domingo, 29 de dezembro de 2024

Bom Ano, meus amigos


 

Meus amigos:

 

Dizem os astrólogos que o próximo ano, em termos mundiais, não vai ser bom. Também o Guru indiano, Sadhguru informa que nos próximos seis anos, a actividade solar (cujos ciclos são de aproximadamente 11 anos) com os seus ventos, tempestades e erupções vai estar em alta e, atendendo ao facto dessa atividade ter efeitos em tudo o que não se vê como, por exemplo, o campo magnético da terra, a radiação ultra-violeta ou a emissão de raios-X e podendo danificar redes de energia e satélites, é natural que afecte igualmente toda aquela parte subtil do ser humano que embora não seja vista, existe e pode ter repercussões na saúde física e mental das pessoas. Bem vistas as coisas, nem é necessário que hajam avisos de astrólogos ou de gurus indianos, está à vista desarmada, o rumo que o planeta se propôs tomar e, desta forma, o nosso desejo para vós, meus amigos, é que protejam aquilo que ainda é humano. Como o bicho da seda, façam um casulo e enfiem-se lá dentro pois outra forma não há de sobreviver às tempestades solares e humanas. Lembro-me de me terem contado que, por altura do 25 de Abril, houve neste país uma grande confusão com ataques terroristas e tudo e que ao ver aquilo que se passava, Agostinho da Silva telefonou a Dalila Pereira da Costa e disse-lhe para não sair de casa enquanto a confusão não passasse. Pois agora passa-se o mesmo, só que é uma confusão que já começou há alguns anos com lideres mundiais tresloucados, magnatas e oligarcas, não menos tresloucados a comadarem o destino de mundo. Ora estando a nossa parte subtil exposta às tempestades solares e a nossa parte menos subtil exposta a essa gente, torna-se urgente a formação de uma crosta que nos proteja de todos os ataques. Imaginemo-nos como um bunker em andamento, respeitando as regras mínimas sociais, trabalhando nos trabalhos idiotas que nos dão, mas que, ao jeito do filme “Farnrenheit 451” ou do livro de Orwell “1984”, possamos formar, individualmente, uma resistência digna de ser contada mais tarde. De vez em quando há sinais de alguma resistência como aquela entrevista que li no outro dia feita ao realizador Denis Villeneuve (sim, o do filme “Dune”) onde explica ao jornalista por “a” mais ”b” o porquê de ter proibido os telemóveis e  de obrigar toda a equipa a ficar de pé no set de filmagens, afirmando que a “presença” humana é fundamental, quer psíquica, quer corporal, para o desenrolar da arte, neste caso a arte cinematográfica. Não sabemos onde é que ele aprendeu isto, mas está cheio de razão.  Podem vir a ocorrer pequenos sinais de pessoas que estão a contrariar a tendência crescente para a estupidificação e falta de criatividade propostas pela empresas de tecnologia. Tal como o aprendiz de feiticeiro, quando, mais tarde, estivermos reféns de algo que já não controlamos, haverá grupos e indivíduos não associados a qualquer grupo, que serão os resistentes e que guardarão a réstia do que é ser-se humano, impedindo o suicídio absoluto e colectivo a que assistimos. Assim, meus amigos, se quiserem fazer parte desses que vão guardar alguma forma de humanidade,  estão convidados a treinar dentro do vosso casulo, a vossa própria liberdade porque é dentro de vós, e não fora de vós (cada vez mais) que ela se encontra. Para isso, escolham livros e prefiram-nos às redes sociais ou às informações algoritomizadas e militarizadas, desenvolvam trabalhos manuais, fujam, sempre que possível, para a Natureza que resta, impermeabilizem-se para que a chuva fertilizante do “Reino da Estupidez” (lembrando o admirável título de uma obra satírica de Jorge de Sena) não vos atinja e pensem pelas vossas próprias cabeças, unindo, se possível, a razão e o coração, a par com a criatividade pura, a mesma que tínhamos em criança. São esses os grãos de mostarda, o berço de palha de Moisés, ou a arca de Fernando Pessoa, todos residentes na mão da Santa Providência, a maior e mais virtuosa presença de Deus. Só desta forma vos podemos desejar um bom Ano Novo, pois só dessa forma ficamos bem com a nossa consciência sem embarcar em fantasias histriónicas e fogos tão artificiais como a inteligência moderna. Desejar um Bom Ano, não é uma fezada, nem um desejo tolo de adolescente de que a sua equipa ganhe o campeonato, é antes uma refeição completa, como um bacalhau com todos: inclui o propósito do que andamos cá a fazer, a noção do que é o ser humano, a consciência do desenvolvimento das suas capacidades (e não das máquinas) e o respeito pela Natureza. Sem isto, o Bom Ano são palavras atiradas para o ar. A única forma de o desejar é acrescentar a palavra resistência e o que esta implica. Sem resistência nunca haverá nem descendência dessa resistência nem ascensão. 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Hoje

 


"Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,

Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,

Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. [...] /

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente."

«Passagem das Horas». Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 26b.

E assim acontecendo, em fragmentos somos compreendidos pelos fragmentos que outros são. Se deixas acontecer a voz da verdade,  a falsa aparência trémula, luz de vela ténue e insegura, ilumina, indiferente toda a sorte da unidade que és, como um comboio lento atravessando a paisagem, fotografias sucedendo-se, diálogos suspensos a meio. "Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis" é o momento que não ousam nem ver, quanto mais acontecer! Se existisses hoje, neste lugar, Fernando, serias crucificado de todas as maneiras: ladrão e filho directo de Deus, ao alto e na diagonal e não haveria religião que te sustentasse! Eis o caminho!

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Tocha

 




Isto de andar com uma tocha antiga na mão para iluminar o caminho, por vezes, torna-se desconfortável pois sem querer acabamos por incendiar os corações e as consciências das pessoas à nossa volta. Somos uma espécie de espalha brasas que tentando a todo o custo não dar muito nas vistas, logo sai tudo ao contrário porque ao caminhar nas trevas com uma tocha na mão, nada mais dá nas vistas. E perguntamos que outra forma há senão a de iluminar o caminho com a nossa luz. É que não há mais nenhuma. E isso irrita as pessoas ao nosso redor. As inseguranças, as invejas e os medos profundos emergem imediatamente do caos absoluto em que se encontram. O nosso silêncio tumular é uma impressão digital que deixamos na história sobre nós que não sabem contar e como que pressentindo essa ignorância logo se apressam a contar histórias, todas elas fantasistas, numa espécie de superstição improvisada, mas suficientemente anafada para lhes preencher o ego que assim se acha sábio. Por vezes tenho que lidar com pessoas assim, mais mulheres do que homens, porque nada incomoda mais uma mulher do que uma mulher calada. Alguns homens também caem na superstição imediata, mas são mais raros. E, essas mulheres, que outra coisa não são senão mulherzinhas, são tagarelas, opinativas, chatas como tudo e simplesmente ignorantes. O caos rodeando estes seres é total, pois embrenhadas que estão nas coisas práticas da vida, a dimensão do sonho, da poesia e até, em último grau do Amor, escapa-lhes. São verdadeiros soldados romanos, adensando um exército sem fim e tendo nós um nome grego, dificilmente achamos graça a tanto belicismo, vivendo mais no mundo das ideias e dando-lhes o devido valor. Sempre que somos lancetados por lanças atiradas em forma de histeria disfarçada de disciplina, estas não chegam a doer, mas causam incómodo como moscas rodeando a cabeça, daquelas de Outono que parecem loucas por se reproduzirem.  Adensa-se ainda mais o silêncio como forma de recuperação do incómodo e, por isso, a irritação externa aumenta ainda mais, tomando a dimensão de um monstro gigantesco com várias cabeças. Às tantas torna-se desproporcional a medida de ambas as partes. A irritação é em demasia e o silêncio também. É nessas alturas que aterramos e iniciamos as palestras sobre as coisas práticas da vida com uma ironia fina interior e imperceptível pelos semelhantes. Normalmente resolve-se assim. Acalmam-se os bichos, a vida sem Mistério é muito mais confortável para eles e a sua condição de inaptidão para a demanda é reinstalada e legitimada por conversas triviais e repetitivas. Parece a tortura da gota de água do chinês. Peço imensa desculpa, mas demandar é uma forma de criar. Quando não estamos a fazê-lo, estamos a tapar buracos e a deitar água sobre a tocha que nos ilumina o caminho. Não há nada mais anti-higienico do que falar sistematicamente da higiene da casa. Não há nada mais anti-higienico do que não  criar. Fica tudo um caos, uma porcaria. 

sábado, 30 de novembro de 2024

Olá, Fernando.


