Há uns tempos dei boleia a um rapazinho desconhecido.
Dizia-me ele, a meio do percurso de poucos quilómetros, sermos nós um povo
afável, generoso e de bom coração. Eu sei, pensei na altura de mim para mim...
e que eramos comodistas... eu sei, pensei...
Há uns tempos, conheci um pintor de paredes. O pai dele já era pintor e
o avô também... ela era pintor porque sim... seríamos um povo com raízes. Eu sei,
pensei de mim para mim... Há uns tempos, dizia-me uma “caixa” de supermercado
que como isto estava um dia teríamos medo de viver. Eu sei, pensei de mim para
mim. Há uns tempos, dizia-me uma rapariga de vinte e poucos anos nada perceber
das fichas que o filho levava para casa da segunda classe. Esquecera tudo. Eu
sei, pensei... há uns tempos dizia-me uma senhora na bomba de gasolina... que
se devia respeitar toda a gente e que desde que tivéssemos para comer e
pudéssemos andar de cara descoberta, tudo andava... eu sei, e pensei... Há uns
tempos ouvia os pescadores olhando o mar, dizendo que “eles” eram todos uns ladrões...
eu sei.
E pensei que estamos sempre em trabalho de campo a sentir o “pulso” às gentes... e que há tantas, tantas gentes... desde os que, vivendo na opacidade da monotonia da manutenção do mundo são levados pelos líderes embriagados de poder sobre os que vivem na opacidade da monotonia da manutenção do mundo, passando pelos filósofos mais inteligentes e mais estudiosos, mais espirituais, menos espirituais, e até àqueles que deram uma volta inteira na curvatura dos abismos do pensamento sem entranhas nem o bater do coração... e há artistas incomodados outros acomodados... e os desligados, também.
Lembrei-me de Teixeira de Pascoaes falando da imensidão de
gentes que surgiam como fantasmas... e pensei que só um morto em vida os podia
ver e reconhecer como tal... qualquer coisa de cadavérico no turbilhão do
mundo, e no entanto, qualquer coisa de imensamente mais...E pensei que estamos sempre em trabalho de campo a sentir o “pulso” às gentes... e que há tantas, tantas gentes... desde os que, vivendo na opacidade da monotonia da manutenção do mundo são levados pelos líderes embriagados de poder sobre os que vivem na opacidade da monotonia da manutenção do mundo, passando pelos filósofos mais inteligentes e mais estudiosos, mais espirituais, menos espirituais, e até àqueles que deram uma volta inteira na curvatura dos abismos do pensamento sem entranhas nem o bater do coração... e há artistas incomodados outros acomodados... e os desligados, também.
A quem foi dada a ver a luz, e com ela o sentido da vida, por vezes, é dada uma vida sem sentido, de maneira a que a própria vida seja ela um debate eterno entre as duas: ou ganha o sentido da vida, ou ganha a vida sem sentido... ironias divinas...
Ainda navegando nestes passos fronteiriços entre a vida
ausente que existe na contemplação, quase parda, quase indefinida... movem-se
na superfície das ondas pequenas brisas... são elas que dão alento e fazem
reluzir, de modo intermitente, esse brilho do sol sobre o mar. Seremos nós capazes dessa sensibilidade
aquática às brisas em forma de pessoas que por nós passam? Seremos nós capazes
de quebrar a casca dura que esta civilização produziu e de sentir essas
pequenas brisas de Elias?
Se tudo for, como à primeira vista parece ser, uma eterna
dança entre dois polos extremos: a sobrevivência e o poder... que nos é dado do
Espírito afinal?
Para bem da nação tenho assistido ao autoconvencimento e às
múltiplas tentativas de persuasão dos autoconvencidos de que uma ideia,
política ou religiosa ou ambas são, sem dúvida, sem sombra dela, o germe da
salvação do mundo. É assim que têm nascido os mais variados exércitos ao ponto
de, por vezes, o mundo me parecer mais uma arena do que qualquer outra coisa...
mas, ao sairmos dessa arena, na qual há alarido imenso e gritos, e públicos que
a sustentam... ao sair, dessa arena, que vemos à nossa volta?
Brisas que passam, algumas, impressões, vagas outras,
fantasmas, alguns... dúvidas cada vez mais e crescentes sobre o verdadeiro
papel da arena a não ser aquele que nos diz não servir para mais nada senão ir
alimentando esse sentido da vida, ainda que a vida em si não tenha sentido...
ou talvez sejam necessárias essas guerras para ir aprendendo o óbvio, que é o
irmos arrancando, sempre mais e mais, as armaduras-carapaças desumanas que
tanto usamos em combate em nome da humanidade.
Que nos restará um dia senão a consciência de que talvez a arena,
essas guerras sem fim, de persuasão, de autoconvencimento não sejam apenas
armaduras da subtileza humana que é capaz de sentir a brisa, e que uma vez, livres
dessa roupagem essa brisa se torna assertiva e derradeira, como a evidência de
um trovão? Desculpem se sonhei um pouco...(Cynthia Guimarães Taveira)