segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A arte do improviso




No divagar absurdo pelos quais são compostos certos escritos em papel, na actual aceleração dos tempos, concomitantes de certezas absolutistas e várias, na corrida desenfreada de um positivar como coisa verdadeira, abrangendo os tempos e as histórias, no imediatismo chocante da afirmação concreta como critica impar, porque sem par, ou paralelo sequer ou sem contraponto, sem medida que se lhe acrescente, nisto tudo, neste mar envolto de nuvens e agitações profundas no qual os mastros mais parecem sustentáculos imediatistas de convicções que definem e delimitam o ser e toda a imaginação que potencialmente nele vigora, a desenvoltura do vero movimento criativo é colocado numa espécie de cave cujo movimento, em pequenos soluços, como micro-tremores de terra, são sentidos no meio da invalidez da dimensão humana.

Há uma trágica confusão entre o que se é e o que se escreve ou cria quando o que se é se vai sendo, na eterna viagem, mesmo que camuflada de uma casa aburguesada e bem posta, com alicerces fixos em raízes que são apenas a meia esfera iluminada da fonte da criação.  Há uma desmedida violência na herança de uma cultura toda ela baseada no julgamento, que é sempre final (nem necessitamos do final... agora), o que compromete o futuro tornando-o inexistente, na variedade do que possa ser, devido a uma aparente auto-suficiência, na qual, no mundo da criação segue as passadas das teses académicas: cada obra é igual ao ser que a compõe ficando para sempre justificada na sua moldura de notas de rodapé culturais, na bibliografia que (embora sempre parcial) compõe a sua própria história, numa cadeia lógica de acontecimentos que conduziram o ser à obra, acontecimentos fixados no tempo, como datas-prova de uma construção morosa e derradeira, ficando fechados, a obra e o ser em si mesmos, o que produz a sensação de não haver espaço para o que vulgarmente se chama inspiração.

A exigência de regulamentação da arte dentro do quadro das ideologias que, atentemos, como essência, são sempre a mesma no sentido em que promovem a existência de fronteiras que em princípio nem existem... (falo evidentemente do espaço de criação), impõe-se como condição muito parecida àquela da manipulação genética para o apuramento da raça... quando, em termos humanos, tal coisa nem existe. É na urgência do medo e do pânico nascidos do convívio com todo o artificialismo quer tecnológico, quer humano que vigora e ,estando este entrelaçado entre o medo da morte e o sentimento de culpa exacerbado, talhado cuidadosamente na cultura ocidental, que se produzem (a produção não é o mesmo que criação...) e nascem, actualmente, as diversas correntes artístico-ideológicas remetendo estas numa espécie de monotonia que já vai ganhando o epíteto de clássica... ou para a ausência de total criatividade plasmada na actividade criativa como indústria, ou, por via da sua ausência, para inoperância da própria imaginação como instrumento, verdadeiramente capaz, da actividade transmutadora. Tudo isto são sintomas, não de agora, mas de há muito, e não raras vezes a verdadeira actividade criadora sofre, por vias um pouco inexplicáveis, o mesmo percurso que a actividade espiritual, sendo-lhe incrustada , no entanto, muito mais as penas que lhe são próprias do que as benesses de uma “iluminação” capaz de tomar o seu lugar no tempo que lhe é devido.

É vivendo neste tipo de escorreita e infeliz visão tendenciosa das coisas, como que se a um regresso a um maniqueísmo camuflado se tratasse (confundindo e cegando, apenas...) que se torna cada vez mais urgente o improviso, como dom de alcance do movimento temporal. Descontextualizado assim de qualquer apego ideológico, o artista, outra espécie de homem, mas não de raça, poderá, mesmo que em termos invisíveis participar na desenvoltura da vida e na sua perpetuação; reunindo, a arte do improviso, dois tempos, a saber: passado e presente, colocando-se, consequentemente, em posição ideal para o terceiro tempo futuro e ainda uma quarta dimensão lhe é acrescentada porque, de tal modo, solta e livre, permite a operância de uma espécie de "abertura", porque imediatista ao livre fluir de influencias transcendentes. É só nessa, perspectiva, e apenas quando ela é integrada em consciência, que será permitida e a todos os que falem a mesma linguagem (e aqui as artes plásticas e a escrita podem aproximar-se da universalidade permitida em maior abundância pela música), nem que seja apenas num momento, uma espécie de cumplicidade extra-forma, extra-formatada porque ausente de conceitos integrados em vias dirigistas. Isto é sabido há séculos, por exemplo e como espelho desta sabedoria, a escrita dos caracteres cursivos do oriente. Cá, neste ocidente esquecido de si, encontrar-se ainda como linguagem camuflada tanto pela castração que lhe querem impor como pela cegueira de a tornar coisa hermética, fechada, isolada, como câmara secreta de um esoterismo forçado em si mesmo. O verdadeiro esoterismo no qual navegam estes barcos-improviso, ( também encontrados na pintura de ícones, nos quais os olhos são sempre a última coisa a ser pintada, como se aí, toda a mensagem do ícone fosse concentrada num único momento, sem emenda, no próprio simbolismo que contém: centro do centro...) encontra-se à vista de todos... mas apenas alguns se dão conta de tais fenómenos... é nesse sentido que, quem co-participa em tal género criativo, foge aos ditames das regras, por mais que se tentem mecanismos de manipulação, quer venha esta do "baixo", querendo com isto dizer, da pura matéria visível, ou de um invisível inconsciente,  totalmente inconsciente, sem luz do consciente, fenómenos aos quais a maior parte de humanidade está sujeita e que utilizam, exactamente, as vias ideológicas como tentativa de aprisionamento das reais capacidades humanas, motores imóveis, necessários para a mudança de ciclo que se avizinha.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

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