Já sabes, por esta altura, de que não aprecio muito aniversários de morte. Vista daqui, deste planeta, a morte significa ausência, visto daí, significa, presença. É por isso que, apesar do desagrado, te escrevo, por vezes, nesta data. O mundo tem sido um lugar estranho. Tem sido sempre. Tenho cada vez mais vontade de fugir para outro, pois se não fossem as paisagens, alguma beleza e algumas palavras, não estaria aqui a fazer nada. O teu sonho parece cada vez mais um delírio, mas, bem vistas as coisas, também estiveste presente numa época de ditadores emergentes. Para quê alarmarmo-nos se os homens em democracia escolhem o que querem e o que não querem? A política não me interessa e o sonho não interessa à política. O teu sonho, então esse, parece uma ave ascendente no céu que deixa de se ver. Quando não sonhamos, andamos de sobrolho carregado, e é assim que todos andamos, por mais eventos e festas e festarolas que se organizem. 
A réstia de humanidade que alguns conservam parece condenada. E falo apenas em humanidade, porque se falar em gente viva, esses desapareceram por completo. Só aparecem em sonhos, daqueles verdadeiros, quando estamos a dormir e somos deuses criadores. Aí onde os mortos ressuscitam. Época sombria e pesada como o metal, esta. Não há propriamente novidades porque vivemos num ciclo repetitivo até à loucura. Estive a ver e a ouvir uma entrevista de um autor que está na moda hoje, sim, o Yuval Harari, e ele informou-nos de que a Inteligência Artificial poderá ser a ditadora do futuro. Que há de novo nisso? As ditaduras são todas iguais. São fotocópias impressas até ao infinito. Por isso, não há novidades. Só haverá quando o Espírito entrar por aqui adentro. Somos, como humanos, agora, incapazes de novidades. Só as paisagens são novas porque o Sol nunca está igual e nós não temos nada a ver com isso. Apanhamo-las, por acaso, como se as fotografássemos numa viagem de comboio. As pessoas andam com demasiado medo para até serem sensíveis. O medo é dominante. Medo de nós próprios. Aqueles que criam, à moda antiga, ainda com as mãos, puxando um poema do céu, uma pintura da beleza, um suspiro do divino, fazem-no na extrema solidão. É só isso que se passa. Se o fizerem para fora de si, são eliminados. Com um golpe. É por isso que vivemos em ditadura, porque na sociedade das festas, quem subir pela poesia, transforma-se no bobo dela, enquanto dura e as pessoas não regressam ao seu medo. As grandezas são o tamanho dos mísseis ou o número de fãs de uma cantora. A grandeza nunca está no homem. Os homens querem-se pequeninos e obedientes a todos os estímulos. a grandeza é tida, aliás, como falta de humildade... réstias do papaguear dos padres que nunca souberam que os seres grandes nunca sabiam que eram grandes, inspirar uma nuvem inteira e soltá-la em forma de mil pombas era natural para eles... Como tu és grande. Mas se vivesses hoje, também escreverias num sótão esquecido qualquer, como já o fizeste. Como vês, nada mudou. Cai a nostalgia como o crepúsculo. A nostalgia indefinida que não sabemos bem de que é. Ao pé dela, a esperança é enfadonha, porque só temos esperança em que o dia a dia seja melhor. Mas a nostalgia, retira o dia a dia, e fica suspensa num sem tempo que é bom. Nós vimos que era bom. Estamos fartos do tempo. Nunca se sabe muito bem o que fazer com ele e chantageia-nos sempre que pode. Se o Amor, como disse um grande homem que conheci, é esse vigarista (o que me ri com ele!), o tempo é um chantagista. Cobra-nos as moedas todas que dizem que Deus nos deu. É um coletor de impostos divinos. E chateia-nos. É um miserável, sem eira nem beira e sem a grandeza de se recusar a si próprio. O tempo, cansa, os tempos como estão, no plural, ainda cansam mais. Dão aquele sono que se abate sobre o triste sujeito que se limitou a almoçar e cuja digestão o deixa trôpego, quase alcoolizado. Incapaz, até de criar. Espera e espera que a digestão se faça, e afasta os sentimentos de culpa que o tempo lhe cobra por não se encontrar a multiplicar as tais moedas (que nunca ninguém viu) e afasta, por fim, os pensamentos todos como se fossem diabretes para que a tela fique de novo em branco e a possa preencher como um recém-nascido a sorrir pela primeira vez, depois daquele choro convulsivo. Nunca percebemos porque não nascemos já a rir. Ou pelo menos calados, normais, com alguma seriedade. A berraria é que não entendo. Parece que nascer é um drama, quando não é. E morrer também não porque é nascer. O ser humano é mesmo triste. E nós, meu amor, não temos nada a ver com isso. Não temos nada a ver com esta humanidade. O nosso choro é fingido. Só para agradar e receber aplausos: "Choram tão bem!". E o que nos rimos, porque o Amor, esse grande vigarista, está do nosso lado. 
Um grande beijinho,
da sempre tua,
Cynthia

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Pior a emenda

 


Continua a ser pior a emenda do que o soneto. Talvez tenha sido por isso que sonhei com uma cabra autista que só estabelecia contacto comigo.  Identifiquei-me com a cabra e com o seu autismo. Tenho almoçado com autistas ultimamente. Aprende-se com eles o momento do momento. Ainda ouço comentadores televisivos a sugerirem ao público que tenha plena dos políticos pois estar no lugar deles não é fácil. Dá para rir sem controlo. Estar em qualquer lugar hoje não e fácil, no deles, no nosso ou no dos vizinhos. A época é difícil, de compaixão e de auto compaixão. Sobra, por isso, a cabra autista, a única que sobrevive ao caos sem tirar aqueles que se enfiam nos bunkers que já estão ser construídos. Ligeiramente saltitante, a cabra lá vai andando, como a dona do sonho. E a dona é tão autista, mas tão autista que só partilha um sonho: o da cabra autista, isto para sobreviver. Qualquer tentativa de emenda que faça é pior do que o soneto, porque logo se levantam  espadas, ou de um lado ou de outros e o que a cabra quer é paz, ainda que o soneto não seja grande coisa. Em tempo de guerra, que se danem os sonetos, apenas as flores são apetecíveis, quer para a cabra gulosa, quer para a dona do sonho, talentosa. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O que me adormece e o que me acorda


