os "surf' e os neo-romanticos, assim chamados pela forma de vestir que incluía punhos de renda. Lembro-me de gostar mais desta última por uma questão estética. Os "surf" usavam cores berrantes, rosa-choque, verde-alface, laranja gritante. E lembro-me que os punk, que nunca chegaram propriamente a acabar, eram os mais estranhos. Cheguei a assistir a um encontro "punk" numa discoteca. Era uma "trip" total. Com crinas, napas e metais agarrados ao corpo, tinham o aspecto de terem sido atropelados por um comboio e de terem sido electrificados ao mesmo tempo que acontecia o desastre e daí, os seus cabelos em pé, as olheiras profundas e um aspecto enjoado. Nessa discoteca, sem mais nem menos, atiraram-se todos uns para cima dos outros aos empurrões, tropeçaram em si próprios e uns nos outros como se fossem uma espécie de zombies voluntários ao som de uma música pirotécnica para qualquer ouvido. A proposta para pertencer aos zombies foi logo posta de parte. Tinha ouvido demasiado Gershwin na infância para me conseguir adaptar àquilo. Mas percebo que há quem goste. Os surfistas, por seu lado, eram, talvez, leves demais. Sorrisos, paz e ondas. Pouco mais do que isso. Os neo-românticos tinham rendas e uma certa nostalgia do passado o que me agradava. Alguns dos meus primeiros desenhos nasceram com essa moda nas personagens. Uma franja comprida, olhos pintados, laços de rendas, e casacos compridos com cornucópias. Moderno e antigo misturados. Os "surf" berrantes foram desaparecendo até se tornarem mais suaves, os neo-românticos desapareceram nas ruínas da sua própria nostalgia. Os punks prosseguiram na sua senda porque o mundo tinha e tem condições para os acolher. Estavam bem para o mundo tal qual ele se encontrava e continuam a estar. O submundo esotérico não é muito diferente. Bandos de gente cuja napa colada à alma lhes dá uma aura de serem "muit'a bons", olhar hipnótico que revela capacidade de liderança, palavras de metal que aparecem como as únicas verdades irredutíveis e indestrutíveis, crinas bem levantadas que mostram a sua resistência aos embates e o hábito de se atirarem uns para cima dos outros aos encontrões e tropeções para mostrarem a todos e a si próprios que alcançaram uma "pedra" tal que já nada os atinge. O seu anjo há-de ter o papel de uma estrela da música punk quando entra no palco, imprimindo o ritmo aos seus gestos sob a configuração de "missão". O som é ensurdecedor, a missão, profundamente estúpida e o resultado perpétua-se no tempo como um asteróide alucinado e desfigurado a atravessar o espaço. Os punks estão para lavar e durar. Em todos os planos.
terça-feira, 10 de março de 2020
Sim
Primeiro chamaram-me num crepúsculo
Disse que não
Depois, num instinto mais forte
Voltaram a chamar-lhe
Não disse que não, nem que sim
Depois em revelação
Mais uma vez, me chamaram
Disse que sim
E depois
Pegaste em mim
E ascendeste
Às nuvens
Ao céus
Aos abismos
Às estrelas
Aos instantes
À poesia
À arte
Ao sonho
À verdade
Voltaram a chamar-lhe
Não disse que não, nem que sim
Depois em revelação
Mais uma vez, me chamaram
Disse que sim
E depois
Pegaste em mim
E ascendeste
Às nuvens
Ao céus
Aos abismos
Às estrelas
Aos instantes
À poesia
À arte
Ao sonho
À verdade
Mais tarde,
Passei a levar-te comigo
Sempre
Em cada flor, vejo o teu rosto
Em cada palavra, o poema que és
Em cada gesto meu
Há um teu
E todos os fantasmas se dissiparam
E as almas passaram a ser leves
E as nossas unidas
Num sopro de luz
E as benção da vida
À nossa volta
E se o pássaro canta
Em nós canta
E se o peixe nada
No nosso ser habita
E a memória diluiu-se em coisa nenhuma
E fica a claridade da manhã
Pela tarde, pela noite
Pelo sol
Pela lua
E ficamos suspensos no tempo
Como uma respiração desnecessária
E flutuamos no espaço
Como uma dança
Com dragões e estrelas
E constelações diamantinas
Não sabia que o universo era tão grande
Tão grande
Não sabia que estava tão próximo
Não sabia que era assim
Como as notas do piano
Como os poemas que viajam por nós
Primeiro disse que não
Depois, nem que sim, nem que não
Depois levaste-me para tão longe
Para o outro lado de todas as coisas
Para o lado mais oculto
Mais suspeitado
Mais invisível
Onde ficámos presos à liberdade
Reféns dela
Diluídos nela
Ilimitados nela
Visivelmente felizes nela
Invisivelmente felizes nela
E, esse não
Esse nem sim, nem não
E esse sim
Eram afinal toda a liberdade
Que ao pé de ti é possível
E onde o sorriso atinge dimensões
Inadmissíveis
Somos inadmissíveis
Para alguém que não seja como nós.