Dei por mim tentar ver uns vídeos com filosofos portugueses a falarem sobre a alma lusa. Não consegui ver até ao fim nenhum deles devido aos excesso de sono que me causaram. E pensei nos tempos em que frequentava colóquios e encontros e pensei "como é que aguentei?". Hoje já não tinha paciência e o simples facto de ter de me deslocar para ouvir palavras repetidas até ao infinito é um pensamento que me causa aflição. Tenho andado a ver uns vídeos que falam muito de drogas que provocam estados alterados de consciência. Tem sido muito interessante, sobretudo porque essas drogas não me atraem nada. Até agora tem sido tudo "ao natural" e suficientemente alucinante para perceber porque é que as palestras filosóficas me dão sono. Não há mistério filosófico como o da nossa própria vida... Encontro-me a dar aulas e o estado do país mede-se nas escolas. Está podre. Não é o facto de haver alguns filósofos que falam para o público que tem alterado a degradação total da sociedade portuguesa. É a absolutamente inútil. O que é útil, mesmo, é chorar por dentro. Não é vir lamentar um passado que não volta mais com lágrimas de filosofia. É chorar mesmo com o coração todo e berrar a sério, bem dentro de nós. É disfarcar-mo-nos de gente comum e andar no submundo em que se tornou a sociedade portuguesa para que todos não dêem pelo nosso choro, pelo  nosso desgosto, pelo nosso desagrado. Nada se tornou mais vão e mais perigoso do que as palavras. Não valem nada e podem matar. Falar é ser bipolar. Chorar é ser uno. No outro dia fui montar a exposição com quadros que já têm quinhentos anos de estadia em minha casa. Perguntou-me a senhora responsável pela exposição o que significam os quadros. Dei por mim a respirar, a sorrir e a não me apetecer explicar nada porque se fosse verdadeiramente a explicar a senhora ficaria a chorar cheia de alma pelo suicídio coletivo do país e do mundo. Pausei. E ainda a sorrir disse-lhe que eram símbolos. Total inaptidão no olhar da senhora. Parecia que lhe tinha falado marcianez. Levou a conversa para a auto-ajuda, não sei porquê. Sei. Por causa da literatura de cordel dos supermercados. Sorri, simpática, a pensar que tinha de me ir embora dali o mais depressa possível. Não queria explicar nada. Não tinha nada a dizer. Quando estamos furiosos com tudo, é melhor não dizer nada. Mais vale chorar e berrar para dentro até que alguém ouça lá em cima. Depois pus-me a caminho por colinas verdejantes e um sol radioso sobre o campo de outono. Aí já não chorei. Amei. Amei aquele verde gritante em contraste com um sol que estava ali só para iluminar os montes e as folhas douradas e os vários verdes ao longo das colinas. Se estivesse bem com o mundo como anda, estava louca, assim, estava sã a ver o verde que não parecia deste mundo. As palavras dos filósofos são dolorosamente vagarosas em comparação com a exaltação que me provocou aquele verde. Não sei explicar o desalento que me invade. Não é nenhuma depressão, nem loucura. Penso que é uma descrença momentânea na humanidade. Uma espécie de certeza de que "não vale a pena" sequer tentar explicar nem pinturas, nem símbolos, nem a alucinação que tem sido a minha vida sem ter experimentado qualquer produto alucinante. Não é uma descrença em mim, é mesmo na humanidade porque anda a enveredar por caminhos que não sei se têm retorno. Eu retorno sempre. A humanidade parece perdida. Penso que há uma espécie de guerra surda onde exércitos de lados opostos se degladiam, nem sei bem porquê. Mas dizem as alquimias que é necessária a decomposição. É, é doloroso ter de assistir a isto. Que pensam as águias lá em cima de tudo isto, enquanto olham cá para baixo? A filosofia não me interessa, mas o passado é delicioso. Perco-me na pré-história como num labirinto mágico. Também poderia ter dito à senhora que as pinturas eram estelas, rituais apanhados a meio, seres maravilhosos doutro universo. Mas o olhar moderno que se deitam às estelas é idiota, como se fossem uma imagem tosca a comparar com os efeitos especiais de um qualquer filme. Ou então, momentaneamente, um olhar inquiridor que logo se esmorece porque já é hora de almoço. O olhar fica cinzento e baço rapidamente, tão diferente das colinas verdes ao sol. Onde estão os vivos? Estive a ver o olhar dos filósofos e não brilhavam. Não tinham vigor na voz. Arrastavam as palavras como chinelos por casa. Dependendo do clima, mostro a minha vitalidade. Mas é cada vez mais difícil. Escondo-me e disfarço-me para fingir que sou deles, que sou eles. Ando nas vielas dos corredores da escola e bebo galões ao lanche. Faço o possível para que não me vejam os olhos e o meu verdadeiro sorriso. Faço o possível para que não saibam da alegria que sinto quando vejo os montes e os pequenos vales onde acima as águias espreitam. Ninguém pode saber nem disso, nem das minhas lágrimas, nem dos meus berros que lanço aos céus. Não o faço por maldade. Faço-o por bondade e bondade também para mim mesma. Se me esconder dou a mim mesma a hipótese de não ter de me explicar e de arrastar as palavras como se fossem chinelos velhos pelos cantos do mundo. Porque sempre que falamos somos esses filósofos que nos fazem dormir. E, a ser qualquer coisa, prefiro ser aquela águia cujos pensamentos não adivinhamos e que paira acima da paisagem, engolindo-a com o olhar. 









 

domingo, 13 de outubro de 2024

Camionista





A tabuleta assim, pendurada, esquecida, abandonada à indiferença, remete, mesmo que não queira, não a uma qualquer nostalgia, porque essas são sempre agradáveis, mas sim ao arremesso que o vento dá ao que quer, quando quer. Passámos do Portugal amordaçado do Ary, para o Portugal arremessado para um qualquer canto. Em abono da verdade, estamos sujeitos ao vento arremessados para onde calha. Nem com um reles orçamento se encontra um acordo, quanto mais em relação ao resto. Estamos num mundo sem ponta de poesia e Portugal não tem muito jeito para este tipo de mundo. Neste mundo das falsas notícias, tudo é, em contramão, realidade férrea, metálica, pesada e insistente naquilo que a realidade tem de abrutalhado. O mundo é um camionista ao volante, braço tatuado para fora da janela com o cotovelo ao céu, barba de vários dias, daquela que pica como espinhos, desmazelo orgulhoso de si, palito nos dentes, trincado depois de remover restos do almoço com sabor a banha servido à beira da estrada, óculos escuros espelhados onde se adivinha a tempestade próxima e reflectida, ténis velhos, do trabalho, saltando entre o acelerador e o travão. Calças de ganga, americanas, claro, porque a América é azul e é lá que está o Deus, qualquer que este seja; na rádio, a música pimba porque povo que é povo é brejeiro, goza e ri com um humor abaixo do infantil. A estrada é longa e leva ao objectivo do mundo que é um armazém onde se retêm produtos por pouco tempo, seja aí, nas lojas ou nas casas. Os camionistas não são mercadores, nem têm essa dignidade, são iguais ao seu camião, brutos, feios, largando fumo, com letras gastas e placas a balançar ao vento porque ninguém está para pregar um prego e acabar com o balanço. Já teve mais charme este mundo. E lá por dentro, no motor do camião, a combustão das guerras cujas explosões o fazem andar, andar, em direção ao armazém dos produtos, transeuntes vindos de uma qualquer fábrica que não é nem melhor, nem mais feliz que o camionista.  Nunca o silêncio foi tão de ouro. Mas ouro velho, daquele que é o de um pôr do sol de Outono. Ouro que se distancia, para além de ser silêncio. O silêncio distanciado. O ouro? Sabem lá do ouro, da luz ou da poesia que é a mesma coisa. Para se ser decente, hoje, tem de se andar com o coração magoado. Se não se anda assim, somos camionistas agarrados ao tempo e ao vento da estrada. Só o coração magoado se eleva no seu choro fino, só ele acena à poesia quando ela passa montada numa fénix, só ele a vê, ainda assim, para além do ferro e do chumbo, vestida como sempre está, de glória.

domingo, 29 de setembro de 2024

Coleccionadores, galeristas e psicopatas

 




Com o título "The Kill Room - Arte Fatal", um retrato fiel do coleccionismo, dos galeristas e dos artistas. Com a diva Uma Thurman. 





terça-feira, 23 de julho de 2024

Luz


 (Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)

Hoje acordei cedo com o barulho dos pássaros, uma discussão entre galinhas na capoeira aqui perto, o luar, o despontar do sol. Tanta luz logo pela manhã. Tinha acabado de sonhar que retornava a uma casa que não era minha nem me dizia nada. Esse retorno, impensável naquilo a que se chama vida real, deu-me uma sensação dupla de liberdade e do perfeito desligamento com o passado. A memória é apenas útil nalguns casos, como este, que nos diz que o passado não prestou o serviço que lhe era devido e a sua utilidade não vai além disso. É o desligamento do passado que nos solta os gestos futuros. A luz do sol e da lua, o canto dos pássaros e a discussão das galinhas pareciam os contrastes possíveis dentro daquilo a que chamamos luz ou manhã. A tentação de acordar e de largar um sonho que não me interessava mais foi demasiado grande, como se houvesse uma fronteira abrupta entre o passado e o presente, sem continuidade ou possibilidade de resolução. Penso muitas vezes que o passado não é resolúvel em vida e que só depois da morte as coisas se compõem, uma justiça que tem de ser adiada se quer efetivamente existir e não aparecer meia morta aparentando todas as Disneylândias do mundo. Há um silêncio qualquer que me acompanha e que é essa fronteira abrupta, não só entre o passado e o presente, mas também entre a não espectativa e a espectativa de tudo. Um silêncio que é todo ele terreno de possibilidades inexploradas onde o paradoxo de aguardar sem aguardar é possível. Caminho sempre envolta nessa capa. A capa-simbolo, não só de proteção, mas igualmente de espaço, de liberdade, de vontade e, sobretudo, de invisibilidade. Logo a seguir sonhei com umas torneiras quadradas, possivelmente vindas dos anos sessenta. No sonho dizia que as torneiras eram velhas o que provava que a casa era velha. Não era antiga, era velha. Ora sabendo que a água é fluida e tende para a curva ao mínimo apelo, aquelas torneiras quadradas, muito prateadas ainda (o tempo parecia não ter passado por elas), tudo me pareceu paradoxal: a visita a uma casa velha, com velhas pessoas que estavam ainda novas como as torneiras quadradas. As torneiras, donde jorra a água viva, não eram apropriadas às curvas, à fluidez. Desse passado não levava nada a não ser uma personagem, demasiado envolvida na casa, que se apresseva em julgar o facto de ter regressado. Um julgamento idiota por não saber do meu total desapego a esse passado. Olhava para a personagem, que abanava a cabeça, desapontada por ter regressado e dizia para mim que não percebia nada desse regresso, que esse regresso era inócuo em mim porque das torneiras quadradas nunca poderia jorrar água verdadeiramente viva. Era um passado que não percebia nada do meu tempo presente, interpretando tudo mal. Acordei porque a luz despontava, a do sol e a lua, também ela ia brilhante no céu e entravam as duas pelas festas das portadas. Esse era o meu tempo presente. Luz. 

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Parabéns, meu querido Fernando


 Muitos parabéns, Fernando. Pois escrevo-te de novo embora, por aqui, nada de novo exista. Se Camões, depois de vir lá dos orientes, escreveu que todo o mundo é composto de mudança, o que é certo é que se esqueceu do minimalismo temporal no qual as mudanças que ocorrem são mínimas. É o que se passa, neste teu e nosso país. Estamos rodeados de écrans, de tal maneira que, só em casa, tenho cinco. Todas as telas revelam imagens e o mundo não é mais do que uma imagem projetada. Eternos espectadores quase impassíveis, adormecidos e distantes das avarias e desvarios mundanos. O meu coração parece uma ave e ouço nitidamente o seu bater das asas. Imagino-o projetado lá em cima  e com ele, os olhos de águia, sobrevoando esta suposta realidade. Não há muito que relatar a não ser sonhos sucessivos que são o desenrolar do mundo cada vez mais afoito, dando pequenos passos em direção a nada. Resumindo, a loucura está instalada e veio para ficar durante muito tempo e, aqueles que não são loucos, ou que o são numa outra dimensão estão fechados em guetos interiores. Cada qual criou um gueto só para si e finge que vive. Não tenho muitas opiniões porque cada vez há mais coisas e não tenho nem tempo nem disponibilidade para ter e dar uma opinião sobre tudo. É mais confortável assistir silenciosamente e com algum desinteresse. Parece que o Quinto Império, ou a Idade do Espírito Santo, ou outro nome qualquer que adquira uma nova Era já não me vão tocar em vida, excepto, claro está, nos mundos com os seus tempos e espaços paralelos. O inferno não são propriamente os outros até porque nem têm classe para isso. O que há é um mastigar do tempo e das muitas coisas que há cada vez mais. Se os homens da pré-história devem ter morrido de tédio ao longo de milhares de anos, não menos se morre agora do mesmo, ainda que em constantes festivais, competições e disneylândias, não havendo diferença nenhuma entre as três. É assim que se dá a involução tão apreciada nos dias de hoje e tão ternamente chamada de evolução. Resta, para os vivos, alguma curiosidade. E há cada vez menos vivos. As novas gerações, alimentadas a ecrãs multicor, depressa são redesenhadas e transformadas em zombies festivaleiros. E, não fora a curiosidade, a paisagem e os pôr-do-sol  (gosto e escrever com hífen porque contém assim a linha do horizonte e os três “ós”, que são três sois, o do amanhecer, o do anoitecer e o do dia e a lua, essa, tem um “u”, crescente ou decrescente, tanto faz...) e nada teria importância, aquela importância que pesa e conta nos seres humanos quando não estão entretidos a matar, a ofender ou a respeitar a bestialidade que há neles... Lidar com isto, Fernando, obriga a um alheamento, até da própria memória: os retratos dispostos pelas casas, fazem sofrer. Qualquer presença de um outro tempo mais doce, faz sofrer quando caímos na realidade deste que é feito de azares provocados e onde a sorte não entra. Não é em vão que te explico o que se passa porque sei que vais contar aos anjos que te rodeiam. Vais ler-lhes esta missiva em voz alta e vais desenrolar o pergaminho devagar, com ar solene. Escrevo-te duas vezes por ano, uma no dia em que nasceste e outra no dia em que nasceste de novo junto aos anjos. São datas sérias que requerem alguma atenção, alguma cerimónia e quiçá, alguma magnificência e daí, escrever-te.

O mundo está farto de arte porque não sabe o que é a arte.

E assim me despeço, com muitas saudades, meu amor.

 

Da sempre tua, Cynthia.

 

 

domingo, 9 de junho de 2024

Dias mágicos


 Acredito que todos tenham dias ou momentos mágicos, que saem da órbita monótona dos dias, que se elevem como sonhos e que residam numa impressão, numa sensação tão forte que nada os abala. Foi assim, naquele dia em que cheguei a Veneza, entrando nela pelo Grande Canal, e desembarcando na Praça de S. Marcos. Só que daquela vez, foi tudo diferente, uma orquestra tocava numa das esplanadas, apenas essa orquestra tocava nessa noite, naquela praça, o Bolero de Ravel. E dei por mim a dançar, numa praça semi-vazia, há muitos anos, ao som da música crescente, crescendo também a meus olhos a Basílica de S. Marcos, dourada, brilhando na noite. Lembro-me que a música durou exactamente o tempo da travessia da Praça, com o seu culminar, e o culminar da minha dança em frente à Basílica. Para sempre na minha memória como coisa mágica, uma oferta do acaso a quem, como eu, ama aquela cidade. E outros dias há, assim, mágicos, em que tudo daparece em volta dessa memória, desses momentos sem tempo, como aquele, na Costa onde tínhamos casa com alicerces enterrados na areia aveludada, com um grande avarandado onde jantávamos ao pôr do sol, mas naquele dia, diferente. Pousámos os talheres quando nos demos conta de que o mar estava negro, a temperatura morna e o sol dourado já próximo da linha do horizonte e, numa espécie de hipnotismo comum, cerca de dez pessoas, largaram a refeição e entraram, sem palavras e sem qualquer razão lógica, pelo mar adentro, e o mar estava quente e as algas verdes escuras eram aquelas que lhe davam aquela tonalidade negra. E lembro-me de homens e mulheres colocarem as algas no pescoço como se fossem colares vivos, e de nadarem e rirem até escurecer. Dias perfeitos e mágicos, sem perguntas nem respostas, apenas a adesão a eles, como se lhes pretencessemos desde sempre. Outros há, para descrever, embora a escrita não chegue a eles, nem dê sequer a intensidade da sua memória. 

domingo, 5 de maio de 2024

O drama


 O drama do teatro em vida é que este ocupa tudo, a atenção, o palco, o cenário, o tecto da casa de espectáculos, os atores, o texto, a ideia, as luzes, os trajes, os sons. Ocupa de tal forma tudo que mais nada se passa e o espírito afasta-se por não ser necessário. Isto quando é bom teatro, porque o mau ainda ocupa mais lugar no pensamento. A força da memória aparece como uma musa falante: "O teatro é a queda do Rito". É muito raro conhecer alguém que utilize o teatro para que o Espírito faça a sua aparição.  Na verdade, só conheci uma pessoa capaz disso, todas as outras necessitam de rito como de pão para a boca e uma das coisas que aprendi com essa pessoa, foi a reconhecer aqueles que tentam,  em vão, fazê-lo. A forma de reconhecer passa pelo coração e daí que não haja volta a dar a alguns candidatos a atores-mestres. Continuam perpetuamente no limbo que o seu teatro proporciona. Mas como o espectáculo começa e acaba com eles, o drama é total. O Espírito nem espreita por falta de espaço. Quando estamos perante Ele através daquele único que conheci, Ele brilha como uma jóia na noite. Exactamente  o contrário da máscara. A memória é um forte. O Espírito é a Hora.