Passei a levar-te comigo
Sempre
Em cada flor, vejo o teu rosto
Em cada palavra, o poema que és
Em cada gesto meu
Há um teu
E todos os fantasmas se dissiparam
E as almas passaram a ser leves
E as nossas unidas
Num sopro de luz
E as benção da vida
À nossa volta
E se o pássaro canta
Em nós canta
E se o peixe nada
No nosso ser habita
E a memória diluiu-se em coisa nenhuma
E fica a claridade da manhã
Pela tarde, pela noite
Pelo sol
Pela lua
E ficamos suspensos no tempo
Como uma respiração desnecessária
E flutuamos no espaço
Como uma dança
Com dragões e estrelas
E constelações diamantinas
Não sabia que o universo era tão grande
Tão grande
Não sabia que estava tão próximo
Não sabia que era assim
Como as notas do piano
Como os poemas que viajam por nós
Primeiro disse que não
Depois, nem que sim, nem que não
Depois levaste-me para tão longe
Para o outro lado de todas as coisas
Para o lado mais oculto
Mais suspeitado
Mais invisível
Onde ficámos presos à liberdade
Reféns dela
Diluídos nela
Ilimitados nela
Visivelmente felizes nela
Invisivelmente felizes nela
E, esse não
Esse nem sim, nem não
E esse sim
Eram afinal toda a liberdade
Que ao pé de ti é possível
E onde o sorriso atinge dimensões
Inadmissíveis
Somos inadmissíveis
Para alguém que não seja como nós.
(Cynthia Guimarães Taveira)
domingo, 8 de março de 2020
À lupa
Vieram cá a casa à procura da minha existência espiritual, mas não encontraram nada. Alguns livros, a casa minimamente arrumada, alguns animais, duas televisões acesas. Também não levitei, nem fiz milagres. Aqui, não, não temos nada de espiritual. Quanto muito um buda na mesinha do corredor e, na sala, dois ícones, um da virgem com o menino ao colo e um outro com S. Jorge a medir forças com o dragão, um cristo pregado numa cruz decorada com flores de barro, outro de pedra que trouxe de Santiago e que faz conjunto com o próprio Santiago, também de pedra. Na mesma divisão há ainda uma pequena imagem em metal de Shiva. Não há, por isso, indícios de espiritualidade, a não ser que queiram ver alguma coisa de espiritual nas minhas pinturas, mas isso também podem encontrar na natureza ou nos vasos com plantas e flores que estão na varanda. Está tudo quieto. Até os animais dormem, indiferentes a esses desconhecidos que entraram por aqui à procura de pistas. Para me acusar, claro. Mas nada. Uma casa perfeitamente normal, nada de irregular. Passei no teste, na revisão, na auditoria, no inquérito e tenho um registo imaculadamente límpido no que toca à espiritualidade. Os livros, como eles bem sabem, não indicam nada, quer os tenhamos lido ou não. Isto não é o Fahrenheit 451, é bastante mais sofisticado do que isso. Eles sabem que podemos ter uma colecção do Bíblias encadernadas ou não sei quantos tratados sobre metafísica ou sobre religiões que nada disso é indicador de espiritualidade. Assim como entraram, saíram, com as suas maletas as suas lanternas, as suas lupas e os seus gestos experimentados na busca de indícios. São uma espécie de polícia. Sinceramente, penso que são um pouco burros. Quando encontram alguém com um vestígio de espiritualidade, pegam nessa pessoa, levam-na, mesmo contra a sua vontade, e nunca mais regressa. Ninguém sabe o que fazem com essas pessoas. Desaparecem, simplesmente. E também não se sabe ao certo que tipo de indícios procuram. Talvez qualquer coisa anómala ou pouco natural como levitar ou transformar qualquer coisa noutra coisa. Não sabemos ao certo, mas o que é importante é que não tenham encontrado nada pois assim posso prosseguir com a minha vida normal e com a minha espiritualidade votada à clandestinidade e à invisibilidade.
sexta-feira, 6 de março de 2020
O Espírito Barroco
O horror ao vazio é uma das características do espírito barroco, no entanto, para quem nasceu fadado com esse espírito, existe uma diferença fundamental entre o excesso e o essencial. Ainda que tudo no barroco pareça excessivo, para que o seu espírito viva, é afinal, essencial. Tudo está onde deve estar. Na época actual confunde-se excesso com essencial, coisa que o barroco não faz nem nunca fez. O excesso de fantasmas dos outros que já trazem uma vida interior, em princípio, sobrelotada é absolutamente dispensável. Alguém que treme à nossa frente só porque mencionámos qualquer coisa que para essa pessoa faz parte da sua rede de sincronias é alguém sobrelotado em si mesmo querendo extravasar o que há a mais de si para cima de nós, dando-nos um destaque que verdadeiramente não temos a não ser no seu próprio mundo. É assim que as viroses se espalham. O vírus é sintoma do espírito também. Assim, morrer e desaparecer, em linguagem simbólica, pode ser muito mais interessante do que morrer e aparecer. O aparecimento só faz ruído e enche a pintura barroca com o desnecessário. Estraga a pintura, por assim dizer. Ainda para mais, como não há morte, a qualquer momento o nosso próprio fantasma pode fazer as visitas que quiser, onde quiser e a quem quiser. A nossa época não lida bem com esse tipo de liberdade porque essencialmente, segundo a voz geral, temos todos que andar na linha. Se é para morrer, que andemos, quais cisnes, por entre os outros e os seus fantasmas. Como se fosse uma lei, uma obrigação. Ao ser uma obrigação dignificada por outros já é uma pseudo-morte, por mais que o cisne sereno finja que está presente... Na época actual detestam-se pessoas livres porque elas conseguem dar destaque a alguém que não sejam elas próprias. O devido destaque e não essa mistura promíscua de sintomas de sintonias "afantasmadas" que pendem sempre para o lado mais desnorteado. E preciso ter muita coragem para morrer e desaparecer, e voltar como fantasma sempre que nos apetece. Um fantasma que assombra, que faz estremecer, que questiona e que, sobretudo, estrague o espectáculo de vedetismos, esses sim, desalmados, que derramam os seus próprios fantasmas em cima do palco para cima dos outros. O espírito barroco aceita os seus fantasmas. Mas apenas aqueles que pertencem à sua pintura. Os outros, estão a mais. O espírito barroco, é, em si mesmo, essencial. Uns nascem com ele. Outros não.
Subscrever:
Mensagens (Atom)