domingo, 28 de abril de 2024

O homem e a natureza


 O mundo encontra-se num tal estado de inferioridade que mostrar alguma superioridade perante ele é um acto de lúcida loucura. Obedeço  a regras muito simples quando escrevo, um delas é a de não querer saber o efeito que provocam as palavras. Se quando pinto, a pintura, um vez terminada, vive para além de mim, o mesmo se passa com as palavras. Soltas são e soltas ficam. Se digo que “não somo todos iguais”, essas palavras iniciam o seu voo em revoadas e atingem os que pensam exactamente o contrário só porque não se dão ao trabalho de pensar que não há nada igual a nada na natureza e no mundo. Esse é um dos casos em que a “utopia” pode encarnar, ou seja, a ideia encarna, mas não há corpo que a suporte, apenas e tão só, um corpo deficiente, torto consegue suportar, e mal, a encarnação da utopia, simplesmente, porque a natureza não aceita aquilo que não existe. De maneira que as pessoas podem vir com o argumento que ”em termos políticos somos todos iguais, que por exemplo, que somos iguais perante a lei”, ao que respondo, depende do advogado, do juiz, dos conhecimentos, da riqueza, do prestígio, da sorte, do contexto, da própria lei em vigor no momento. Este é um dos exemplos mais crassos em que se vê que não somos todos iguais. Perante esta frase também podem afirmar: “Pensas que és melhor do que os outros?”, ao que respondo “sou melhor que muitos e pior que muitos”, e mais uma vez, lá se vai a igualdade por água abaixo. Aquilo que a política tenta fazer, hoje, para além de andar a reboque (e só anda a reboque) dos negócios do mundo é achar denominadores comuns, a parte mais baixinha da fracção. E nunca consegue, e nunca consegue ser plenamente justa também, no entanto, tenta fazer crer que é o melhor de todos os sistemas, e o melhor de todos os piores sistemas. O denominadores comuns só conhecem a equidade quando são multiplicados e devem sê-lo por números diferentes, nunca iguais. Isto passa-se também a nível do sistema económico mundial, frágil como a estátua do sonho de Nabucodonosor. Sempre que é atirada um pedra, seja o discurso de alguém, algum desfalque ou algo semelhante, a estátua treme e normalmente os preços sobem para sempre. Assegurado, por isso, deve estar o nosso quintal onde se plantam alguns vegetais, não vá o diabo tecê-las...

A maior parte do tempo ando magoada, magoada com tudo o que se passa e pergunto-me porque é que é assim, porque não vivo indiferente e feliz, orgulhosamente só. Mas ando orgulhosamente cheia do mundo dentro de mim. Uma das funções que tenho é falar. Não para as pessoas que não ligam ou são surdas, mas falar para o alto e fazer o relato do que se passa. Mesmo sem palavras, lá em cima, são bons leitores do coração. O caractere chinês que indica “o homem”, é também aquele que indica que este faz a ponte entre o céu e a terra. Somos pontífices naturais. É por isso que, as castas tradicionais vão da todas ao mesmo, porque na essência, fazemos todos essa ponte. É esse o único grau de igualdade aceitável, mas até as pontes são todas diferentes... até no que ligam. A melhor maneira de viver, continuo a pensar, é como faço: tenho as conversas que os outros querem (andam tudo louco com o seu próprio espelho, lá está, a igualdade), e escrevo o que me apetece. Com os outros, sou eles, sem os outros, definitivamente, não tenho nada a ver com os outros. A minha total insatisfação, a minha total alma atormentada, não permite conversas, apenas monólogos e alguns recados para o alto. Admitir isto, hoje, é heresia. Da mais pura, porque ser que é ser humano tem de ser sociável, se não o for, não existe. É agradável não existir neste mundo. Mergulhar nas águas e ver as anémonas que não nos veem a nós. Como disse o Miguel Sousa Tavares, a humanidade divide-se entre aqueles que já viram o fundo do mar e os que ainda não viram. Mal sabe ele a razão que tem. As anémonas não se dão conta de que estão no fundo do mar, já dizia Platão. Caverna ou fundo do mar, tanto faz, vai dar no mesmo. No Japão há um passatempo fabuloso por entre os criadores de carpas: procuram a carpa perfeita. Eles sabem que as carpas são todas diferentes, e têm tanques onde elas se reproduzem. Os japoneses têm a esperança de encontrar aquela carpa que é perfeita. Penso que nem eles sabem muito bem o que é a perfeição, mas procuram-na com a certeza em que no dia a que encontrarem a reconhecerão. Acho isto espantoso como alegoria da demanda. Relativamente aos sistemas políticos, já aqui escrevi que como disse um alquimista” o homem é aquele que contém em si todos os animais”, pois na verdade, conseguimos imitar todos e, como cada espécie (às vezes até mesmo dentro da mesma espécie), tem a sua organização, o problema da organização social (hoje denominada de política e transformada em pura economia) é grande pois teria que se escolher uma parte do todo, sacrificando algo. É isso que se passa. O homem completo, total, não necessita de escolher, vive apenas de si para si ligando-se e ligando a terra com o céu. Esta é a anarquia-monarquia sublime. A única capaz de preencher os requisitos e as potencialidade humanas: a anarquia divina da qual o homem é rei. Tudo o resto, são partes, como a economia atual são remendos sucessivos, pensos rápidos paras as crises sistémicas. O homem vai manco enquanto tentar encarnar utopias porque a natureza não admite o que não existe, enjeita e ignora. O homem desperto estará tanto mais ligado à natureza quanto maior o seu despertar. Só assim ela o acolhe e conversa com ele. Só assim, juntos se redimem. Ora se andamos a reboque de economias periclitantes e de pensamentos suicidas em estado permanente (quem pensa que está aqui para se aproveitar e para aproveitar ao máximo é um suicida em acto pois não acredita na eternidade, é um ateu por natureza, natureza essa que o recusa e o rejeita...) nunca haverá sintonia entre o alto e o baixo. Ganham em simultâneo o Euromilhões e um cancro incurável, à conta de tais pensamentos e atitudes. É por isso que penso que esta civilização está condenada, e ainda bem. Foi mais uma tentativa frustrada. Vamos lá ver é se não é a própria humanidade, tal como a conhecemos, que está condenada. Houve várias e se tiver de ser preciso, Deus tenta de novo, sem problema. Tem todo o tempo do mundo...

quinta-feira, 18 de abril de 2024

O deus, o provinciano e o actorzeco

 

 

https://antena1.rtp.pt/programas-antena-1/alguem-diga-a-joaquim-de-almeida-que-nao-e-al-pacino/

O provincianismo português, a falta de segurança em nós próprios e a subserviência ao estrangeiro estão incrustadas na nossa gente. Este podcast de Luís Osório, é mais um exemplo disso. No triângulo mental criado pelo autor do texto, existe o deus Polanski, o provinciano que é próprio Luís Osório, fiel representante de três dos maiores defeitos da nação acima mencionados e um actorzeco que venceu lá fora. O texto até não começou mal, mas quando Joaquim de Almeida tem o desplante de duvidar da coerência de um guião que lhe foi apresentado pelo próprio deus da película, aí a coisa começa a correr menos bem. Osório indigna-se porque o atorzeco não chega aos calcanhares do deus Polanski, e tudo o que o deus Polanski quer é para cumprir. O actorzeco Joaquim, como bom português, deveria colocar de lado o seu gosto pessoal, os seus critérios de qualidade, aceitar humildemente o convite, chorar de emoção e até e beijar os pés do mestre, dizendo-lhe que faria tudo por ele. O mais engraçado nisto tudo é que Joaquim de Almeida acabou mesmo por aceitar o papel, não pelo guião, mas pelo realizador. Tudo estaria bem se tivesse ficado em silêncio, mas caiu no erro de abrir a boca e de se manter firme relativamente à sua apreciação do guião, nada que um actor não tenha o direito de fazer. Fico a pensar qual seria o comportamento  que na cabeça do jornalista o actorzeco português (tratado com paternalismo pelos americanos) deveria ter tido e das duas uma: ou devia ter aceitado logo o papel, pois tratava-se de um convite feito por deus, talvez até mesmo sem ler o guião,  ou deveria ter ficado calado, guardando o que se lhe passava na alma para si porque perante os deuses estrangeiros só temos de silenciar. Nós, portugueses, estamos assim desde que D. Sebastião resolveu desaparecer nas areias de Alcácer-Quibir, na queda total na disforia. Isto até vem a propósito de uma conversa que estava a ter à mesa ainda há pouco, antes de ouvir esta magnifica prosa de Luís Osório que exibe, qual super-homem, a t-shirt do provincianismo, da falta de segurança e da subserviência portuguesa (pode até mesmo mandar fazer bastantes t-shirts com essas temáticas, era negócio garantido pois o povo português, no geral, identifica-se com todas as suas palavras), dizia eu que estava a conversar à mesa sobre a forma como quando nos dizem desde a infância que não valemos nada, que não somos nada e nem nada do que fazemos presta, nos condiciona os gestos posteriores, nos condiciona a vida, nos tolhe e não nos deixa sermos totalmente nós próprios. Este tipo de pensamento apresentado pelo jornalista está para o  país como está o nevoeiro pairando sobre a pátria. É muito bonito, chega a ser quente, provoca um certo silêncio interior e exterior, mas não nos deixa ver o sol. O texto de Luís Osório, até não está mal escrito, envolve-nos, convence-nos, mas o bom senso passa-lhe ao lado. Bom, da Luz, então dessa, nem se fala. 

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Judeus


Fui ganhando respeito e admiração pelos judeus ao longo dos anos. É uma coisa que se aprende. Condenados a serem nómadas, sem terra, sobreviveram pelas suas crenças, os seus valores, a sua cultura , o seu amor às letras, a sua forma de ser (que são variadíssimas), muitas vezes mal tratados apenas por serem diferentes (como os compreendo), muitas vezes bodes expiatórios de tantas situações. A Europa, no mapa está cercada por uma ferradura islâmica. Relativamente ao Islão, que tende a não fazer a exegese do texto sagrado (ao contrário dos judeus que são viciados nisso: para eles um novo ponto de vista sobre o texto é considerado e guardado e lido) e que tende a depositar as esperanças em líderes e em Deus, mais do que no povo (muito ao contrário do judeus, que depositam a esperança nas pessoas e em Deus) e que tende ao conflito, mesmo entre eles, com as suas sistemáticas divisões, esse, não me atrai tanto, talvez por ser mulher e não gostar da forma como essa religião as trata (nada que o ultra catolicismo ou o ultra judaísmo ortodoxo não façam também, é verdade), mas o que menos me atrai no islamismo é a simplicidade: cinco pilares e está feito um muçulmano. O Judaísmo e o Cristianismo, são complicados, sendo que o primeiro ainda é o mais. A vida é complicada e, nessa medida, estão mais próximos da vida e da Vida. Há pessoas em Portugal que se esqueceram da forma como Portugal foi construído: só há Portugal porque houve resconquista cristã. Parece-me que se se passa na Idade Média, conquistar território aos muçulmanos (que são altamente territorialistas), então é legítimo, se os israelitas, rodeados que estão por países muçulmanos, constroem um colonato, cai o céu e a trindade. Eles têm de ser sempre bodes expiatórios de alguma coisa, e no caso português, a reconquista ainda é mais doida: muito território moçárabe e muitos moçárabes (cristãos que viviam sob o domínio muçulmano) morreram às mãos dos cristãos vindos do Norte. Isso é legítimo, aos olhos de alguns apenas porque se passou na Idade Média e não agora, pois conquistar território a muçulmanos de forma a defender uma nação nos actuais dias é criminoso... dois pesos e duas medidas. Seriam os países muçulmanos os primeiros a querer ajudar os palestinos, mas como sabemos, não ajudam, nem querem saber (a humma é uma utopia) porque entre muçulmanos nunca houve paz, nem sabem o que isso é. Ontem vi um filme extraordinário: "Fica connosco" de Gad Elmaleh, inteligente, benigno e com sentido de humor. Aos que me espiam secretamente, recomendo, mesmo que me odeiem por este texto. Francamente, o filme vale mais do que qualquer ódio. Vale pelo humor, pelo amor e pela Vida. 

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Bacocos


Bacoco, aparece como sinónimo de pacóvio, ingénuo, pouco esperto e por aí fora, aparece como um dos argumentos para que o logótipo adoptado para a República Portuguesa, a malfadada, prevaleça e foi,  afinal, colocado de lado. O novo governo, tal como prometido, voltou à esfera armilar. Ouvi de tudo, desde que era muito pouco como primeira medida adoptada até ao facto, segundo alguns progressistas entusiasmados, de o antigo logótipo, leia-se a bola amarela e os dois quadrilongos laterais, serem muito mais fáceis de trabalhar pelas novas tecnologias, mas, por enquanto, ficar-me-ia pela palavra “bacoco”, pois penso ser uma palavra deveras interessante. O pacóvio, o ingénuo e o pouco esperto que prefere o antigo logótipo é também um conservador, um anti-progressista, um retrógrado, um palerma. Tive um professor de parentesco (parte do estudos antropológicos) que me disse para atirar os livros de Mircea Eliade para o lixo porque estava ultrapassado, pelo que lhe perguntei se também Platão estaria, algo que o deixou calado. Os antigos gregos, com todos os seus defeitos, deixaram-nos, entre outras, três perguntas fundamentais, “Quem sou? De Onde vim? Para onde vou?” e são elas que estão no cerne do debate que nasceu em torno de um logótipo, ou de dois logótipos. Os que defendem o logótipo com a esfera armilar, podem não entender racionalmente porque o defendem, mas pelo menos intuem estas perguntas, os outros nem conhecem estas perguntas. Passado presente e futuro não vivem uns sem os outros e são os bacocos que parecem aperceber-se disso, consciente ou inconscientemente. Já os outros acreditam no futuro e em mais nada, como se isso fosse possível na terra do devir. Um futuro sem passado não se aguenta, abate-se sobre si próprio, e os símbolos, descobertos nesse passado, fazem parte do passado (digo descobertos porque lhe foi retirado o véu) e logo, pertencem à esfera da pergunta “De onde vim?”. Sabendo isso, passa-se para a seguinte, “Quem sou?” de depois para a outra “Para onde vou?”. E na verdade, o movimento actual de progressistas, não sabe, nem quer saber. Só sabe que o antigo logótipo não é bom para trabalhar com informática. Não se submete, e faz muito bem. Porque não é o símbolo que tem de se adaptar à tecnologia, é a tecnologia que tem de se adaptar ao símbolo. Esta é apenas uma das caraterísticas da inversão das coisas. O símbolo é hierarquicamente superior à tecnologia e não o inverso. O bacoco sabe disso, intuitivamente. Mas, os verdadeiros pacóvios, bacocos e ingénuos são aqueles que acreditam que a tecnologia é um grande barco que nos leva não se sabe muito bem onde, porque nunca fazem a pergunta “Para onde vou?”, até porque não fizeram as duas primeiras. São uns ingénuos, crentes e cegos. Os dilemas do século XIX continuam em força. Isto são questões básicas, o b-á-bá da existência. A criação de um mundo onde a assimbolia, ou seja, a impossibilidade de utilizar os sinais e/ou símbolos para se compreenderem ideias é o encontro com a bestialidade, e parece-me ser essa  a vontade inicial de todo este movimento progressista, porque há sempre um propósito nas acções ainda que não esteja visível. A raiva ao símbolo é apenas um sintoma de uma doença, de uma falha, de uma incapacidade. Nós, que nascemos para expandir a consciência, procuramos dar cabo dela, contraindo-a até à sua inexistência, até que se abata sobre si própria. Um dos propósitos dos símbolos é serem capazes de abrir portais da consciência. Mas o progresso está na tecnologia... que se irá abater sobre si própria, arrastando os homens com ela. O que não é novidade nenhuma. E aí, seremos uma bestas, tal como sonhámos, longe dos símbolos, longe do céu e bem longe de nós próprios.

quinta-feira, 28 de março de 2024

A picareta

 







Este irmão do ex-primeiro-ministro não quer guerras culturais mas quando faz estas afirmações já está numa.
Podia explicar-te muito melhor o que se passa, mas como tu sabes sempre tudo não precisas que te explique nada, bem sei que te preparas muito bem sempre que tens de entrar no ar. Imagino que começas a estudar logo pela manhã e só páras à hora em que apareces na televisão. Apeteceu-me oferecer-te uma picareta para destruires os símbolos portugueses, mas em vez disso, proponho-te que estudes o seguinte tema e subtema: símbolos e símbolos portugueses ou de Portugal. A sapiência e a cultura, ao contrário do que pensas, não leva uma manhã e uma tarde a adquirir, leva milhares de anos e tu és a prova viva de que a informação só serve para que possas desbobinar aquilo que aprendes rapidamente, em poucas horas, enquanto a sapiência fica em silêncio a admirar ignorantes como tu. Também, e sendo tu filho de pai indiano, brâmane ainda por cima, te posso oferecer uma picareta para ires à Índia destruir duma vez por todas os símbolos de uma cultura que te corre no sangue e assim ficas com o serviço terminado. A verdadeira guerra não tem nada a ver com partidos políticos que são todos idiotas e só servem para partir o país todo (eles nem sequer são reflexo de algo maior pois a qualidade dos políticos hoje é uma desgraça), a verdadeira guerra é entre a sabedoria e a ignorância. Também te posso oferecer uma t-shirt com uma pintura de Mondrian para passeares com ela todo contente com as duas picaretas, uma em cada mão. Mas vendo bem, até tens razão, o símbolo é tão mau que serve perfeitamente a República, nunca o Reino e para ficar mesmo perfeito só falta acrescentar um cacho de bananas.



sexta-feira, 15 de março de 2024

Lua Nova

 


 

Talvez seja apenas necessário guardar um grão de vida e andar com ele no bolso interior do coração e não o mostrar excepto às crianças e aos animais, os únicos capazes de o identificar, os restantes estão cheios de rugas na alma e têm os olhos pregados ao desgosto e o desgosto pregado nos olhos.  Desde que saí do jardim, tem de ser assim. Lá podia ser eu própria e andar desnuda, sem vergonha nem medo, mas cá fora temos de nos cobrir de trapos e de véus para não haver nenhuma desgraça. Neste mundo woke, todas as excentricidades são permitidas, menos a verdade. E no mundo anti-woke, o mesmo se passa e o mesmo ainda no que não é nem deixa de ser e onde se é funcionário  de uma democracia bizarra encaixotada em tecnocracia e profissionalismo, seja lá o que isso for. Já passamos por muitos escritores que agarraram o “sonho de Portugal” sempre esbatido no pano de fundo que é o Quinto Império. Hoje olho para trás e vejo uma grande jornada feita durante décadas por esse sonho fora, mas a sua materialização não pode ser feita dentro de pessoas cheias de rugas ou com o desgosto pregado nos olhos e os olhos pregados ao desgosto, de maneira que afasto o pensamento desse sonho e coloco-o, como uma vez fiz com um livro, no topo da estante, encostado à parede, num ponto incessível e invisível que só eu conheço. Não se deitam fora os sonhos, sobretudo este, o de Portugal. A única coisa a fazer é colocá-lo longe do nosso olhar, não pensar muito nele para não nos tornarmos impacientes numa altura em que o globo terrestre não está para brincadeiras com noventa e nove por cento de loucos, enlouquecidos por o restante um por cento. Evidentemente que temos de estar fora do mundo, a orbitar em volta dele, com um grão de vida no bolso interior do coração e a brincar com ele, dentro de nós e para nós, como se fosse um berlinde. Um abafador, abafado, só utilizado nas almas que valem a pena, como as das criança ou dos cães. Giramos à volta do mundo como se fossemos satélites à espreita e à espera de uma oportunidade para cair em cheio nele e então sim, começar a transformá-lo. Até lá, apenas ouvimos a música das esferas e rebolamos na relva com cães e crianças. Também descemos dunas de areia gigantes e rebolamos como se fôssemos bolas e rimos todos juntos do nosso segredo que o mundo não vê. Desse e do segredo da gruta onde escondemos, num sítio inacessível, o sonho de Portugal. Claro que há quem fale dele, mas ou o desvirtuam (apenas quando falam dele) não o beliscando sequer na sua essência (é apenas uma tentativa de apropriação impossível de se concretizar) ou não serve para nada falar dele  porque há palavras cujos ouvidos actuais nem reconhecem, ficam imediatamente surdos à passagem do seu som e por isso não vale a pena falar de certas coisas, mais vale rir e rebolar pelas colinas e ser-se satélite sem nome, nem voz, nem fama, ser uma constante lua nova e permitir que as trevas se instalem em sossego, deixá-las respirar e ser o que são e não as incomodar com sonhos nem com nomes de países demasiado misteriosos para serem ditos em voz alta. Não se pode dizer o nome de Portugal em voz alta, só se pode sussurrá-lo pois a força do seu nome equivale a um tsunami e ninguém quer um tsunami na sua alma. Ninguém quer morrer para renascer. Às vezes penso-me como guarda-livros, mas não daqueles que fazem contas, antes daqueles que os guardam de facto dentro de si, como no filme Fahrenheit 451. Ainda não chegámos ao ponto dos livros serem proibidos, apenas os sonhos o são. Podemos ler tudo, desde que não sonhemos. E muito menos temos permissão para entrar num sonho, isso é o sacrilégio mais trágico. Duas realidades apenas se querem sobrepostas, nunca fundidas. É por isso que o ponto não é uni-dimensional, é bi-dimensional. A sobreposição é aceite, ser-se várias coisas ao mesmo tempo, em paralelo, sem se tocarem e dizer a toda a gente que se trata de um ponto, de uma unidade. É mentira. São várias, sobrepostas num líquido. São liquefeitas, dissolvidas, mas não unidas, fundidas numa só.  Como o nome de Portugal é unidimensional, não pode ser dito em voz alta, como o segredo do Templo. Simplesmente porque o mundo não ia aguentar e talvez passasse por um grande período de choro, ou de dilúvio e ninguém quer um dilúvio, nem chorar. Preferem um desgosto colado aos olhos porque assim a boca ainda pode sorrir sem conhecer o sabor da lágrima. Sem o sal, sem a vida. As trevas, neste momento, são muito mais interessantes porque ofuscam a luz e nós disfarçamo-nos de lua nova, mas as trevas que carregamos são de uma outra espécie, daquela que contém tudo e onde tudo flutua em expectação, embora quem nos veja de fora, veja apenas a lua nova, a permitida, como um livro que se lê sem poder ser sonhado. 

domingo, 10 de março de 2024

Nunca chega


 A quantidade de Comunistas que no Alentejo votaram no Chega mostra bem o compadrio... Se os Socialistas e os Sociais Democratas não fizessem tanto mal ao país não havia tantos votos nos carrascos. Resumindo, desde que haja a ideia de Socialismo, todos se favorecem e lutam entre si para ver quem afunda mais o país. Ou já se esqueceram do nome do partido do Hitler? Não vão ao médico, não... Viva o Rei, que nunca foi Socialista! 


O progresso

 


sábado, 9 de março de 2024

Dia de reflexão

 




O presidente da República Portuguesa bem tenta convencer as pessoas a votarem, no entanto, está tanto frio e tanta chuva... e estas alergias de Primavera também não ajudam, com espirros e tosse e os olhos inflamados. Há agora um Guru indiano que está muito na moda e diz ele que as alergias aparecem porque as pessoas não gostam do mundo como está. O pólen é mais severo quando não estamos incluídos. Bem vistas as coisas até os excluídos do costume já estão incluídos nesta massa de gente uniforme e os verdadeiros excluídos são os alérgicos, carregados de rinite severa que vão para os cantos da vida tossir, esfregar os olhos e maldizer as mucosas. Eles não percebem porque é que estão assim. Antigamente não havia tantas alergias e já me disseram que começaram em força na minha geração, nos nascidos na década de sessenta que já a nasceram revoltados, mas com os sintomas baralhados: em vez de irem para as ruas gritar - não nos obriguem a isso, já dizia o Zeca - espirram, tossem e assoam-se com demasiada frequência e são, por isso, a verdadeira oposição. São permanentemente excluídos das reuniões onde se juntam as pessoas incluídas, porque os ataques de espirros e de tosse são de tal maneira grandiosos que são obrigados a sair para não incomodar ninguém e são também excluídos da vida social pelo mesmo motivo e porque quando aparecem as crises, a última coisa que apetece fazer é conviver. Os outros não percebem o que se passa, pensando que a alergia é uma fragilidade do sistema imunitário quando é exactamente o contrário, é uma força viva que procura expelir do corpo o mundo da maneira como está. Os alérgicos, verdadeiros excluídos de um mundo inclusivo, são a resistência camuflada de doença e só na consciência de que isto é mesmo assim, como o guru indiano disse, é que se fará uma reviravolta no mundo que se encontra de pernas para o ar. 

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

AI


 A AI parece que agora se quer meter no meu trabalho. Esta modernidade anómala invade todos os espaços. Tenho de me fingir desalmada e inexistente para sobreviver, como as vitimas de violação. Apetece-me dizer que não quero AI para nada, mas os meus pares pensam o contrário e como vivemos numa democracia, a maioria ganha, mesmo que esteja senil. Ainda me hão-de explicar qual é o interesse disto tudo se os Mistérios permanecem os mesmos. E os carácteres também. Filhos, meus ricos filhos, nada supera a nossa mão, ligada ao cérebro, ao coração e ao restante corpo. Fecho-me como os caracóis, dentro da minha própria casca e guardo e aguardo por essas conversas tão interessantes com os anjos. Infinitamente maior é esse espaço de reserva, longe do puro absurdo cheio de estigmas e cicatrizes. A inadaptação ao mundo dá-me para ter alergias. Passo a vida a espirrar como que a querer expulsar o ar que ingiro e que não me pertence. Passo bem sem a AI, porque a minha já me dá trabalho suficiente. Sempre que me apresentam uma novidade, espirro. Mas não são espirros normais, parecem vir do fundo da alma, são fortes demais para um resfriado, são metafísicos, como diria o meu querido Pessoa, mas não são poéticos, são literais, altamente terrestres, de tal forma que tocam o metafísico, excedem-se a si próprios. Todo o corpo estremece com esses espirros alérgicos que me salvam a vida. Não fossem eles e morreria soterrada em novidades vãs e em atitudes idiotas. Sorrio com a maior doçura para os loucos, dando-lhes toda a razão para existirem com esse sorriso, mas por dentro canto: "A mim não me enganas tu, a mim não me enganas tu, a panela ao lume e o arroz está cru" porque o fogo do espírito não existe neles, e o paradoxo da cantiga é esse. 

domingo, 21 de janeiro de 2024

Ascensão



 Olhei indiscriminadamente para os sonhos e revi-me neles, como notas fugazes, notas de rodapé que desbravam caminhos. É possível ser-se fugaz sem se ser fútil, como os sonhos e relembro a possibilidade, cada vez mais visível, dos sonhos dentro dos sonhos, onde um deles é esta nossa vida ... os sonhos balançam, mas não caem, ao contrário das ideias e das ideologias, permanecem como marcas na areia sem que os seus passos se dissolvam na água ou no ar. A vida é tremenda pela quantidade de possibilidades e pela qualidade delas. É esta sapiência do onírico que atravessamos que nos permite ir à substância das coisas. Mas uma substância feita de choques contínuos onde a sapiência de atravessarmos os sonhos em nada nos ajuda, se assim fosse, não seriam os sonhos esses choques contínuos... e a tentativa de resolução deles em nós. E há qualquer coisa que subsiste e não se afoga no rio do esquecimento. Como esse homem gigante que vi mergulhar e desaparecer nas águas para em seguida dar por mim numa ascensão tão rápida que me levou no sonho a balançar, sabendo que não cairia por conhecer de cor essa ascenção vertiginosa, como um passo de dança, tantas vezes repetido. É essa partícula de nós que não se afoga no rio do esquecimento e que antes ascende como resultado dos sucessivos choques a que foi sujeita. Já diziam os alquimistas. Quando os havia...

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

A Caridade Cristã

 

Auto de fé no Terreiro do Paço, século XVIII

Há dois dias atrás sonhei que um padre com uma expressão horrível pegava na minha mão à força e me obrigava a benzer. Eu só lhe dizia que não era preciso aquilo tudo porque sabia como fazê-lo, mas o homem insistia e apertava-me a mão obrigando-me ao gesto. Acordei furiosa com aquela personagem “feita da matéria de que os sonhos são feitos” e procurei a justificação  para a minha psique ter feito tal coisa. Não é necessário ir muito longe para entender a repulsa que as conversões à força me fazem sentir. Lembrei-me imediatamente da Inquisição e da “caridade cristã” lusitana que não teve nenhum problema em queimar vivos na fogueira cerca de 1500 hereges (segundo números de Borges Coelho), após um julgamento indecoroso e quem sabe todo o tipo de torturas, isto tirando os milhares que apodreceram nas chamadas “prisões” que foram apenas aceleradores de morte. Não contando com o Index, as perseguições e as denúncias que acenderam no nosso povo a coscuvilhice interesseira e atiçaram a inveja apontada por Camões. Sempre duvidei da caridade chamada de cristã, pois conheci bastantes pessoas que parecem procurar a negociação da salvação à conta da mesma. Não entendendo eu a salvação como uma negociação, nem sequer entendendo a salvação das almas como uma espécie de estacionamento das mesmas sentadas ao lado do Senhor, tudo o que provém da chamada caridade cristã me cheira a esturro (devem ser restos da fogueira onde ardi noutra reencarnação...). Qualquer religião que conduza ou à loucura ou à morte está consideravelmente enferma. Naturalmente me dirão que a morte é compreensível, mas que a loucura é subjetiva. Não é, se também ela conduzir à destruição e à morte. Dirão, mas hoje em dia já não há fanáticos cristãos como havia antigamente. Sim, não se veem muitos por aí à vista desarmada, mas convenhamos que o embrião da superioridade moral está sempre lá, pronto para a nascer. Temos um Trump que se diz enviado por Deus (e é cristão!) e por cá temos o oportunista Ventura que se diz “pessoa de bem” alargando o espectro desses escolhidos se votarem nele. Evidentemente que também é muito cristão e anda de braço dado com os padres desde a adolescência. Essas "pessoas de bem" e esses “escolhidos por Deus”, são exemplos acabados de como o cristianismo (não Cristo pois esse está longe de tudo isso tomara ele que não o colocassem no mesmo saco dessa gentalha) está sempre pronto a utilizar-se a si próprio e a ser utilizado como rampa de lançamento de motivações políticas altamente duvidosas e que de caridade não têm nada. Os mesmo vícios, as mesmas atitudes, as mesmas afirmações de superioridade moral, atravessam a História como flechas. E Cristo ali tão longe... Por cá, aos patriotas incultos (algo que é verdadeiramente paradoxal) e, por vezes, aos patriotas cultos (o que ainda é pior pois denota malformação de carácter), dá-lhes um acesso de superioridade e num piscar de olhos, puxa-se-lhes o pé para a extrema direita... também há muitos exemplos e é assim que Cristo é pau para toda a obra  e pau para todos os votos, até para os interesses mais obscuros. Decididamente, não vivemos em tempos bons, antes caóticos, onde os ecos de figuras demoníacas que existiram na História parecem regressar como fantasmas, assombrações que andam ao lado dos oportunistas, e ao lado dos democratas, agora na moda, candidatos esses, também, a fantasmas do futuro. A visão é sublime, num primeiro plano temos os oportunistas contemporâneos, ora com vestes extremistas (de esquerda ou de direita), ora com vestes socialistas várias, democratas ou simplesmente socialistas ( o socialismo é uma religião sem Deus) e ao fundo e à volta deles, fantasmas voadores, disformes provindos do lado negro da História para rematar o pesadelo. O enjoo e a falta de esperança entendem-se na perfeição e o gosto pela destruição junta-se ao festival de mau gosto, a começar pela destruição da própria História, reduzindo-a  lutas políticas modernas de forma a legitimar tudo: partidos políticos, associações, modos de vida, revoluções, manipulações e até instituições. A História já não é o que era... tornou-se numa arma política e nem motivo de meditação parece ser. Cristo está na História e na Meta-História e, como tal, também não é motivo de meditação. É apenas o pretexto, uma encenação tornada explicita para outras realidades alternativas. Em vez de interior, tornou-se num ser social, num arremesso mesmo a propósito, numa justificação, numa escada para o poder, no objecto preferido do príncipe deste mundo, seja por ser escolhido, seja por ser remetido para a obscuridade e inutilidade. Já nada é intimo, interno, demandado  sequer, porque, exteriormente, todos o promovem, todos o trazem no porta-estandarte, seja exibindo-o como luz, seja não o exibindo como Trevas e exibindo-o, por isso mesmo. Ele é mais uma vez maltratado, chicoteado e enxovalhado. Sempre que isso acontece, sempre que o exterior se sobrepõe ao interior, algo corre mal. O esvaziamento interno alimenta o exterior, o superficial, o ignóbil. Não são necessários cristãos, nem anti-cristãos. São necessário pré-proto-cristãos. Aqueles que ainda são livres.  Aqueles a quem o padre tem a tentação de agarrar na mão e de obrigá-los a benzer. Aqueles que, simplesmente por existirem, enviam esse tipo de padres imediatamente para o inferno.  Aqueles que estão numa fronteira existencial suficientemente grande para não serem forçados a nada.  Os livres disto tudo.  Os livres.